terça-feira, 30 de agosto de 2022

Haikai do Viandante (428)

José Júlio, Paisagem, 1958

Árvores despidas,
abertas à luz de Inverno.
O silêncio canta.

domingo, 28 de agosto de 2022

Meditação Breve (184) Entrelaçar

Ruth Matilda Anderson, Máxima Hernández García, 1928
Entrelaçamos os dias para compor o calendário com que construímos a passagem do tempo. É um modo de compor paisagens, não aquelas que se encontram no espaço e ferem os sentidos para que eles as não esqueçam, mas as que só o espírito, preso à cintilação do invisível, pode compor para dar um sentido ao que não tem sentido.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

O sal do silêncio (89)

Eugène Atget, Jardin du Luxembourg, 1902
O silêncio é uma terra distante perdida no país do passado. Nele, os homens habitam imersos na serenidade, cobertos pela certeza de que todo o ruído declinará na mais pura e mais desejada mudez. Sentam-se nos bancos de jardim e rodeados pela solidão sentem-se o sal da Terra.

sábado, 20 de agosto de 2022

Crónicas (221) A felicidade

Amelia C. Van Buren, Profile portrait of woman draped with a veil, 1917
(src 
L. of Congress)
O véu cobria-lhe a cabeça, nunca o rosto. Este oferecia-o ela aos olhos que nos seus se quisessem deter. Falto à verdade. Não era uma questão de querer, mas de poder. Movidos pelo desejo ou pela vaidade, muitos pretenderam olhá-la de frente, submetê-la. Nenhum o conseguiu. Mal os seus olhos se encontravam com os dela, não tinham outro remédio senão baixarem, vencidos por um poder que não era humano, diziam. Todos, porém, lhe conheciam pai e mãe. Tão humanos quanto eles. Os anos passaram e os pretendentes perderam a ousadia, desapareceram. Restei eu. Não tive mais coragem do que eles, apenas encontrei a hora certa. Quando a olhei, os seus olhos estavam mortos. A cegueira dela roubou-a à solidão e trouxe-me uma inesperada felicidade. Até hoje.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Impressões 103. Ondas

Artur Pastor, Oceano Atlântico, s/d
Grandes ondas como antigos impérios. Erguem-se e espalham a energia do seu poder, para logo decaírem na babugem do tempo, deixando um rasto de espuma que novas ondas, como antigos impérios, haverão de apagar, muito antes de o sol se pôr e a noite cobrir tudo com a luz pura das estrelas. 

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Câmara discreta (14)

Edouard Boubat, Ile Saint-Louis, Paris, 1975

Sem reprovação, a velha freira afasta o olhar para lugar indeterminado, enquanto o jovem leitor mergulha na trama narrativa de um romance. O amor dos outros é coisa que os deixa indiferentes. Só a câmara se entrega à contemplação do beijo indiscreto, para o fixar e, ao fazê-lo entrar na pequena eternidade humana, torná-lo na discreta memória de um amor de ocasião.

domingo, 14 de agosto de 2022

Sete Cartas - 7 Ao anjo de Laodiceia

Salvador Dali, Angel, 1947

Carta ao anjo de fogo e asas de gelo,

anjo definitivo arrebatado pelo voo,

preso à pele das mulheres de domingo,

as que trazem ramos no sulco das mãos.

Frésias, violetas ornadas de âmbar e água,

o pão escuro com que cobrem a fome,

a morna poeira das praças de Laodiceia.

 

Percutida, existe uma rosa em tua face,

a terrível beleza de um anjo,

e sobre a sombra da rosa mergulham

olhares enviesados e venais.

O muro que nos separa é uma cicatriz,

a fronteira que aparta o éter cintilante

da lama trazida pelas chuvas de Janeiro.

 

Uma pétala cai sobre a orvalho do jardim.

A rosa desfolha-se como uma ave cantante,

perdida de ramo em ramo.

Anjo, pássaro esquivo nimbado de nuvens.

Anjo, misericórdia divina no mar da ruína.

 

Eis que estou à tua porta e bato.

Até de madrugada, lutarei contigo.

Ferido trarei a luz e um outro nome

para que todos me reconheçam

no silêncio da noite e na mágoa de cada dia.

 

Depois, sobrevoarás as ruas de Laodiceia.

Com o olhar marcarás na carne salgada

o vigor da vida e o murmúrio da morte.

A rosa desfolhada reflorirá ao ritmo da luz

e a terrível beleza que alucina os homens

derramar-se-á no linho das mesas,

na face das mulheres esquecidas de si,

na cintilação dos olhos cansados do Inverno.

 

1993

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

Micronarrativa (62) Gigantes

Paula Rego, O Gigante de Minsky, 1958

Ainda hoje se acredita, explicam-me, que havia, naqueles tempos, gigantes, cujo prazer maior era destroçar seres humanos. Acontecimentos tão antigos nunca são registados com o rigor a que estamos habituados, pensei. Talvez não houvesse qualquer gigante, contrapus em voz alta. Uma conjectura, uma mera conjectura, mas será sensata ou verosímil? A verdade, oiço, é que não faltam provas de seres humanos destroçados. Algum gigante há-de ter feito esses trabalhos. Encolhi os ombros e sorri.

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Biografias 31. O ganhão

Aníbal Sequeira, O ganhão

Não escolheu ser ganhão, apenas o tempo passou por ele até o deixar ali, sem que ninguém perguntasse se esse era o seu desejo. Por vezes, pensava, teriam sido os animais a chamar por ele e, sem saber como, ouvira-os dentro da sua cabeça e pusera-se ao caminho. A vida rude precisa de gente rude, e ele era-o o suficiente. Se não o fosse, como teria sobrevivido às intempéries? Em criança, já os animais falavam dentro da sua cabeça, dizia a quem o ouvia, e, em silêncio, jurava-lhes que um dia estaria diante deles, conduzindo-os, para que o carro e a carga lhes fossem mais leves, para que ele os levasse ao lugar que os esperava e lhes desse de comer. Eles eram toda a sua família e não havia, na consciência de um ganhão, coisa mais importante que a família.

terça-feira, 9 de agosto de 2022

O sal do silêncio (88)

F. Galifi Crupi, Taormina, antique Greek theatre, 1910s

Primeiro, chegou o silêncio. Veio em ondas gigantescas e arrastou para longe a voz dos actores, o aplauso do público, tragédias e comédias em que a vida se descobria e se ocultava. Depois, sobre as pedras veio o sal dos anos com o seu ofício de dissolução. Agora, restam ruínas de onde escorre o escárnio do esquecimento.

sábado, 6 de agosto de 2022

Haikai urbano (74)

Alfred Stieglitz, From My Window at An American Place, North, 1931

Desejo infinito
no coração da cidade.
Sombra de Babel.

quinta-feira, 4 de agosto de 2022

Meditação Breve (183) Náufragos

Francis James Mortimer, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911
De uma maneira ou de outra, todos somos náufragos. O frágil navio com que navegamos as águas agitadas do oceano da existência acaba sempre por ceder a uma inesperada tempestade. Resta-nos ter à mão um bote e talvez cheguemos a terra firme.

terça-feira, 2 de agosto de 2022

Impressões 102. O mundo dos campos

Paul Strand, The White Barn, Luzzara, Italy, 1953
Tudo o que pertence ao mundo agrícola faz parte de um universo muito diferente daquele habitado pelo mundo das cidades. O ritmo das estações, pautado pelo erguer e declinar diário do sol, é impossível de comparar com o ritmo da vida citadina. À velocidade deste, responde a aparente imobilidade campestre. Não que o mundo rural seja imóvel, mas o eterno retorno do mesmo dá-lhe essa aparência e imprime em quem o habita um sinal de solidez e uma marca de sabedoria.