quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Rituais de Fevereiro

Joaquín Vancells i Vieta - Fevereiro, paisagem (1891)

Espero, espero que Fevereiro chegue. Ainda haverá frio. Sim, frio e chuva, as árvores despidas. Poderei fazer uma cama de folhas húmidas e deitar-me. O frio que fará! A humidade entrará na minha carne, nos meus ossos, e eu serei fria e húmida como o Inverno. Espero. Sim, quando chegar Fevereiro, entrarei na floresta. Despir-me-ei e nua esperarei a vinda, a vinda... Fará frio e os animais olhar-me-ão com medo. Uma folha cairá sobre mim, quando a luz da tarde começar a declinar. Estremeço, se penso na noite que há-de vir. Estremeço e sinto já a lua a descer sobre o meu corpo indefeso e penetrar-me célula a célula. Estremeço, na luz fria e húmida em que me tornarei. Fevereiro chegará.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Perder a figura

Albert Gleizes - Transfiguração (1943)

Se se pensar a vida espiritual como transfiguração, não basta pensar esta como uma mudança de figura, como a aquisição de novas configurações. É preciso pensá-la na sua radicalidade semântica, como um ir para além de qualquer figura, como um perder a figura. A vida do espírito é um caminho para além de toda e qualquer figuração.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como uma orquestra

Paul Ackerman - A Orquestra

Da ideia moderna de orquestra pode-se retirar uma poderosa analogia da vida espiritual. Na verdade, olhada desta perspectiva, a vida pode ser encarada como um contínuo ensaio de orquestra, onde um maestro desconhecido tenta conjugar os vários naipes de instrumentos, os poderes do corpo, os anseios da alma e as faculdades do espírito, para que o indivíduo, na sua singularidade, se descubra como pura harmonia.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (267)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter (1895)

manhãs de inverno
chegam numa luz difusa
neve frio brancura

sábado, 16 de janeiro de 2016

Esperam por nós

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Esperam por nós, disse ela e calou-se. Ele olhou-a. Havia naquele olhar perplexidade e perturbação. Hesitou, mas deixou escapar: quem espera por nós? Ela emudeceu e os olhos prenderem-se na areia molhada. Com um dedo, desenhou grandes veleiros e sob eles um mar violento e sombrio. O vento soprou em rajada vinda do norte. Tiveram ambos frios, mas evitaram aquecer-se nos olhos um do outro. Quem espera por nós? Ela desenhou um sol sobre a agitação marítima e uma bandeira no mastro de cada barco. Uma onda de calor desceu sobre eles. Em sussurro, ela exclamou: eles, eles esperam por nós. Se não vieres, perdes-me. Ele deitou-se na areia. Então, ela entrou no mar que desenhara. Um barco esperava-a perto da rebentação.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sobre as ondas

Edvard Munch - A onda (1921)

Submergir-me completamente na onda, deixar-me ir e vir ao sabor da força das águas, ser não eu mas a água empurrada pelo vento, abandonar-me ao acontecimento no pleno esquecimento de mim. Eram estes pensamentos que o tomavam de assalto quando, sentado na areia, olhava o mar batido pelo sol da tarde. Por vezes, sobressaltava-se. O grasnar de um pássaro, o rumor de um papel arrastado pelo vento. Perante o mar, tudo se tornava tão claro. Estava na fronteira, fascinado, preso a uma voz antiga. Uma gaivota poisou ao seu lado. Olhou-a. Olharam-se. Lentamente, sentiu que ela entrava nos seus olhos. Respirou ofegante. As ondas, o mar, o vento do crepúsculo, tudo se tornara mais nítido. Sentiu um tremor nos braços, uma ondulação no corpo, e olhou. Voava sobre o mar. Ao longe, o sol esperava por ele. Estava salvo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fogos de artifício

A vida quotidiana é um exercício contínuo de fogos de artifício. Ansioso por provar a sua própria existência, o ego é incapaz de se conter e, sempre que tem um público, entrega-se à produção do mais vivo espectáculo de fogo de artifício. A vida do espírito, contudo, começa no momento em que se decide pôr de lado o fogo de artifício e se inicia a procura do fogo que arde sem se ver.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 14

Pablo Picasso - A bela holandesa (1905)

14. Assim tão despida

Assim tão despida,
tão exposta ao vento,
esperas a mão
que te abra o corpo
ao furor secreto
de um sentimento.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O infinito da vida

Frantisek Kupka - O princípio da vida

Sim, todos sabemos que a vida - a vida biológica - tem um princípio, um começo. Se pensarmos, todavia, a vida tal como ela se revela no homem, facilmente somos seduzidos pela ideia de que ela, a vida, não tem princípio nem fim. E é esta sedução pelo infinito da vida que se torna símbolo e é deste símbolo que toda a vida espiritual, nas suas múltiplas dimensões, é exegese e realização.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Idas e vindas

Paul Gauguin - Idas e vindas (1887)

A viagem espiritual é composta de muitas idas e vindas. Seria uma ilusão pensar que a vinda marca um retorno ao mesmo. A vinda contém em si a ida e aquilo que o viandante, ao voltar, encontra - em si mesmo e no lugar a que retorna -  não é o mesmo que tinha à partida. É sempre um outro que retorna e o lugar também é já outro. Por vezes, diz-se que um dado escritor escreve sempre o mesmo livro, mas isso é um equívoco. Cada vez é um escritor novo que o escreve. Foi e voltou, mas já não era o mesmo que o escreveu, mesmo que o livro fosse palavra a palavra, letra a letra, semelhante ao anterior. E mesmo uma obra nestas condições seria já uma outra obra.