quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De aparência em aparência

Teresa Muñiz - Aunque se mueva es pura apariencia (1998)

O que esconde uma aparência? Outra aparência. E esta uma outra, numa progressão infinita. Cada aparência é uma estação do calvário do espírito. A sua cruz é este ir de aparência em aparência, negando-as e negando-se a si, pois a viagem é infinita e, na verdade, não existe um lugar sólido onde possa repousar eternamente. Não se trata de negar as aparências para encontrar uma realidade. A única realidade é a viagem pelas aparências.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Danos colaterais

Nicanor Piñole - Escuchando la radio

O progresso dos meios de comunicação social representa, ao mesmo tempo, um retrocesso na capacidade do homem comunicar consigo mesmo. O momento decisivo terá sido a rádio. Ela exige um exercício de escuta já completamente alienado, uma escuta totalmente voltada para o exterior, para uma voz que vem de fora e que se sobrepõe à voz interior que habita os homens. Platão, na antiguidade clássica, via o pensamento como um diálogo consigo mesmo. É este diálogo que a comunicação social tem o poder de dinamitar, ao prender a atenção com o que vem de fora e que, pelo poder da técnica, se impõe a uma consciência fascinada. Ler a imprensa, escutar a rádio, ver televisão ou interagir através da internet são progressos civilizacionais, mas não deixam de ter importantes danos colaterais. Entre esses danos encontra-se esse exercício de meditação que consiste no diálogo consigo mesmo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 11

Charles Émile August Duran - Danaë (1900)

11. Desce sobre ti

Desce sobre ti
a luz do Inverno.
E se estas mãos
em fogo te tocam,
tudo se ilumina
como se aqui
nascesse o Verão.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Contrastes simultâneos

Sonia Terk Delaunay - Contrastes simultâneos (1913)

Aquilo que para a razão é um escândalo - ser e não ser simultaneamente - é para a experiência do espírito um caminho e uma orientação. Uma orientação que surge como um convite: abandona a razão como guia da experiência. Um caminho que se abre à experiência: experimentar os contrastes simultâneos que, apesar de horrorizarem a razão, nos chamam a vivê-los num para além do discurso e do pensamento.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (260)

Giovanni Fattori - Bosque à beira-mar (1967-72)

azul sobre azul
um bosque entre mar e céu
a terra acordou

sábado, 5 de dezembro de 2015

O devaneio do voo

Ivonne Sánchez Barea - Voo (2007)

O homem pertence ao elemento sólido. É esta a sua natureza. Ao nadar, pode sobreviver na água. Por muito que se esforce, o homem não pode voar. Para tal precisa de se hibridar e adquirir as próteses que lhe permitam contrariar a gravidade. O voo protésico, porém, não é a realização do devaneio do voo que acomete muitos seres humanos. No sonho do voo, o homem pressente uma outra realidade, uma outra natureza liberta das condições físicas que o prendem ao corpo e, através deste, à matéria. Voar não significa então deslocar-se nos ares, mas antes elevar-se à condição de ser espiritual, para que, como acontece com o vento, possa soprar onde quiser.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Uma descoberta

Eduardo Úrculo Fernández - El descubrimiento (1992)

Hesitou longamente. Esperou que o tempo se suspendesse, que alguma coisa o viesse salvar de uma decisão. A vida pesava-lhe nos ombros e agora que partia, era ainda essa vida que levava consigo, uma vida esquartejada no interior de muitas malas, para que nada lhe faltasse na viagem e no destino que o esperava. Olhava o horizonte, abanava a cabeça e dava alguns passos nervosos para a frente e para trás. Um remoinho descia da cabeça, fazia o sangue fervilhar e, no ventre, abria-se num enorme buraco vazio. O corpo tremia. Largou a bagagem e olhou em frente, deu um passo e outro e outro. As malas começaram a ficar para trás. O corpo tornara-se leve. Pela primeira vez sentiu em si o sopro da inocência em si. Deu um novo passo e continuou. Descobrira, não teria o destino da mulher de Lot.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Uma nova palavra


Emile Chambon - L'Eveil (1975)

A ideia de despertar tornou-se, na vida do espírito, um lugar comum. O século XX e mesmo o XXI tornaram-se o lugar da mais feroz banalização de tudo, e a ideia de despertar, de abrir-se para uma outra realidade que não a do senso comum e da vida quotidiana, não deixou de ser arrastada pela onda de banalização que a tudo submerge. O viandante precisa não só de descobrir a realidade a que esse termo outrora designou como de encontrar uma outra palavra não contaminada pela rasura do tempo, palavra que retire o despertar da morte a que o abuso o parece ter condenado.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Amanhecer e anoitecer

Albert Dubois-Pillet - O Marne ao amanhecer (1888)

O estranho encontro entre a aurora e o fluxo das águas de um rio constitui-se num símbolo do próprio devir espiritual. Olhamos e pressentimos que a luz nascente vem arrastada pelas águas, que a tornarão a levar para que a noite chegue. É assim também que o rio do tempo arrasta a luz do espírito: amanhecer e anoitecer são os trabalhos e os dias da vida espiritual.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Da melancolia

Eduardo Úrculo Fernández - Melancolia (1982)

A melancolia é o sentimento que parece fundar, no âmbito do poético, a elegia. Todos os sentimentos que se deixam trabalhar pela arte - nomeadamente, pela poesia - remetem para experiências que estão para além daquilo que é meramente subjectivo. São uma janela para uma experiência que transcende a mera individualidade e que a abre para o mistério da existência. Quando a melancolia toma uma forma elegíaca é o espírito cindido de si mesmo que fala do abandono em que se encontra e do desgosto que esse abandono provoca.