quinta-feira, 21 de maio de 2009

A voz que cantará

Um passo mais, um desbravar de horizonte, um abrir-se ao desconhecido que há no fundo de si. Conhecemos demasiado e em todo o conhecimento há uma ocultação. Envoltos no orgulho da vitória cognitiva, esquecemos esse fundo obscuro de onde provém toda a luz. Abrir-se ao desconhecido que há em si é mergulhar nas trevas mais densas. Ali esperamos a voz que cantará pela meia-noite.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poemas do Viandante (14)

14. não fora o medo

não fora o medo
e eu cantaria
a tua face

sombra desmedida
no alvoroço
da eternidade

terça-feira, 19 de maio de 2009

Dissipação

Um dia entregue à pura exterioridade, uma quase impossibilidade de conjugar a pessoa em que sou com as exigências que a vida em sociedade impõe. Há muitas formas de calvário, e aquilo que para uns é motivo de prazer e felicidade pode ser para outros o transporte de pesada cruz. Mas agora que medito e olho para a dissipação do dia, descubro aí um passo mais para Aquele que ultrapassa as dores e os prazeres, ou que faz de cada dor e de cada prazer um caminho para Si. Como me atrevo a dizer que a dissipação é dissipação?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poemas do Viandante (13)

13. sentado no molhe

sentado no molhe
ou viajando 
de cais em cais
oiço pássaros
conto estrelas

e nessa harmonia
o coração abre-se

uma sombra
um castelo
a fonte onde
a dor amanhece

Ser e querer

Deus é um prodígio: Ele é o que Ele quer, / E quer o que Ele é, sem medida nem finalidade (Angelus Silesius, O Viajante Querubínico I, 40). Eis a medida de todo o homem, Deus a perfeita coincidência do ser e do querer, uma coincidência incomensurável e gratuita. Neste espelho descubro os meus limites: não sou aquilo que quero e não quero aquilo que sou. Aqui nasce toda a moral: eu devo ser aquilo que quero. Mas se eu nada quiser e se eu nada for? Quem será em mim e quem em mim quererá?

domingo, 17 de maio de 2009

Morte e ressurreição

Morte e ressurreição, a estranha promessa sobre a qual um mundo foi construído. Mas a nossa estranheza repousa apenas na desatenção com que olhamos a vida. A cada instante vivemos a Sexta-feira Santa e o Domingo de Páscoa, a cada instante a morte é condição de possibilidade da ressurreição. A promessa da ressurreição não nasce, desta forma, de uma possibilidade metafísica, de uma especulação fundada na imaginação, mas da pura atenção ao acontecer. A ressurreição tem uma génese empírica, génese essa que nasce da contemplação do devir temporal. Onde o tempo actua, eu vejo a morte triunfar e no mesmo instante observo a ressurreição que aniquila morte. A ressurreição é a morte da morte, e a vida não mais do que esse perpétuo jogo, que o tempo traz e oculta.

sábado, 16 de maio de 2009

Poemas do Viandante (12)

12. caminho

caminho
como caminham 
os mendigos

porta em porta
à espera
de uma rosa
de um raio de luz
da noite

o que me leve para ti

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Saber demais

Saber da luz e ser cego, conhecer o som e ser surdo. Como fugir desta condição onde o não saber cresce dentro de tudo o que se sabe? Não vale a pena o estratagema do velho Sócrates, o só sei que nada sei. Não devia ele um galo a Asclépio? Não, eu sei de mais, todos sabemos demasiado. De tanto sabermos, já nada sabemos. É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto. Pudera eu aniquilar todo o meu saber e tornar-me cego e surdo no deserto ardente.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas do Viandante (11)

11. caem palavras

caem palavras 
breves sinais

um retrato 
uma cifra
a noite rasurada 
pelo cais

A luz que oriente

Um dia de dissipação. O espírito arrastado pelo turbilhão dos devaneios, uma distracção contínua, uma impossibilidade de ir para o essencial. Um dia de seca e de aridez, um dia desperdiçado, um dia escuro e afastado da luz, de qualquer luz, por mais pobre e sumida que fosse. Mas este é apenas mais um dia entre os muitos onde a vontade se arrasta impotente, e nessa impotência se entrega à luxúria desenfreada do devaneio. O devaneio nasce do fascínio que certas coisas exteriores exercem sobre a imaginação, impedindo o espírito de operar. Mas por que será tão frágil o meu espírito, tão incapaz de resistir à tentação? É um espírito perdido, abandonado nos baldios da terra, sem rota nem estrela polar. Ainda virá uma luz que o oriente?