sábado, 21 de janeiro de 2017

Meditação breve - 4. Niilismo

Jesús de Perceval - Hasta que se aniquile (1965)

O que é o niilismo? A desvalorização de todos os valores? Não, propriamente. O niilismo é a consumação da tendência para o nada que habita tudo aquilo que existe. O niilismo é a retirada do espírito de um modo de vida que, um dia, pareceu eterno e que o tempo, essa máscara vulgar da eternidade, revelou na sua verdade, isto é, no nada que era.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

Uma das categorias centrais da vida espiritual é a de fim do mundo. Não se trata, porém, de um reconhecimento de que o mundo terá um fim, mas da própria finitude dos mundos humanos. Cada mundo humano é o produto da vida espiritual, de uma certa compreensão que o espírito tem de si mesmo. Esse mundo terá a sua forma de vida, as suas instituições, os seus costumes e a sua forma de pensar. O apocalipse que revela o fim do mundo significa que a vida espiritual já não se reconhece nesse mundo de vida e em tudo onde ela tomou forma. O espírito prepara-se então para morrer, para renascer num outro mundo, com novas instituições, modos de vida, formas de pensar e de se realizar. A categoria do fim do mundo torna patente a natureza metamórfica da vida espiritual, cristalizando-se nessa categoria o momento libertador de uma forma caduca, a morte desta, e um novo nascimento no espaço e no tempo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Meditação breve - 3. Protecção

Gerardo Rueda - Positivo-Negativo (1965)

Para além do positivo e do negativo está a realidade. A sua luz é tão excessiva que os nossos olhos necessitam de se proteger com um catálogo de conceitos. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (605)

Maria Helena Vieira da Silva - O passeante invisível (1951)

605. invisível passa

invisível passa
o passeante nocturno
praças e vielas
rodopiam
em seus olhos
de luz
chamas de pedra
flutuam
no inquieto xadrez
do inverno e da rua

(06/12/2016)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

História de um olhar

Ferdinand Hodler - Alma decepcionada (1891)

Vem todas as manhãs, desde que não chova, e parte pouco depois do meio-dia. Ainda era jovem quando começou a vir. Senta-se e olha. Não, não. Se procuro na memória descubro que o espectáculo, ao longo de tantos anos, está longe de ser monótono. Nos primeiros tempos, o seu olhar era garboso e inquieto, havia nele ânsia de domínio de tudo o que o rodeava. Mais tarde, parecia ter uma certeza funda nesse senhoria. A partir de certa altura, deixou de olhar em volta. Olhava para si. Agora olha para baixo, para a terra. Chega e parte e nunca dela desprende o olhar.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Meditação breve - 2. Ansiedade

Edvard Munch - Ansiedade (1894)

O grau de ansiedade mede a distância que vai de nós àquilo que nos envolve e do qual nos separámos. A separação da envolvência transforma esta não apenas numa coisa desconhecida mas, e fundamentalmente, numa ameaça e num perigo. A ansiedade é o sintoma de um esquecimento. 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Haikai do Viandante (313)

Manuel Narváez Patiño - Invierno (1993)

desejo de luz
no coração do inverno
branca a neve cai

sábado, 14 de janeiro de 2017

Meditação breve - 1. O Inverno

Ramón Casas Carbó - Invierno (1893)

Há no Inverno uma ilusão de suspensão do tempo, como se este, desgastado pelo frenético devir das estações mais quentes, precisasse de se recolher na sombra e na solidão, onde o fogo, uma reminiscência dos dias de Verão, o mantém na vida. Ali recupera a força com que vai brotar no exterior e entregar-se de novo à veloz vertigem da corrida que só para nós, pobres mortais, tem fim.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (604)

Arden Quin - Cercle Rouge (1944)

604. um círculo vermelho

um círculo vermelho
pulsa
na relva rude
e verde da solidão
grita preso
numa geometria
feita de triângulos
de adobe
e quadrados
de cinziareia de sol

(06/12/2016)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesque (1922)

O burlesco e o grotesco que esteticamente lhe está ligado são visões críticas da distorção da própria vida espiritual. Muito facilmente os homens tomam a vida do espírito - nos múltiplos domínios que a constituem - como uma afirmação de si e da sua vaidade. Esta incongruência entre aquilo que anseia a libertação das restritas fronteiras do pequeno ego e o seu aprisionamento por este mesmo ego torna-se risível. O burlesco tem então o poder, através do exagero caricatural, de tornar patente, aos olhos de todos, o quão grotescos podem ser os homens.