sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 10

Jean François Millet - Nu reclinado

10. Assim reclinada

Assim reclinada,
esperas que o tempo
acenda o Verão.

Na voz magoada.
Na luz do momento.
Na fria servidão.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A viagem espiritual distingue-se da viagem territorial por não possuir um primeiro passo, um ponto de partida, a linha onde terá começado. Também não tem um destino. Numa viagem onde não há princípio nem fim, nenhum passo é o primeiro e, ao mesmo tempo, todo e qualquer passo é o primeiro e, como tal, inicial.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O dia seguinte

Edvard Munch - O dia seguinte (1894-95)

Sonho... o que faço aqui, que sono. Ah esta maldita luz. Meu Deus, como bebi. E tudo tão amargo, que cansaço, o corpo dele, o hálito. Não, este é o meu quarto, mas esta luz. Onde está a noite? Acorda, acorda. Ouvi gatos... miau. Gritaram. Agora, esta noite. Esqueci-me do nome e o rosto... tanta água, água fria. Levanto-me. Ele tinha a mão, um cão uivou. Tenho de me levantar, os pés no chão. Água, sim água. Tomar banho e vomitar, o corpo dele dentro do meu, tenho de vomitar. Bebi, bebi-me. Onde está o meu sangue. Sangue do meu sangue e o corpo, quem me ergue? Pesa-me o corpo, pesa-me a noite e um cão ladra. Levanto-me tenho de ladrar à janela. Sou uma cadela e ladro.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A luz e o fogo

Max Klinger - O roubo do fogo

Como a luz, segundo João, também o fogo foi dado aos homens. A luz resplandece nas trevas, mas os homens não conseguem compreendê-la e, por isso, essa dádiva pura não toca os homens, fechados para o dom. O fogo, que os homens usam, foi o produto de um roubo e esse roubo limita a dádiva de Prometeu. O fogo não ilumina os homens, não porque estes sejam incapazes de o compreender, mas porque ele, devido à sua origem obscura, não traz consigo a luz.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Construtor de pontes

Pierre Bonnard - A ponte (1896-7)

Ao viandante não é pedido apenas que atravesse a ponte, isto é, que se desloque para a outra margem para de lá ter uma outra perspectiva. É-lhe pedido que seja um pontífice (pontifex), um construtor de pontes, que na sua viagem, a cada momento, teça a ponte ente dois lugares que um abismo separa.

domingo, 15 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (257)

Vincente Van Gogh - Wheat Field with a Lark (1887)

um pássaro canta
no silêncio da planície
dia de primavera

sábado, 14 de novembro de 2015

Do percurso da vida

Wassily Kandinsky - Composición número 5 (1911)

A vida não é o percurso linear que conduz o homem do nascimento à morte. Ela não mais do que ensaio, tentativa e erro, um processo feito de incoerências, de acasos, de vitórias e de derrotas, de coisas que, inopinadamente, vêm ter connosco e que, sem se saber porquê, se aceitam ou se recusam. Quando começamos a olhar para trás, para o vivido, e vemos uma linha exuberante e coerente, então já estamos comprometidos com a mentira a nós próprios, e a nossa razão já começou a apagar as memórias, para transformar aquilo que foi um caos num mundo organizado, numa mentira cosmética que nos tranquiliza e nos faz estranhos a nós próprios e à voz que nos chama.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Como uma semente

Ismael González de la Serna - A semente (1929)

A vida do espírito é como a semente. Necessita de se ocultar para depois se manifestar em todo o seu esplendor. Tudo o que é grande nasce daquilo que é pequeno e secreto, e no segredo dessa pequenez acumula força e energia para vir à luz.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A porta aberta

Pierre Bonnard - A porta aberta (1910)

A porta aberta. A vida espiritual seria uma abertura de portas, um franquear um limite ou uma fronteira. A realidade, porém, é que as portas, todas as portas estão desde sempre abertas. A vida espiritual é esse abrir contínuo de portas já abertas, pois o fechamento não está na porta mas naquele que dela se aproxima.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (256)

Egon Schiele - Árvores outonais (1911)

desce o outono
sobre as árvores dos campos
frio e abandono