domingo, 5 de janeiro de 2014

Abrir caminhos

Ferdinand Hodler - Triunfo da técnica  (1897)

Talvez fosse de bom tom afirmar que a técnica esmaga o homem, que este fica preso no artifício dos dispositivos que inventa para tornar a vida menos pesada. Mas haverá ainda homem se o despojarmos de todo e qualquer dispositivo técnico? Não é já a linguagem uma prótese técnica? Pensa-se, por vezes e não sem ingenuidade, que meditar e contemplar seria entrar num mundo não técnico, num mundo desprovido de dispositivos e próteses. Mas a mais singela meditação ou a mais profunda contemplação são fruto de um artifício técnico, como se o acesso ao "não técnico" exigisse a mediação da técnica, dos dispositivos e próteses que, pertencendo ao mundo dos objectos mecânicos ou ao mundo das técnicas do espírito, abrem caminho por entre as limitações da condição humana.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Haikai do Viandante (170)


Um pássaro canta
no musgo verde da rocha:
a onda o levanta.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

O caminho tortuoso

Remedios Varo - Caminhos tortuosos (1957)

É um desejo infantil que nada na vida seja sinuoso, que tudo se desdobre segundo o desejo do momento, que o caminho seja linear e desprovido de embustes, ilusões e obstáculos. Para que serviria, porém, tal caminho? É na sinuosidade da viagem que o viandante escuta o sopro do vento e, na dificuldade dos obstáculos, aprende a obedecer àquilo que o caminho impõe. Na curva inesperada não está apenas a ameaça de morte, mas também a surpresa que o espera e lhe dá alento e vigor para continuar a viagem.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

O tempo dos viajantes

Liubov Popova - The Traveler (1915)

Vivemos em tempos de nomadismo. Não se trata apenas daqueles que, pela imposição da estrita necessidade, se vêem obrigados a emigrar, mas do culto pela viagem induzido pela moderna indústria do turismo. Este viajar, porém, acaba por fragmentar o viajante, pois, levado pelo desejo, submete-se à multiplicidade de sensações sem nunca poder aceder ao centro nevrálgico que unifica os mundos pelos quais passa, nem encontrar o caminho para si mesmo. Viajar não passa de um divertissement, tal como o entendia Pascal, uma estratégia de esquiva perante a efectiva realidade humana. Viajar tornou-se um exercício de ideologia, se entendermos por esta uma visão distorcida da realidade.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

A luz da verdade

George Inness - Winter, Close of Day (1866)

Os dias já começaram a crescer, mas a chuva persistente traz consigo a nostalgia de um tempo que parece ter acabado. Não a nostalgia do passado, mas a memória viva de um relação mais funda com a terra e o céu. Recolhido no dia, o viandante medita sobre a verdade, sobre essa estranha promessa que une o que está em cima e o que está em baixo. Nestes dias, tudo parece mais autêntico, como se a nossa verdade estivesse na luz contida e espessa que do alto se derrama sobre nós.

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Poemas do Viandante (444)

Joaquin Sorolla y Bastida - Mar cinzento (1908)

444. Ano velho

Acaba cinzento o ano,
vestido de sombra,
coberto de cinza.

Nuvem obscura
no silêncio do calendário,
no rumor do tempo.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Construir pontes

Pierre Bonnard - Le Pont des arts (1905)

Construir pontes, estabelecer relações, ligar o que está desligado, enfrentar a separação. Na ideia de separação pensa-se o corte que o homem instaura com a envolvência, tornando-a estranha a si mesmo. É esta mesma estranheza que se torna inquietante e que desencadeia as tentativas sempre frustradas de dominar a realidade da qual o homem se cindiu. Qual a verdadeira destinação de cada homem? A de ser um pontífice, um construtor de pontes, a de unir aquilo que ele mesmo separou.

domingo, 29 de dezembro de 2013

Abandonar-se ao vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

Talvez o primeiro chamamento do espírito, chamamento audível, se dê com a primeira grande decepção consigo mesmo. Pensa-se que é possível parar o vento com a forças das próprias mãos, mas, indomável e imperturbado, o vento segue o seu caminho. O ego faz a experiência da sua pequenez, da irrelevância dos seus desejos, do nada que na verdade é. Tudo se joga então nessa hora. Ou esse pequeno eu procura proteger-se e entregar-se à solidificação - ou à petrificação - de si mesmo, ou, aceitando a morte, abandona-se ao sopro do vento, tornando-se vento com o vento, espírito com o espírito.

sábado, 28 de dezembro de 2013

A onda e a vida

Frantisek Kupka - The Wave (1902)

Pensar a vida a partir da metáfora da onda. Como deve o viandante lidar com a onda? Enfrentá-la a pé firme? Cavalgá-la como um surfista? Atravessá-la como um exímio mergulhador? Não, o caminho do viandante não é o do poder nem o da dominação, tão pouco é o da destreza. A força para nada lhe serve e a habilidade não o salva. Ao viandante resta-lhe ser onda na onda, vida na vida. 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Sobre a memória

Sendo - Da memória (1995)

É possível que possamos simbolizar a memória pela ruína. O que resta da vida vivida é essa ruína a que damos o nome de memória. É com Platão que surge a referência a uma outra memória, aquela que a alma teria da contemplação das Ideias, essas realidades que estão para além da vida vivida, seja no plano biológico, seja no plano social. É a memória de algo que a experiência existencial não poderia nunca pôr à nossa disposição, de algo que a própria vida representa já uma ruína e uma degradação. A partir desta concepção, pode-se pensar a memória já não como uma faculdade passiva e impotente perante a vida, mera produtora de imagens da ruína do real, mas como uma faculdade activa que, entre as ruínas da vida, nos abre para o essencial, para o que é efectivamente real.