terça-feira, 30 de junho de 2020

Pintura e haikus (18)

João Queiroz, sem título, 2016
De súbito, a luz.
Pedra a pedra, a montanha
abre-se ao céu.

domingo, 28 de junho de 2020

Pintura e haikus (17)

Maria Helena Vieira da Silva, Bibliothèque, 1949

Pura biblioteca,
de que são feitos os teus livros?
De água, luz e sal.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Micronarrativa (34) Na fronteira

Ara Güler, Children playing among the tombstones in the Seyhülislam Yahya Efendi cemetery at Ortaköy, Turkey, 1985
Entre lápides e túmulos, a vida é mais sossegada. Na cidade dos mortos, crianças vivas brincam nesse limiar que divide dois mundos. Quem está na fronteira, vê-os a ambos e caminha para cá e para lá sem passaporte nem autorização especial.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

A Sarça Ardente - 23

Francisco Suñer, Cabeza azul, 1984

Fantasio dias de sol tolhidos
no labirinto da luz.
Sombras furtivas descem
e traçam sinais
na verdura dos caminhos.

Mulheres azuis pelas rua,
trazem nos seios
o desejo que me incendeia,
promessa de água
na cornucópia do vento.

Recordo-me das primeiras letras.
Escrevo-as rente à noite
e espero nelas
a revelação de um nome
no silêncio do teu silêncio.

Abril de 2020

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Micronarrativa (33) Uma sombra

Constantine Manos, Daytona Beach, Florida, 1997
Chegou tarde, apesar de vir de bicicleta. Quando se aproximou da cabine de telefone pública, já alguém tinha tinha atendido a chamada que há tanto tempo esperava. Uns segundos, pensou, e foi o suficiente para perder a minha oportunidade. Não passo de uma sombra.

sábado, 20 de junho de 2020

Haikai urbano (55)

Toni Schneiders, Familienbild, Lübeck, 1950
Velhos gatos olham
a rua onde ninguém passa.
Uma mulher cala-se.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Meditação Breve (129) Em baixo e em cima

Alfred Stieglitz, The Steerage, 1907
Uns viajam no convés de cima e outros no debaixo, o que nunca se sabe é se os que estão em cima são na verdade mais elevados do que aqueles que estão em baixo. Não convém comparar estaturas, e ainda menos estaturas morais, quando os corpos se encontram desalinhados no lugar que ocupam no mundo. 

terça-feira, 16 de junho de 2020

Diálogos morais 40. Tempo

Weegee, Time is Short, 1940s
- Cada minuto conta.
- É verdade, não há minuto que não conte.
- O tempo é curto.
- Falso.
- Falso?
- O tempo é longo, excessivamente longo.
- Se cada minuto conta...
- Curta é a vida esmagada pelo desejo do tempo.
- O tempo tem desejos?
- Tem, de se alongar até à eternidade.

domingo, 14 de junho de 2020

A Sarça Ardente - 22

Zao Wou-Ki - 27-6-79

Os primeiros dias de Primavera
descem ao palco
do ano envoltos num vestido
de sombra e cinza.

Hoje choveu e as ruas abandonadas
cantaram canções de água
sob o olhar de pedra
das tílias tocadas pelo tempo.

Como num sonho chego à encruzilhada,
espera-me um enigma.
Vacilo, mas o crepúsculo
anuncia-me a claridade da manhã.

Março de 2020

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Diálogos morais 39. Perfeição

Garry Winogrand, Austin, Texas, 1974
- O que aprendemos nós com os antigos? 
- A perfeição da imobilidade.
- Então, por que motivo nos movemos constantemente?
- Queremos chegar à perfeição.
- Como, se estamos continuamente mobilizados, em movimento?
- Procuramos o lugar...
- O lugar, qual lugar?
- O lugar onde a perfeição nos imobilizará.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

O sedutor

André Hambourg, La conversation, 1929
Querem que vos conte uma história, perguntou o homem. Sou toda ouvidos, responderam as duas desconhecidas. Numa noite de Inverno há muitos anos, neste mesmo lugar, um homem encontrou duas mulheres que nunca vira. Era um sedutor e elas, de imediato, sentiram-se atraídas por ele. A certa altura, perguntou-lhes se queriam que ele lhes contasse uma história. Responderam que sim. Ele contou-lhes que há muitos anos, numa noite de Inverno, um homem tinha encontrado duas desconhecidas, que se sentiram de imediato atraídas por ele. Depois de lhes ter contado a história saíram os três. E o que aconteceu ao sedutor, casou com alguma? Quando a polícia o interrogou, confessou que sim, fora ele que as matara. 

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Impressões 53. Incerteza

Fan Ho, Journey to Uncertainty, 1956
Quando a vida se encurta, a expectativa alonga-se, cresce, eleva-se até que a última das certezas se torne, também ela, incerta. Aí, na mais rude das incertezas, fica a última morada.

sábado, 6 de junho de 2020

Haikai do Viandante (395)

Rodney Smith, Two Women in Black, 1992
Negro sobre negro
cresce o desassossego.
Que luz vos espera?

quinta-feira, 4 de junho de 2020

A Sarça Ardente - 21

Lucio Fontana, Ambiente spaziale (Labirinto bianco), 1968

Os frutos de Setembro vêm longe
e no caderno azul
há páginas brancas,
presas por fio de sisal.

Vão estreitos os dias, a luz do sol
coalha no mantel de linho
esquecido sobre a mesa.

Não guardei nenhuma palavra
das que me deste.
Dissipei-as
na tristeza do entardecer.

Sem mácula, deixo os olhos
correr em silêncio
e uma rosa abre-se em rumor.

Março de 2020

terça-feira, 2 de junho de 2020

O tempo

Charles Marville, Rue de Constantine, ca.1865
Tem razão, no século XIX, o tempo deslizava mais lentamente do que hoje. Não se confunda. Eu não quero dizer que um minuto, então, tinha mais segundos. Como hoje, tinha apenas sessenta. Os segundos porém eram mais dilatados, o que tornava os minutos maiores, mais pesados. O efeito sobre as horas era notável. Comparadas com as de hoje, aquelas eram muito mais lentas. Terríveis se havia pressa em que passassem. Lutavam contra a tentação da velocidade. O sucesso foi relativo, como sabe. Se retroceder ainda mais dois ou três séculos, a situação é então incompreensível. Os homens viviam muito menos anos, mas duravam muito mais. Não, não é especulação, nunca falo do que não vi ou experimentei.