sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Micronarrativa (1) Diluição

Alexey Titarenko, Man and Shadow, St. Petersburg, 1994

Um homem abandona-se à própria sombra. Os contornos desfazem-se, a imprecisão apossa-se da figura, o corpo perde solidez, até que um fluido desliza pela parede e um rasto de penumbra corre na sujidade do chão.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (693)

Jesús de Perceval - La gruta (1966)

693. a graça declina

a graça declina
na gruta
redime em silêncio
o segredo
e secreta sela
de glicínias
o desejo
de figos e água fria

(22/12/2016)

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Haikai urbano (40)

John Florea, Cologne, Germany, 1945

Tudo se desfaz
na angústia da espera.
Cidade em ruínas.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Meditação Breve (88) Peregrinação

Bernice Kolko, Pilgrimage, Ixtapalapa, 1958

Toda a peregrinação é a resposta a uma voz. Ao ouvir o chamamento, o peregrino faz-se ao caminho e dirige-se ao seu destino, esse lugar sagrado onde reside a voz que o chama. Ao chegar, descobre que aquela voz, que de tão longe o chamava, não é senão a sua própria voz.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Impressões 9. Jogo de Xadrez

Alfred Eisenstaedt, Russian chess players, 1954

Sentado, em silêncio, o público olha e espera, enquanto os jogadores pensam no ataque fatal, no destino irremissível de um Rei abandonado pela Rainha e caído do trono.

domingo, 25 de novembro de 2018

Haikai do Viandante (362)

George Inness, A Breezy Autumn, 1887

Os campos desertos,
sombras de sol e silêncio.
Vendaval de Outono.

sábado, 24 de novembro de 2018

A casa

Deborah Turbeville

A casa era grande e a porta estava aberta. Não hesitei. Recebeu-me o silêncio. Uma luz suave vacilava ao cair. Por vezes, irrompia um cântico. Parecia gregoriano, mas não era uma língua humana o que se ouvia. Passei por elas muitas vezes, mas nunca deram por mim. Iam e vinham. Sentavam-se aqui ou ali. Vi-as deitadas. Sempre silenciosas até que se juntavam e o canto voltava. Nessas alturas, o meu coração abrasava. Não sei se deambulei ali dias, meses, anos. Sei que um dia exclamei “estou morto!” Nesse instante, tudo desapareceu. Eu estava na rua e esperava o autocarro. Ele chegou, entrei e sentei-me. Então o canto voltou e elas sentaram-se à minha volta. Uma murmurou: a tua casa aguarda-nos.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (692)

Salvador Soria, Integración de lo destruido 91-H, 1991

692. a destruição desce

a destruição desce
pelo poema
um sinal
uma sirene
a matéria da vida
bate e rebate
com o martelo
da solidão
no cinzel da cizânia

(21/12/2016)

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A sombra

Pierre Dubreuil, Jazz, 1939

A música que se escutava naquele dia talvez não pertencesse a este mundo. Quem sabe? As coisas são muito mais estranhas do que parecem. Os músicos tocavam e o par, o único que se atrevia na pista, dançava extasiado. Talvez estivessem apaixonados. Os seus corpos unidos pelo ritmo pareciam ter-se libertado do império da gravidade. Quando o frenesim cedeu ao que se podia chamar um andamento larghissimo, o par quase parou. Uma invulgar - não sei que outra palavra possa utilizar - emanação desprendeu-se deles. É aquela sombra que vê na parede. Eles desapareceram há muito, mas a sua sombra ali está, inamovível, para comprovar que eram tão reais como eu ou você, ou esta música que nos envolve ao dançarmos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Pintura e haikus (1)

Nicolas Poussin, A Dance for the Music of Time, 1634-36

Um Janus bifronte
ouve a música do tempo.
Princípio e fim.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Meditação Breve (87) Músicos de rua

August Sander, Street Musicians in Cologne, 1928

Os músicos de rua não são seres humanos, mas anjos que desceram dos céus para trazerem ao inóspito deserto das cidades sobrepovoadas uma reminiscência da água que corre no paraíso.

sábado, 17 de novembro de 2018

A placenta

Alfred Eisenstaedt, Richard Schafer studying complicated formula on blackboard at the IAS, 1947

Como era habitual, chegava cedo, sentava-se e contemplava as fórmulas. Bem o pode afirmar, vivia para a álgebra. Não me interrompa, peço. Deixe-me contar o que se passou. Por vezes, levantava-se, pegava no giz e ensaiava alguma coisa e tornava a sentar-se. Apenas falava com o empregado que lhe trazia comida. Era parco nas palavras. Nesse dia, parecia inquieto. Desenhou o círculo que se vê no centro do quadro. Não sei álgebra para lhe dizer se é um zero ou a letra o. Sei que depois de o desenhar, espetou o dedo no centro do círculo. Este abriu-se - parecia uma placenta, assegura quem viu -, sugou-o, enquanto ele cantava, e tornou a fechar-se. Estes são os factos, o resto não passa de especulação.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (691)

Willi Baumeister, Apolo, con figura dispuesta oblicuamente, (1922)

691. um ardiloso apolo

um ardiloso apolo
vai por campos
de juncos e rosas
e cego escuta
no sibilo da serpente
no grito do grifo
a música do medo
a alegria das musas

(21/12/2016)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Impressões 8. A medida humana

Alfred Eisenstaedt, Multnomah Falls, OR, 1938

Um grego, Protágoras, tomado pela ilusão, disse, um dia, que o homem era medida de todas as coisas. Talvez pensasse que não haveria razão acima da razão humana. O mais certo, porém, é que apenas, perante o desmedido, ensaiasse uma fuga da inultrapassável pequenez humana.

sábado, 10 de novembro de 2018

Haikai urbano (39)

Gustave Caillebotte, Paris Street-Rainy Weather, 1877

A chuva desliza
sobre as ruas da cidade.
Sombras de Outono.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Meditação Breve (86) Bandeiras

Thomas Hoepker, Celebrating the German reunification in Berlin. Waving the German flag at Berlin’s Brandenburg Gate, October 3, 1990

Que estranha relação há entre o coração dos homens e o ondular colorido das bandeiras. As mãos erguem-nas como se o corpo fosse demasiado pesado para elevar aos céus o devaneio exuberante do sentimento.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (690)

Joan Hernández Pijoan - Casa i xiprer (1988)

690. o súbito cipreste

o súbito cipreste
no caminho de casa
é uma gramática
de recordações
recortada
na morfologia
do memória
na sintaxe
do sentimento

(21/12/2016)

domingo, 4 de novembro de 2018

Impressões 7. Distorção

Erwin Blumenfeld, Portrait, Solarised and Cut, 1937

Ali, onde a imagem se distorce, começa o longo e sinuoso caminho que conduz à verdade. Desfeita a ilusão da bela imagem, estilhaçado o véu, a realidade surge por dentro da incongruência.

sábado, 3 de novembro de 2018

Meditação Breve (85) Entre mundos

Alexey Titarenko, Untitled, (Three Women Selling Cigarettes), St. Petersburg, Russia, 1992

É sempre dolorosa a passagem entre mundos. Na terra de ninguém, a vida torna-se avara e turva. Resta apenas agarrar o que estiver à mão. O tempo passa, o velho mundo dilui-se, mas a maioria fica presa no limbo de onde é impossível avistar o que os deuses, para perdição dos homens, trouxeram.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Haikai urbano (38)

Erwin Blumenfeld, Fashion photo for Vogue at the Eiffel Tower, Paris, France, 1939

Do cimo da torre
um anjo vela a cidade.
Luzes e rumores.