sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (9)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

pastoreio os dias de setembro

sentado no pacífico

prado da paciência

 

olho em silêncio as águas do rio

e mergulho na sombra

da tília da tarde

 

terminou o tempo de revolta

o fogo arde

na brandura do coração

 

Setembro de 2025
 

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Geometrias de fogo (42)

Emil Nolde, Landscape in Red Light
O vermelho da paisagem é uma máscara onde o fogo se protege dos tormentos da água e se esconde dos devaneio do vento. Então, deixa pairar sobre a terra uma luz de bronze, onde a fantasia da tarde caminha irreverente para a lassidão apaziguada do crepúsculo.

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Virtudes de Verão (8)

Carlos Prado, Barredores de calle, 1935

soçobrar no vento que corre

humílima folha

caída sob o sol de agosto

 

de lado deixo o dardo de ferro

a água da presunção

o diadema no sal da altivez

 

virtuoso observo o horizonte

a crosta dos dias

a despenhar-se na poeira da terra

 

Agosto de 2025

domingo, 31 de agosto de 2025

O Espírito da Terra (42)

Otto Ehrhardt, Untitled Landscape with Birch Trees, 1903

O silêncio é o espírito velado da Terra. Quando o vento sopra e as árvores deixam partir das suas folhas um murmúrio, como se não soubessem se o que sentem é a anunciação da dor ou o prenúncio da felicidade; ou quando se ouve o canto de um pássaro, ou o silvar de um réptil, o que se escuta é o silêncio da Terra. 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Virtudes de Verão (7)

Gerhard Richter, Abstr. B., Raps, 1995

mantenho-me leal ao ethos

incendiado da origem

aos dias acesos na alvura da casa

 

as nuvens passam transportadas

por pássaros de vento

iluminadas pelo candelabro do céu

 

da fidelidade  fabrico o fogo do dia

a fortuna dos barcos

com que navego o oceano do tempo

 

Agosto de 2025

sábado, 2 de agosto de 2025

Virtudes de Verão (6)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995

faço do veludo do verão a bolsa

de onde generoso retiro

a esmola selvagem da vida

 

distribuo-a pelas dunas cerúleas

e aos pássaros perdidos

nas frágeis falésias do oceano

 

oiço tilintar o metal das moedas

nas mãos vazias

estendidas pela rainha do silêncio

 

Agosto de 2025

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Biografias 37. O escritor

Loomis Dean, William Burroughs, Paris, 1959

Todo o escritor existe no acto de escrever, na inclinação do corpo para o teclado, na precisão com que os dedos chocam com cada uma das teclas, provocando um terramoto na folha de papel. O escritor reside na folha branca que se cobre de sinais, numa combinação de palavras que formam o seu lar. Abre a porta e percorre a casa. Os quartos, as salas, o escritório, as casas de banho a cozinha. Enquanto as percorre, a casa cresce, aumenta o valor do imóvel, e ele, inclinado sobre a máquina de escrever, vai descobrindo quem é, para além do nome que lhe deram, pois o nome é apenas um enigma que a vida lhe pôs no horizonte para desvendar, enquanto as folhas brancas se enchem de letras pretas, e os dedos, sem descanso, batem e batem em fúria, como se um rio se precipitasse para uma foz que nunca encontra.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Diálogos morais 71. Indignação

Robert Doisneau, La Dame Indignée, 1948

 - Não é possível.

- Como?

- Olhe para ali. Não, o melhor é não olhar.

- Decida-se. Olho ou não olho?

- Uma imoralidade.

- Uma imoralidade olhar?

- Não aquilo. Não olhe.

- Será que olhar me fará assim tão mal?

- Muito pior do que imagina.

- Então, porque não despega os olhos dali?

- Sinto-me mal.

- Olhou tanto… Chamo um médico?

- Morro.

- Morre, só por olhar?

- Não, morro de inveja.

domingo, 27 de julho de 2025

Câmara discreta (29)

Constantine Manos, Russia. USSR, 1965

Retratadas ficaram apenas a tristeza e a melancolia nostálgica de um sonho de juventude. Ciosamente escondidos pela arte do fotógrafa, a raiva e o desespero de viver ali, naquele lugar sem nome, onde tudo parecia já uma ruína vinda de um lugar há muito morto e esquecido. A pose de quem espera - e nesse esperar entrega o corpo à fotografia - é o contraponto de uma esperança que habitou, um dia, aquela mulher quando jovem. Os sonhos dos verdes anos feneceram rapidamente, num mundo onde o verde é já o amarelo das plantas estioladas e secas pelo calor do desencanto.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Virtudes de Verão (5)

Ando Hiroshige, A Great Wave by the Cost, 1832

procuro nas veredas do vento

a virtude da verdade

o cristal aceso da crença

 

as ondas deslizam na areia

batalhões de gaivotas

esperam o troar dos tambores

 

os meus olhos são um espelho

onde o voo das aves

derrama a verruma da vida

 

Julho de 2025

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Arqueologias do espírito 34

Dante Gabriel Rossetti, Ecce Ancilla Domini, 1850
A descoberta do espírito é, ao mesmo tempo, a descoberta de uma diferença radical entre aquele que é espírito num corpo e o que é puro espírito. A este, uma tradição antiquíssima deu-lhe o nome de senhor; aquele, a mesma tradição colocou-o no lugar de escravo. Não porque o senhor exija a escravatura, mas porque o corpo, com a sua subjugação ao império da necessidade, inclina o espírito encarnado à servidão~: não do senhor, mas de si mesmo, dos seus desejos, dos limites que lhe prescrevem a finitude. Quando o espírito finito se reconhece na sua finitude e se oferece como servo do senhor, nesse momento, começa a sua emancipação e o caminho da liberdade.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Haikai urbano (79)

Claude Monet, Charing Cross Bridge, 1899
 Névoa sobre névoa,
sombras são barcos no rio.
Secreta cidade.

sábado, 19 de julho de 2025

Impressões 129. Dança

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)
É indefinida a matéria do mundo, sem contornos nem ordem, apenas um conjunto de potencialidades que se actualizam conforme aprendemos a olhar para ela. É o reino do caos. O cosmos ordenado é a pura aparência que dança no nosso olhar.
 

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Virtudes de Verão (4)

Max Pechstein, Verano en Nidden, 1920

temperar as paixões de cada dia

na água do mar

ou na erva-doce do esquecimento

 

um infinito desejo habita

a morada azul

de um corpo sem açaime

 

os córregos do pensamento

desenham mapas

de luz na geografia da vontade


(Julho de 2025)

 

terça-feira, 15 de julho de 2025

Histórias sem nexo 37. Dores

Hendrick Ter Brugghen, Demócrito, 1628
Demócrito demonizava Doroteia. Desejava-a no dédalo da demência. Demandava-a deitada no divã. Dominava-o a dor do desdém, o duro desprezo da dulcíssima diva. Demónio, dizia, destroçado pelo desafecto. Doido, dardejou-a, destruindo-lhe o decoro no doce e divino domicílio.

domingo, 13 de julho de 2025

Meditação breve (206) Cantar

Constant Puyo, Chant Sacré, 1899

Não é porque tenha por motivo o sagrado que um canto se torna sagrado. É o próprio acto de cantar que é em si mesmo sagrado. Eleva a voz para uma realidade que transcende o uso quotidiano, o qual, sujeito aos imperativos do hábito, tornou a fala numa manifestação da queda dos homens no reino da trivialidade.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Micronarrativa (76) Deslizar

Bill Jacklin, The Rink, 1996

Deslizam sombras na brancura do rinque. Fantasmas vindos de mil passados encontram-se ali, para em silêncio rememorarem os tempos em que a vida lhes pertencia. Não festejam nem lamentam. Limitam-se a deslizar, pois a uma sombra nada mais é permitido do que uma colecção infinita de deslizes. 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Virtudes de Verão (3)

George Inness, Mañana, 1878

enfrento estes dias esculpidos

no vidro solar do mundo

com a coragem de um guerreiro

 

lanço às águas do mar o temor

do trevo azul do ocaso

e a incúria da exaltação

 

sou o prudente pastor e guio

o rebanho dos sonhos

por entre a erva crua da morte

 

Julho de 2025


segunda-feira, 7 de julho de 2025

Signo sinal 29. Solidão

Mario Sironi, Solitudine, 1925-26
Inscreve-se no rosto, abate-se sobre os ombros, cerra os lábios e inclina o olhar para terra. O corpo é então um sinal poderoso de uma queda ancestral, o signo do abandono na luz obscura do esquecimento. Um rápido olhar basta para decifrar o mistério e manifestar a verdade que atormenta quem foi tomado nas garras férreas da solidão.

sábado, 5 de julho de 2025

Haikai do Viandante (444)

Benvenuto Benvenuti, Mattino sul Mare, 1907
 de manhã o mar
abre-se ao vigor do estio:
viris vão os barcos

quinta-feira, 3 de julho de 2025

O sal do silêncio (125)

Mário de Oliveira, Benahadux, 1967
Diante das montanhas do silêncio, estendem-se, a perder de vista, as planícies de sal. Ali, nada cresce: nem florestas primitivas nem uma lavoura arcaica. Só o sal trabalha a terra, lavra-a para o esquecimento e abre-a para que a solidão se levante e encontre a sua casa nas montanhas banhadas pelo luar da mudez.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Virtudes de Verão (2)

Jacques Louis David, The Tennis Court Oath, 1791

em tribunal sem lei move-se

uma justiça urgente

a areia dos dias de verão

 

de sentença em sentença

o mundo arrasta-se

no pântano seco da glória

 

procuro julho nas sombras

de um mar saltimbanco

e adormeço no banco dos réus

 

Julho de 2025

domingo, 29 de junho de 2025

A memória do ar (41)

Toni Schneiders, Fykesunds bru im Hardanger Fjord, 1959

Sob o ar tinto pela escuridão, esconde-se a garganta devoradora do abismo. O silêncio do infinito paira como uma velha memória recalcada, que, de súbito, emerge na consciência e ali fica a dançar. Um vento frio empurra a massa de ar, enquanto o viajante perdido se abre ao perigo e à promessa de salvação.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

A sombra da água (41)

Walter Barthels, Gewitterstimmung, 1902

Quando a tempestade se aproxima a galope num cavalo de escuridão, a água abre os seus braços para acolher a sombra das nuvens e o temor dos homens que, perante a iminência do perigo, se escondem no silêncio servil da solidão.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Geometrias de fogo (41)

Ângelo de Sousa, Pintura, 1974 (Gulbenkian)

Uma casa cor-de-fogo é uma promessa estival perdida nos olhos de quem a vê. Arde lentamente, fundida no silêncio do dia, para oferecer às paredes uma aparência de labareda, um rasgo de incêndio, um lençol de chamas. Assim composta, vai dedilhando as cores quentes como quem dedilha um rosário, numa oração que os olhos vêem e o coração trémulo recita contra o dragão da noite.

domingo, 22 de junho de 2025

Virtudes de Verão (1)

Jakob Alt, The Garden of Laudaya,1841

entro nos dias de verão

revestido com o manto

púrpura da prudência

 

abro as janelas e deixo

o ar marítimo dançar

a valsa vazia da noite

 

como um ulisses cansado

disfarço-me na prudente

pobreza de ser quem sou

 

Junho de 2025



 

sexta-feira, 20 de junho de 2025

O Espírito da Terra (41)

S. Rothenfusser, Aufnahme von S. Rothenfusser, München, 1899
A paisagem abre-se em caminhos rudes, velhas sendas que rasgam florestas e campos, para que os homens, em devoção ao espírito da Terra, os percorram e escutem a respiração do mundo, a canção que sobe das profundezas e se abre à luz vinda dos céus. Até que chegam a uma clareira. Aí encontram, na abertura, um lugar para meditar sobre a grande dívida que têm por essa Terra, a sua primeira e última mãe.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Biografias 36. A leitora

Gertrude Käsebier, Portrait of Martine McCulloch, 1910

A leitora não tem vida, tem livros. Entra neles, como quem entra na casa de um amante incansável. Percorre cada divisão para descobrir os segredos, mas a alma arde de desejo pelo corpo que todo o livro esconde. Ler é um lento trabalho de desocultação do amado que se esconde por detrás das palavras. Despe-o lentamente, deixando o seu corpo de leitora inflamar-se de desejo, perscrutando o enigma daquele ser, desvendando-lhe o mistério, procurando prolongar o prazer, antes que o desenlace traga o fim. Acabada a leitura, ergue-se e, como uma ninfa insaciável, procura na estante outro livro, como quem procura um novo amante.

segunda-feira, 16 de junho de 2025

Diálogos morais 70. Fidelidade

Frances Benjamin Johnston, Kritik, 1898

- Olhas-me, desconfiada.
- Não te pareces comigo.
- Não? O pintor tem a sua liberdade.
- Não estou a discutir arte, pedi o meu retrato.
- E ele fez-me a mim.
- Tu não és eu, não te pareces comigo.
- Um retrato nunca é o retratado.
- O pintor escusava de ser tão infiel.
- Não falemos de infidelidades.
- Acusas-me de alguma coisa?
- Dispenso os pormenores da tua vida.
- Dispensas…, não parece.
- O pintor, podes crer, foi fiel ao produzir-me.
- Fiel a quem? A mim, que lhe paguei?
- Não, a mim. Só eu conto para ele.

sábado, 14 de junho de 2025

Pulsar de Primavera (12)

Pierre de Chevannes, Verão, 1873

despeço-me da luz primaveril

espera-me a casa do estio

 

navego no oceano das estações

procuro um porto de abrigo

 

os dias são ondas passageiras

no calendário da navegação

 

Junho de 2025