sábado, 30 de setembro de 2023

O sal do silêncio (105)

Francis Bott, Cathédrale, 1975

As catedrais nascem do silêncio que ronda o mundo. Erguem-se em geometrias de pedra e rompem a linha do horizonte, para que se veja mais além, para que o além, em formas de línguas de fogo, venha e seja na terra, o sal selvagem do vento que sopra onde quer.

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Geometrias de fogo (20)

Johan Christian Clausen Dahl, The Eruption of Vesuvius in December 1820, 1826

Vindo do centro da Terra, o fogo dança na boca do vulcão. Ao longe, ouve-se o ronco ameaçador de uma canção de desespero. Espera-se, no silêncio das noites e na luz de cada dia, que o deus adormeça e o trabalho da sua oficina sossegue, para que os pássaros cruzem os céus e os homens lavrem a terra.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Sonetos de Outono (1)

George Morland, Peasants in front of a Hut, ca. 1790

Um doce frémito anuncia o tempo

onde o vinho correrá nas bocas

e o silêncio como sombra amena

virá solícito sarar as mágoas.

 

As folhas secas são sinais de morte,

signos etéreos de uma vida a vir

entre a dança das violetas trémulas

e o desejo frio de corpos pálidos.

 

Longe, o Inverno apressado marcha

com passos rudes e prenúncios negros.

Tudo estremece no cansado mundo.

 

Alegres, castos, elevemos cálices

de vinho puro, a vida flui nos lábios

e o coração fulgura vivo e ávido.


2023

 

domingo, 24 de setembro de 2023

Pintura e haikus (34)

Meyer Schapiro, Abstract Landscape, 1971
 A canção da terra
da Primavera ao Inverno.
Quatro estações.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

O sal do silêncio (104)

Giovanni Segantini, Alpine Landscape at Sunset, 1895 – 1898

O silêncio da montanha reverbera ao pôr-do-sol. Desce lentamente dos picos mais elevados, toca, com mãos de veludo, as encostas e cai envolto em sombras sobre os pequenos planaltos onde cintila o sal da mais pura das águas.

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A sombra da água (20)

Andreas Achenbach, Storm at Sea off the Norwegian Coast, 1837

Espuma de tempestade, ondas de revolta, o império da água mostra as suas garras, impenitente e impiedoso. Ensurdecido com o seu grito, não escuta o ruir dos rochedos nem as orações dos homens. Vai e vem, como se toda a paz fosse um perjúrio, como se toda a tranquilidade, uma traição.

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 12

Ernst Ludwig Kirchner, Fehmarn houses,1908

Voraz, adormece o Verão,

entrega-se à sombra das folhas,

ao secreto pulsar da sede.

 

A terra ao céu pede água,

um clamor surdo no deserto,

o frio desejo das florestas.

 

Deixemo-nos contaminar

pelas promessas de Outono,

pelo pão e o vinho nas bocas.


Setembro de 2023

 

sábado, 16 de setembro de 2023

No limiar (10)

António Sena, Pintura, 1972
A lenta crispação da matéria estrutura pequenas barreiras, como se fossem dunas ainda na infância, ou os primeiros traços que a criança deixa nas paredes da casa. Ainda se está longe da matéria organizada que dá vida a estrelas e planetas, mas há muito que grandes nuvens de poeira prometem, na obscuridade sem fim, tornarem-se em galáxias que se arrastarão pelo vazio, criando espaços e polvilhando o negro com pétalas de luz. Soltam-se os primeiros sons, abrindo um longo caminho para que nasçam os ouvidos que os possam escutar. 

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Signo sinal 13. Uma fraca argila

José Manuel Espiga Pinto, Brincando com o «Cavalo de Tróia», 1983

Celebra-se no Cavalo de Tróia a astúcia de Ulisses, mas a hermenêutica do acontecimento não deve ficar pela superfície. A astúcia do inimigo é concomitante com a cegueira que o desejo de novidades faz cair sobre nós. O Cavalo de Tróia é o signo de uma queda perante os artifícios que exploram a fraca argila da nossa faculdade de desejar.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

A memória do ar (19)

Egon Schiele, Arboles otoñales, 1911
Os Outonos nascem dos ares que vagueiam pela Terra. Levados pelo hábito, os homens chamam-lhes ventos, se agressivos, vendavais, mas o ar, esse elemento esquivo, de textura subtil, é como um espírito livre, sopra onde quer, fecunda o que se abre para a surpresa da sua passagem.

domingo, 10 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 11

Vincent van Gogh, Paisaje cerca de Auvers bajo la lluvia, 1890

Chuvas de Verão sobre a terra

são memórias vindas do céu

para revigorar os dias.

 

Os homens parecem perdidos,

incapazes de olhar as águas,

incapazes de gratidão.

 

Caminho descalço no campo,

os pés enlameados riem

e eu sonho-me na infância.

 

Setembro de 2023 

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Geometrias de fogo (19)

Joan Miró, Pintura sobre fondo blanco (El pájaro de fuego), 1927
O fogo é um pássaro branco a cintilar no horizonte. Abre as asas sobre campos e florestas e cobre com o seu discurso de dor as paisagens maceradas pelo Estio e as sombras sedentas do ardor da aurora primordial.

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

O sal do silêncio (103)

Manuel Botelho, Areia e Sal – Igrejas Silenciosas, 1987
Acende-se o candelabro das velhas devoções e o silêncio entra por dentro das igrejas esquecidas e das almas torturadas pelo ferrete da desordem de cada dia. Lá fora, o sal do tempo corrói os metais vis e dá vida efémera aos cristais trazidos pela aurora de novos mundos.

segunda-feira, 4 de setembro de 2023

A sombra da água (19)

Piet Mondrian, Farm with trees and water, 1906

Água de ambrósia envolta no âmbar do acaso. Assim, arrastado pelo ritmos da assonância, pensou o poeta a essência obscura da vida, pois nesta tudo é um fluir ora delicado, ora tempestuoso, como se fosse a sombra de um cedro no Verão ou o cio primaveril de um animal divino.

sábado, 2 de setembro de 2023

Sulcos de Verão 10

Lucio Muñoz, Septiembre, 1985

De súbito, chegou Setembro

maculado por velhas sombras,

pelo carvão da nostalgia.

 

A cal das paredes recebe

a ondulação fria da luz,

o lamento triste do tempo.

 

A música do vento ecoa

pelas ruas cobertas de sílabas,

quase orações, quase silêncios.

 

Setembro de 2023