segunda-feira, 30 de maio de 2022

Câmara discreta (10)

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

A combustão interior da alma, o desejo em forma de canto eleva-se acima da condição terrestre e paira suspenso entre as esferas celestes. São palavras que já não são palavras, mas o murmúrio dos pássaros ou dos anjos, o lento fluir do vento na folhagem das árvores. As faces velam-se para protegerem quem para elas olha. A luz intensa vindo do fundo do ser anima-as, é uma prova de vida e um perigo de morte. A cada instante, trazido pela fluida aguarela das vozes, sente-se o halo divino, uma presença tecida no nada das coisas materiais, uma promessa nascida do fogo das vozes que cantam.

sábado, 28 de maio de 2022

Impressões 97. Carga pesada

Jozef Emiel Borrenbergen, Heavy load, 1923

Em quase toda a sua existência, o homem suportou o peso do mundo nos seus ombros ou com o socorro da força animal. Com o advento da tecnologia moderna, libertou-se - e vai libertando os animais - desse peso. Livre da carga que lhe tolhia o corpo, ficou enredado no peso infinito do seu espírito, envolvido por mil impressões e desejos sem fim. A qualquer momento pode soçobrar sob o peso daquilo que o habita.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

O sal do silêncio (82)

Ernst Müller, Tree Reflection, 1905
O ermo dos campos, com a sua solidão dourada, espera o viajante perdido, para lhe dar o silêncio infinito nascido das águas e da terra, para o coroar com os louros de quem chega, vindo de longe, a si mesmo, à sua verdadeira morada.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Meditação Breve (180) Símbolos e palimpsestos

Albert Monier, L'écriture de la lumière, c. 1951
Nada é apenas aquilo que é. Nada é apenas puro existir. Tudo o que é, duradoiro ou efémero, ainda é símbolo de muitas outras coisas. Quando observamos uma certa realidade, caso saibamos lê-la, além dela vemos a sombra daquilo que ela é sinal, ouvimos o murmúrio daquilo que por ela fala. Cada coisa é um palimpsesto infinito, onde o leitor se perde no encantamento de descobrir, camada a camada, o que ali se oculta.

domingo, 22 de maio de 2022

O Espírito da Terra (12)

Otto Scharf, Waldbach, 1902

O som do silêncio não deve ser tomado como uma figura de retórica, mas tido como a descrição de uma realidade. Quando a floresta é sulcada pelo murmúrio das águas de um pequeno ribeiro, o que se ouve é o próprio silêncio, aquele que habita no centro dos elementos, no coração da terra e na seiva das águas.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Arqueologias do espírito 27

Caspar David Friedrich, Puerto de Noche, 1818
Mais que o dia, a noite terá descido até ao fundo insondável do inconsciente humano. O terror do que se tornou desconhecido, a presença da morte mesmo ao lado, a noite não era o lugar do sossego onde o corpo se desligava da vigília para se entregar ao prazer do sonho. Quando a luz acabava, vinha a angústia trazida pela incerteza que invadira o mundo, substituindo a exaltação derramada pelo Sol. Foi assim que a pura noite se tornou em trevas e, no fundo de cada um, continua a projectar o terrível com que durante milénios se revestiu, lembrando-nos que a claridade é sempre efémera. 

quarta-feira, 18 de maio de 2022

O sal do silêncio (81)

Léonard Misonne, Splendeur de la Boue, 1938

A cintilação da luz na lama ofusca os passos de quem tem um destino à sua espera. A revolta dos elementos é esquecida no silêncio da caminhada. Os olhos fixos na chegada, quem caminha nem olha a paisagem sombreada pela intempérie. Chegar é o sal que anima os que se fazem ao caminho.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

O Espírito da Terra (11)

Leonard Misonne, Sortie de la Gare, 1939

Dir-se-á que nada haverá de mais estranho ao espírito da terra do que a parafernália tecnológica, o maquinismo onde o ferro exerce o seu império despótico e arranca os homens à lentidão do passo animal. Contudo, não há como o caminho de ferro para fazer sonhar com grandes viagens em que os olhos devoram a terra que diante deles passa, em contínua mutação, sempre com novo espírito. Partir e chegar num comboio é ainda uma visita ao que há de mais enigmático neste nosso planeta.

sábado, 14 de maio de 2022

Micronarrativa (60) Iluminação

David Hamilton, Cabourg beach, France, 1970s

Mãe e filho caminham em direcção ao mar. Persegue-os o sonho dos dias de Verão, o ir e vir das águas sobre a areia, a esperança de encontrar alguém conhecido de há muito para que aquela hora ganhe um sentido descoberto na troca de palavras e na cumplicidade dos anos. Quando se sentarem a perscrutar o enigma do oceano, o sol tocar-lhes-á os corpos e em cada um deles haverá um sentimento de felicidade, como se uma iluminação lhes rasgasse o coração.
 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Biografias 28. O leitor de jornais

David Turnley, Man Reading Paper Through Magnifier, 1975

Um longo hábito, herdado de família, ligou o leitor ao jornal. Os dias passaram e cada dia trazia a sua natureza nessa hora em que ele, o leitor, se encontrava com o seu jornal. Tudo então ganhava sentido, pois o que lê só descobre a significação do que acontece no acto de leitura. Pouco interessa se o que lá vem, nessas folhas de papel que terão o lixo por destino, é verdadeiro ou falso. No jornal, o leitor não procura a verdade, mas aquilo que ele próprio é. Por isso, o acto de ler terá de ser repetido até ao fim dos dias.
 

terça-feira, 10 de maio de 2022

Haikai do Viandante (424)

Tamamura Kozaburo, Mount Fuji from Takaido Station, c. 1900 
 A rua deserta
abre-se em segredo ao monte.
A luz do silêncio.

domingo, 8 de maio de 2022

O sal do silêncio (80)

Lehnert & Landrock, Prayer in desert, c. 1920

O homem olha. A imensidão das areias do deserto é uma reminiscência da infinidade divina. Então, entrega o espírito ao silêncio, suspende o tumulto que lhe devora a alma e oferece, sob a inclemência do sol, o coração ao culto de Deus. No sal da memória, encontra o murmúrio da oração.

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Biografias 27. A tecedeira

Paul Wolff, Weaver, 1930s

Enquanto entrelaça os fios, tece-se a si mesma. Olha-se ainda a partir da janela da manhã. No rosto, uma pequena sombra, a súbita consciência de que haverá um crepúsculo, mas logo o ritmo dos dedos abre o espírito à ambiguidade da vida, aos desejos que se escondem sob a serenidade de um olhar concentrado no que faz, ao temor que o futuro arrasta infundindo incertezas, sombreando a luminosidade dos dias com a culpabilidade das trevas. As horas passam e a tecedeira harpeja o tear, onde, no ruído mecânico da indústria, se esconde a velha música das esferas celestes. Casarei, pensa ela, e a vida será outra coisa, mas no seu pensamento ainda não sabe que fios tecerão o pano com que essa vida se há-de vestir. 

quarta-feira, 4 de maio de 2022

O Espírito da Terra (10)

Jean Dieuzaide, Vue aérienne, Montagne Noire, reboisement, 1968

Há em nós, seres humanos, uma alucinação persistente. Cremos que tudo o que existe está à nossa disposição. As velhas florestas estavam aí para que tivéssemos madeira. Exauridas, a terra fica disponível e não hesitamos em reflorestar aquilo que despimos. Estamos convencidos de que as novas florestas substituirão as que destruímos. Não compreendemos, porém, que uma floresta não é o produto do trabalho humano, mas a lenta maturação da natureza, na qual as árvores escolhem o seu lugar, para se abrirem aos céus e mergulharem as raízes na fundura da Terra. Criar autênticas florestas é um trabalho para o qual não nos foi outorgado poder.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Meditação Breve (179) Tempo

Ilse Bing, Poster, Henry VIII, 1934
Olhamos a parede e vemos as pústulas semeadas pelo vírus do tempo. Este faz do corso a sua vida. Pilha as vidas e tudo o que o homem constrói. Empalidece a luz do meio-dia, erode as montanhas mais vigorosas, calcina o frio nas paisagens frias Norte. Reduz a poeira as palavras que os homens deixam aqui e ali.  Não há nada que não caiba na sua boca voraz.

sábado, 30 de abril de 2022

Câmara discreta (9)

Paul Strand, Blind, 1916
A câmara encontra o silêncio do olhar e transporta-o para dentro da eternidade das coisas passageiras. A mulher pensará na classificação que lhe atribuem, sem sentir o peso da chapa de registo, pura obediência à voracidade estatística com que os estados alimentam o seu desejo de conhecimento, dinâmica resignação à sorte que a vida sobre ela derramou. Num outro tempo, pensaria apenas que a deusa Fortuna lhe achara um defeito, talvez uma revolta, de que a cegueira seria a punição. Agora, perante o silêncio que a habita, espera que a misericórdia divina reverbere nos gestos da indulgência humana.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

Sete Cartas - 5 Ao anjo de Sardes

Salvador Dali, Sin título (Angel surrealista), 1969

Em Sardes, caminha um anjo de argila e cinza,

preso na melancolia de uma rameira sem cor,

perdido entre o lixo das ruas e o carvão dos dias.

Ergue a cabeça coberta com o limo da ardósia,

a erva estreita das paredes orladas pelo xisto da sombra.

Leva no fundo da alma a porcelana branca

rasgada pela espada pura dos dias de Inverno.

 

Conta os espíritos de Deus e as estrelas do céu.

Conta os fogos da revolta e os incêndios nos campos.

Conta as obras por fazer e as noites por chegar.

Conta os dias de tristeza e os grãos de areia.

 

Em temor, escuta a palavra do silêncio entre o ruído,

a voz coberta de luz no andaime da cegueira.

 

Então, os dias passam sobre as glicínias da aurora,

os arbustos da infância, os sonhos de ambrósia.

Noites azuis na dança dos cedros batidos pelo vento.

 

Serão perfeitos os anos diante do juízo que virá?

O sopro do vento reanima a onda pegajosa da vida,

abre Fevereiro à página branca iluminada pela Lua,

os frutos amadurecidos pela errância do tempo.

 

Ao guardar a terrível palavra na têmpora da noite,

será o anjo um furtivo ladrão, ferirá a areia da praia

com o embrião das horas, o imprevisto de cada dia.

Ano após ano crescerá uma contaminação,

a mancha delgada irradiando em torno do ventre,

os dias passados sob o candeeiro de querosene.

 

No Ocidente, uma nuvem de breu cavalga o vento,

as palavras ditas em Sardes, terra de argila e cinza

habitada pelo anjo preso aos meandros das ruas,

cansado dos Invernos que traz na vazio das mãos,

no êxtase da luz, na secreta avidez da rosa de Deus.

 

1993 

terça-feira, 26 de abril de 2022

O sal do silêncio (79)

Imogen Cunningham, Aiko’s hands, 1971
Há em todas as mãos uma inclinação para o gesto e um desejo de silêncio. Trazem na memória dos dedos os sinais que um dia anteciparam as palavras e fizeram da mudez a possibilidade de viver entre a folhagem das florestas e o sal do medo.
 

domingo, 24 de abril de 2022

Haikai urbano (72)

Otto Wunderlich,  Alhambra, Salon de Embajadores (Granada), 1920s
A luz do silêncio
cai sobre o vazio da tarde.
Sombra sobre sombra.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Impressões 96. Transfiguração

Edward Hartwig, Untitled, 1970s

De súbito, o revérbero transfigura a paisagem. Árvores e campos deixam de ser simples árvores e campos, mas uma hierofania nascida do casamento entre a luz e a sombra, a manifestação de uma realidade totalmente outra por dentro da mais trivial das realidades.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

O sal do silêncio (78)

Harold Miller Null, Trulli, ca. 1970
Casas silenciosas inclinam-se lentamente para o centro de si mesmas. Da cal das paredes chegam, em murmúrios quase brancos, vozes que o tempo apagou, sinais fabricados com o coral e a seiva de quem partiu. Quando se entra nelas, sempre haverá uma garrafa de vinho para matar a sede ou uma sombra para o sono derramar sobre o corpo o resplendor do sossego.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

Câmara discreta (8)

Bill Brandt, Brynhild Parker, painting a nude model, 1939

O olhar desce do corpo exposto ao corpo desenhado, sem se aperceber que em toda a exposição existe uma linguagem de abandono, o sinal de um esquecimento, o sintoma de uma traição. O esboço a que os dedos se entregam, com a destreza digital de uma errância calculada, é o resultado de uma mão treinada no uso do punhal, na dissecação da carne, na húmida certeza de uma vitória sobre o que, tão desamparado, se abre à lentidão com que os olhos transferem a forma encarnada para a frieza da figura exposta na brancura do papel.

sábado, 16 de abril de 2022

O Espírito da Terra (9)

Otto Scharf, Going home, 1901

A terra é esse silêncio que acolhe os homens no regresso a casa, pois não há outro desejo mais humano do que estar em sua própria casa. Não é um desejo de propriedade, nem um culto de proprietário. É antes a certeza de que qualquer morada é precária e que se deve desfrutar, com zelo sem fim, antes que o tempo a remeta para o pó de onde saiu, sem deixar vestígio, como se nunca tivesse descido ao lugar vacilante da existência.

quinta-feira, 14 de abril de 2022

Sete Cartas - 4 Ao anjo de Tiatira

Salvador Dali, El ángel de Port Lligat, 1952

Sobre a pródiga perfeição dos habitantes de Tiatira,

reina um anjo de cabelos azuis, quebrado pelo fogo

do turíbulo, por veios de mármore, linhas de luz.

Ave na escuridão da cidade, sereia nas águas lustrais

nascidas em côncava fonte, no cárcere do olvido.

 

Sob a sua protecção crescem salgueiros, choupos,

os rios contaminados pelo voo das borboletas,

pássaros tomadas pela ânsia luminosa do Sul,

o deserto onde se ouve o grito dos mortos,

o silêncio sem fim na mudez de orvalho dos vivos.

 

Escrevo as palavras acesas nas chamas de bronze,

na obscuridade derramada no pó da terra,

o trabalho sobre a areia perdida dos oceanos,

o vento escaldante ao arder no centro do coração.

 

Um sopro ressoa na paciente inspiração da carne,

na nudez do amor, no silêncio dos dias de Novembro.

A humidade das lágrimas escorre pelo vazio,

onde a boca sorve o sangue e a seiva das giestas.

 

Olho a campânula suspensa sobre a cabeça e na luz

abre-se na fresta da manhã o cálice do dia que passou.

 

Corrompe-se no esquecimento a palavra trémula.

Seca na boca o lastro da língua, o fogo do logos,

as palavras adulteradas pela traição da gramática.

 

Da sonolência da sombra brotarão sem sentido

os filhos das marés mortas, das vinhas incendiadas

pelo pólen do crepúsculo, pela estrela da aurora

submetida ao cansaço dos corvos da crueldade.

 

O que mantiver a palavra e a cerzir no farol da paixão

ouvirá o canto das esferas celestes na boca do anjo,

no resplendor de um corpo feito de éter e incenso.

Passeará pela sombra da tarde nas avenidas de musgo,

nas ruas de Tiatira tomadas ao exército da loucura.

 

1993

terça-feira, 12 de abril de 2022

Meditação Breve (178) Moda

Horst P. Horst, Fashion model, 1938
Pode-se pensar que a paixão pela moda está ligada à esteticização da indumentária num mundo onde as aparências se tornaram essenciais ou, então, ao culto do corpo, a sua afirmação plena, feita pela oclusão do espírito através do sublinhar, pela roupa, dos traços físicos. No entanto, nos rituais da moda manifesta-se uma outra coisa, a liturgia do efémero e a ascese do passageiro. Nela afirma-se que apenas existe aquilo que passa e, após a cintilação de um instante, se reduz a nada. O brilho ofuscante da moda é uma outra modalidade em que o niilismo que corrói a cultura ocidental se torna ostensivamente patente.

domingo, 10 de abril de 2022

Histórias sem nexo 28. Cro-Magnons

Jacint Salvadó, Abstrait informel, 1967
Crisântemos para Creonte da Croácia, um cromo da c´roa. A Creusa sem creatinina cravou-se na creolina. Cristóvão, o criado, Crispim, o crispado. A Cristina sem crime e a Cristiana sem creme. Com crédito na cripta do croupier, creram-se crucificados na cruel cruz de Cronos. Uns Cro-Magnons, crocitaram o Crátilo e o Crisóstomo.

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Haikai urbano (71)

André Kertész, Pont Neuf, Paris, 1931
 Era a ponte nove
e caminhava em silêncio.
Obscuras paixões.

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Meditação Breve (177) Corpos

Gjon Mili, Nudes, 1940

Os corpos são, por vezes, flocos de luz. Outras, fundas cisternas onde se depositam águas lustrais. Se despidos, a luz irrompe pela pele. Quando adormecem e penetram no país do sonho, são como náufragos afogados no lago sombrio que os habita.

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Impressões 95. A sombra da nudez

Frantisek Drtikol, Nude with shadow, 1930s
A força do hábito traz-nos para dentro da cegueira. Fascinados pela nudez, para a qual os olhos se sentem sempre e de imediato impelidos, não vemos nela a sombra que é, a projecção do que, nela se manifestando, está muito para além do corpo desvelado, como uma velha cicatriz desoculta uma dor há muito esquecida.

sábado, 2 de abril de 2022

Sete Cartas - 3 Ao anjo de Pérgamo

Jackson Pollock, The White Angel, 1946

Sobre as praças de Pérgamo reina um anjo.

A voz engendrada na auréola azul das estrelas

ilumina a gangrena na cegueira dos homens.

Com o punhal da errância traça a fronteira

entre o vigor da vigília e o cansaço do silêncio.

 

Nas ruas da cidade guardam ainda entre mãos

as letras de meu nome, sílabas verdes do vento,

o alfa, o ómega, o mundo retido na palavra,

candelabro incendiado na sombra da noite,

labareda de luz a ondular ao ritmo da respiração.

 

Pedras nascidas do tempo, roladas com demora,

flocos de cinza onde inscrevo o meu nome

entre símbolos da aurora e sinais de escuridão.

Falésias fulguram bordadas pela caligrafia

com que traço o voo da ave, o bramir da dor.

 

Descrêem na palavra perdida em minha boca.

Quando o vento tempestuoso sopra de ocidente

lançam os joelhos por terra, erguem as mãos

na desolada sintaxe dos dias de angústia,

na perpétua morfologia do grito e da mágoa.

 

Eu sou o vento que sopra onde quer, diz-lhes.

Em todo o lugar animo as ervas ralas do chão,

uno o Norte ao Sul, confundo Leste Oeste,

sou a ave sem poiso, pássaro que não dorme,

a música das esferas celestes na rua da razão.

 

Diante do fogo fogem maculados pelo medo.

Entregam o corpo ao escárnio, ao abrigo do sangue.

A espada da minha boca cortará o feno pela raiz

e nas faces inscreverá letra sobre letra a delicada

mancha solar, a lâmpada na clausura da noite.

 

Sou a água do rio a correr para o santuário da foz.

Quem a navegar comerá a maçã da solidão.

Na jornada, receberá a pedra branca da linguagem,

o sangue derramado nas campânulas da aurora.

Palavra do anjo esquecido nas ruas de Pérgamo.

 

1993