segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (584)

Jackson Pollock - Ritmo de Outono, número 30 (1950)

584. folhas de outono

folhas de outono
viajam vagarosas
no clic-clac
dos meus dedos
e
traem
ritmos rudes
no rumor das ruas
no clac-clic
dos teus segredos

(20/10/2016)

domingo, 23 de outubro de 2016

A tempestade

Marco Manzella - Diálogo sobre las variaciones atmosféricas (2001)

Sentava-se, pegava num livro, olhava a rua pela janela. Passado algum tempo, perguntava se iria chover. As primeiras vezes, nem liguei. O tempo estava indeciso, a pergunta parecia razoável. Não é que o desenrolar da conversa não me deixasse perplexo, deixava. Mais tarde, começou a perguntar-me se iria chover, mesmo quando o dia estava esplêndido. Não foi a incongruência que me atormentou, foi a revelação. Não tinha notado, mas agora era claro. Sempre que ela se sentava com um livro nas mãos e me perguntava se iria chover, uma fúria tomava conta dela e desencadeava uma tempestade.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.

Poemas do Viandante (583)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

choro o chumbo
transformado
em ouro
na cinza suave
e no restolho
onde nasce
negra de nigredo
a obra
grande e rubra
de um coração erguido
na luz do desejo

(20/10/2016)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Possessão

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Tudo começou com pequenas e esporádicas perdas de consciência. Perguntava-me, ao levantar-se, quem ela era, mas antes que eu tivesse tempo de responder, sorria e tudo voltava ao normal. Depois, as crises tornaram-se frequentes. Passava dias inteiros sem saber sequer o nome, embora levasse a vida habitual. No mês passado, porém, tudo se agravou. Levantou-se e começou a rosnar-me. Tive medo. Tentei apaziguá-la. Ela então ladrou e mordeu-me. Desorientado, acabei por sair. Comprei o que precisava. Agora passeio-a pelo jardim à trela, depois ela senta-se aos meus pés, enquanto vejo televisão e lhe afago a cabeça. Fora das refeições, nunca lhe tiro o açaime.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (301)

Alphonse Osbert - O mistério da noite (1897)

silêncio na noite
pássaros poisam nos ramos
um véu sobre a terra

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Caminho de sombras

Mateo Vilagrasa - Camino de sombras (1997)

A experiência da duração, do trânsito do tempo e da contínua mudança, torna manifesto que a vida do homem sobre a Terra é, na verdade, um caminho de sombras. Aquilo que, por um instante, pareceu luminoso, logo se torna sombrio, até que o passado o encerra na escuridão. Talvez o homem não avance de claridade em claridade, mas ande de sombra em sombra. Em cada uma, haverá a sua dose de luz e o seu quinhão de trevas. Perante uma luz infinita, o aparente progresso que a expressão "de claridade em claridade" parece significar torna-se risível. Esta ideia de um progresso para a luz é ainda um elemento sombrio que se espalha sobre o homem e o conduz pelo caminho das sombras.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (582)

Morris Louis - Alpha, Alpha (1960)

582. um alfa cresce

um alfa cresce
na alma
teme em silêncio
o destino do
ómega
e prende-se
à
seda de sílex
da boca que clama
de alfa em alfa

(06/10/2016)

domingo, 16 de outubro de 2016

Do assentimento

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

O assentimento, que a expressão de origem hebraica amém traduz, é compreendido, muitas vezes, como a conformação passiva a um destino. Essa compreensão obscura acaba por ocultar um outro lado do assentimento. O da luta com a suspeita, a confrontação com o incerto, o dilaceramento da dúvida. Assentir, desse ponto de vista, não é a aceitação de uma derrota, mas a expressão de uma vitória sobre si mesmo.

sábado, 15 de outubro de 2016

A mulher de castanho

James Whistler - Arrangement in Black and Brown: The Fur Jacket (1870)

Vi-a várias vezes. Muitas vezes, mesmo, mas isso não prova a sua realidade. Se havia nevoeiro, e aqui, naquele tempo, o nevoeiro não era raro, ela, envolta pela névoa, caminhava lentamente avenida fora. Passava diante desta casa, onde sempre vivi, e perdia-se mais além. Nunca trouxe outra roupa senão um vestido e um casaco castanhos. Jamais falou com alguém ou cruzou o olhar comigo. Um dia, apesar do grande nevoeiro que tinha caído, ela não passou. Na manhã seguinte, quando saí de casa, deparei-me à porta com um monte de roupas velhas. Reconheci-as. O nevoeiro não tornou a cair sobre a cidade.