terça-feira, 1 de março de 2022

O sal do silêncio (75)

Roberto Rive, Woman found in Pompei in 1875

As cinzas raptaram a mulher ao rumor da vida, preservaram-lhe o corpo para memória futura, entregando-o ao reino da pedra, dando-lhe a voz do silêncio e o sal do esquecimento.

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Haikai do Viandante (423)

Harry Callahan, Sunlight on Water, 1943

Se o Sol mergulha
incandescente nas águas,
a luz faz-se sombra.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Micronarrativa (58) Do exílio

Autor desconhecido, Women carrying water, Volendam Holland, 1920s 

Mais tarde, ao ver a fotografia, a criança, então já mulher madura, terá pensado como eram seguros os tempos em que nada parecia mudar. Aquelas mulheres, todas da sua família, faziam o que muitas outras antes delas também o fizeram, com os mesmos gestos, as mesmas palavras, as mesmas dores. Ela, porém, exilara-se desse mundo. Na sua nova pátria, nada é como outrora, nem aquilo que é se mantém por muito tempo. Depois, olhou longamente para a figura da mulher da frente e chorou.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Impressões 92. Luz na floresta

Leonard Missone, Sunlight in a forest, 1929

Os raios de sol  penetram no silêncio da floresta, invadem árvores e arbustos, tornam resplandecente o verde das folhas, abrem o coração do observador ao canto dos pássaros, à incerteza de quem já não sabe distinguir entre luz e sombra, entre a matéria viva e a luz fulgurante. 

domingo, 20 de fevereiro de 2022

Câmara discreta (4)

Leonard Misonne, Old people, old houses, 1930s

As cicatrizes trouxe-as o tempo, brechas nas paredes das casas, telhas cansadas pelo passar das águas e dos anos, rasgões a anunciar os vidros gastos pelos olhares que deixaram passar. Naquela rua de outrora, habitam pessoas que já não vivem no agora. Inclinam-se em silêncio, enquanto cismam no passar das horas, nas sombras que deixam no empedrado do chão, na vida que a câmara não consegue prender no zimbório da eternidade.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (175) Crepúsculo

Samuel H. Gottscho, Midtown Manhattan & Empire State building at Dusk, 1930s

A luz fulgurante que anima as grandes metrópoles, essa fantasia tecida pela técnica e que nos faz querer que a noite jamais chegará, não é outra coisa senão o sinal de um tempo crepuscular. Assinala a época em que, tomados por uma longa hesitação entre luz e trevas, os homens se preparam para entrar no grande império da noite.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

O sal do silêncio (74)

Otto Wunderlich, Sierra de Gredos (Tipos), España, 1920s
Há um silêncio que cai sobre os homens, envolvendo-os na sua teia, quebrando-se se o ruído rompe o círculo encantado de onde a sonoridade foi excluída. Depois, há um outro silêncio, aquele que, com o passar passar dos anos, se faz por dentro de cada um, até que as palavras são suspensas e tudo seja dito com a mudez estampada no salitre do rosto.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A Sarça Ardente - 100

Edvard Munch, Alameda con copos de nieve, 1906
Sobre a alameda
da memória
arde um fogo
feito de silêncio,
a sarça trazida
do deserto
para incendiar
as águas do rio,
as pedras da montanha,
o coração preso
às neves de Inverno.

Fevereiro de 2022

 

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Impressões 91. Realidade

Harry Callahan, Eleanor, Chicago, 1952

A massa extravagante da realidade só a muito custo parece estar dotado de contornos, essas finas fronteiras que têm o condão de separar os seres uns dos outros, como se entre eles existisse um frio abismo. Depois, tudo se confunde, as coisas perdem as suas margens e contaminam-se, como se se abrissem umas às outras em busca da unidade originária de onde o tempo as retirou.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Haikai do Viandante (422)

Benvenuto Benvenuti, Tramonto pauroso, 1825-30

Sobre o arvoredo
o céu transborda de chamas.
Noites de pavor.



quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Câmara discreta (3)

Leonard Missone, By the Watermill, c. 1900

A melancolia de olhar para a outra margem, como se o corpo fosse habitado pelo mais terrível dos desejos, o de estar precisamente no lugar onde não se está. Então, o tempo suspende-se, coagula e a fluidez das águas torna-se pedra e gelo, a anunciação da eternidade. Nesse instante que a câmara surpreendeu, a vida elevou-se sobre si mesma e estendeu uma ponte que liga a margem do passado à margem do futuro.

 

terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Meditação Breve (174) O trabalho do tempo

Aaron Siskind, Rome 5, 1967

A pedra erodida é uma marca da passagem do tempo. É também uma lição dos efeitos deste. Apagamento dos contornos, simplificação da figura no seu esboço, redução de cada coisa ao magma da pura indiferenciação. O tempo é o mais feroz agente igualitário. Apaga os vestígios de tudo o que se quer proeminente e transforma em poeira o que, por uns momentos, ganhou individualidade.

sábado, 29 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 99

Thomas Cole, Expulsión. Luna y luz de fuego, 1828
O fogo é um símbolo.
Arde por dentro
do dia,
deixa um rasto
de cinza
na porta do silêncio,
abre-se
como uma fresta
no pavor da noite.

Janeiro de 2022

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

O sal do silêncio (73)

Wright Morris, Untitled, 1940s
A chama do candeeiro abre uma clareira à sua volta. Nela, penetra o tempo no seu cavalo mecânico, a vida engavinhada na morte, o silêncio ferido pelo bater surdo de cada hora.

domingo, 23 de janeiro de 2022

Câmara discreta (2)

Autor desconhecido, Avenue des Champs Elysées, Paris c. 1870

Como era bela a vida, pensavam, ao percorrer com despreocupação a grande avenida, mesmo no centro do mundo. A geometria com que foi concebida, a disposição do arvoredo, a referência clássica inscrita no nome do lugar, tudo isso contribuía para uma sensação de leveza, para o esquecimento do que não se via, para o prazer de uma doce mobilidade tingida pela auréola divina. Quem ali estava, nesse lugar onde só os deuses têm acesso, não tinha dúvidas sobre quem era.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Haikai do Viandante (422)

Ivonne Sánchez Barea, Cienaga azul II, 1999

 Um pântano azul
cresce nos dedos da noite.
Céu de águas paradas.

terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Arqueologias do espírito 26

Émile-René Ménard, La Nube, 1896

Pelas nuvens chega-se a uma das mais arcaicas experiências de ocultação e de desocultação. Escondem o Sol e roubam aos homens a luz que os ilumina e permite a prevenção dos perigos. Ao serem levadas pelo vento, o retorno da luz torna-se uma epifania. Se escurecem e se combatem, os olhos ficam presos ao grande espectáculo, mas os corações temem a tempestade, a transformação em caos de uma ordem construída com dor e esforço. Se delas cai uma chuva plácida, a esperança desenha-se nos rostos, e das bocas solta-se uma acção de graças, como se ainda houvesse lugar para um amanhã.

domingo, 16 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 98

António Carneiro, Porto Manso, o Rio Douro em Ancede, 1927
Decomponho o dia
em seus frutos,
no que me chega
à mesa
e eleva a voz
em acção de graças.

Decomponho a noite
na promessa,
o ardente anúncio
da aurora
abrindo-me a mão
para o fruto de cada dia.

Janeiro de 2022

sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Impressões 90. Neve

Burk Uzzle,  Winter Park, Central Park, NYC 1960

Eis a lívida claridade da neve, a que tudo transforma em mero esboço, como se a realidade perdesse a definição dos contornos e iniciasse a demorada viagem de diluição de si mesma. Perante a exuberância da brancura revestida com a glória do resplendor, a cidade não é mais que uma leve impressão, o vestígio de uma memória à beira de mergulhar no grande lago do esquecimento.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

O sal do silêncio (72)

Jean Giletta, Oliviers et fruits, c. 1890
Em silêncio, a memória da oliveira reverbera em sua seiva. Ao florir, mergulhada no lento devir das auroras, abre o caminho para para a anunciação do fruto, que, emoldurado pelo verde, reina sobre a melancolia dos campos. Os homens esperam a hora em que maduro se entregue às núpcias sagradas, para que o seu sangue corra puro na boca que o espera.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Câmara discreta (1)

Thomas Miller, Hatton Hall, School for Young Ladies, Wellingborough, 1860s

Oferecem-se à câmara fotográfica numa coreografia meditada, num cenário onde tudo parecia perfeito. São actrizes por um instante. Depois, a vida voltará com o seu movimento e com todas as preocupações e temores, desejos e esperanças, tudo aquilo que ao pousarem esqueceram, para que o fotógrafo não lhes lesse o coração e a máquina não retivesse para a eternidade os segredos que nele se escondem.

sábado, 8 de janeiro de 2022

Meditação Breve (173) O insulto

Vespeira, Parque dos Insultos, 1949
Há em todo o insulto uma desfiguração. Não do insultado, mesmo que se vise através da injúria redescrever-lhe a figura com contornos ominosos, mas do insultante. A acção de atingir o outro recai sobre si mesmo, dilui a própria figura, abre uma fenda no seu ser pessoa, por onde entra o vitríolo que a haverá de corroer. Nunca um insulto é desprovido de consequências.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 97

Caspar David Friedrich, Winter Landscape with Church, 1811
O fumo do Inverno
desce
sobre o jardim.

Os cedros reverberam
na memória
dos dias luminosos
da infância.

Tudo se suspende
na viagem
entre a invernia
que me traz
da casa do passado
ao porto do presente.

Janeiro de 2022 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Impressões 89. Tempo

Alex Teuscher, Time neverending, 2010
A linha do tempo. Ao ouvir a expressão, logo se imagina uma seta disparada do passado, voando em direcção ao futuro, uma linha recta interminável. O tempo humano, porém, pouco tem a ver com essa experiência. Avança, mas também parece voltar a um ponto anterior, num esforço de recapitulação. O eterno retorno do mesmo, porém, não deixa de ser uma ilusão. O melhor símbolo para a impressão que o tempo produz no espírito dos homens será a espiral. Conjuga progresso e retorno e, se olhada com atenção, manifesta o carácter abissal do tempo.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (421)

Kazimir Malevich, Apples Trees in Blossom, 1904
 Sob o azul dos céus
as macieiras florescem.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Meditação Breve (172) Cruzar os braços

George Platt Lynes, Crossed Arms, 1941

Um sintoma de cansaço, um sinal de expectativa, uma recusa de acção? Seja qual for o sentido que se dê ao gesto de cruzar os braços, ele nunca deixa de pertencer a uma fenomenologia dos actos ostensivos, daqueles que pelo seu acontecer querem indicar sempre uma outra coisa. É sempre um gesto que se liga àquilo que o transcende. 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (71)

Eugène Atget, Rue de l’Hôtel de Ville, 1921
O tempo quase podia ter sido suspenso e o que se vê, a rua, os prédios, a iluminação eléctrica, teria sido coalhado num instante eterno, num silêncio que voz alguma haveria de incomodar, não fora as rodas de um veículo caído em desuso começarem lentamente a rolar, arrastando atrás de si os segundos, depois os minutos e continuando por aí fora, num nunca mais parar da duração. 

sábado, 25 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 96

Gerardo Rueda, Composición, 1959
Sobre a sombra
ergue-se
um dia de luz,
a longa espera
terminada,
o sussurrar do oceano
na memória,
o arder do silêncio
ao abrir-se
no arquipélago
do coração.

Dezembro de 2021 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Desabrigado

Weegee, Night Shelter, c.1938

Tinha chegado a onde nunca imaginara chegar. Estava só e descobrira que nenhum lugar fora feito, na realidade, para ser o meu lugar. Nenhuma desculpa podia apresentar no tribunal da consciência para me absolver da situação. Tão pouco seria sensato culpar qualquer entidade metafísica que me tivesse predisposto para a ruína. Escolhera, fingindo não escolher, o caminho que me levou a este abrigo. Por incúria, pela vertigem de um desejo de queda. Na hora em que me deitei no banco de madeira, estava reconciliado comigo. Abandonara tudo. Chegara ao centro de mim mesmo. Descobrira que a verdade de todo o homem é ser um desabrigado. Ao adormecer, sabia, pela primeira vez, o que era a vida. Poderia recomeçar. Sem qualquer ilusão.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (70)

Frederick Sommer, Taylor, Arizona, 1945
Quando o sal da vida se retira e a ruína se apossa da realidade, resta a ordem inóspita de um silêncio hostil, fabricado nos interstícios do esquecimento, na distorção da memória, no sufoco de tudo o que retirou cada coisa da insignificância.