segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

O sal do silêncio (120)

Benvenuto Benvenuti, Cipressi e colombe, 1906-7

São árvores silenciosas, os ciprestes. Ao seu redor, geram-se clareiras de onde brota o silêncio que, como um sal arcaico, salga a terra, de onde brotará a palavra que, ao emudecer, diz a verdade, essa verdade com o peso de uma promessa e a leveza da eternidade.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (11)

Amadeo Souza-Cardoso, Étude A [Gëmalde A / Quadro A], 1913 (Gulbenkian) 

a gramática outonal dissolve-se

o caos instala-se

no fraseado da estação

 

colheitas e vindimas esquecidas

cheios de silêncio

dormem adegas e celeiros

 

na cidade incandescente

ouve-se a voz do frio

ecoa nas janelas fechadas

 

Dezembro de 2024


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

A memória do ar (36)

Pietro Sarto, Bassin Lemanique, 1981 (Gulbenkian)

Rarefeito, o ar é apenas uma memória longínqua, o lírio esquecido na encosta da montanha, a vagem da inocência desprendida da terra. Vindo do vazio, emerge em turbilhão, desconcerta a ordem do mundo, para logo se encerrar nas cavernas rasgadas nos cumes mais altos, onde adormece no silêncio das estrelas mortas.

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A sombra da água (36)

Francis Smith, Le Port à Honfleur, 1958 (Gulbenkian)

Portos são grandes armazéns de segredos e mistérios. Neles, se conjuga a sombra oceânica da água e a assombração dos navegadores. O marulhar da ondulação no cais é a música encantatória por onde se perdem, em noites sem mácula, a virgindade dos segredos e a textura dos mistérios.

domingo, 1 de dezembro de 2024

Ofício de Outono (10)

Alfred Sisley, Bank of the Seine in Autumn, 1876

despido chegou dezembro

um dia de cinza

no declínio do outono

 

o ano tece a sua rede

a caligrafia incerta

no palácio da desordem

 

um rumor rasga as ruas

abre-as ao fulgor

da penúria e à luz da morte

 

Dezembro de 2024

sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Geometrias de fogo (36)

Hugo Canoilas, Formas de vida simples que regressam ao mar, 2020-2023 (Gulbenkian)

Um fogo terrestre, selvagem como uma estrela do mar, transborda da dureza da rocha e inclina-se para o oceano. É um fogo incansável, desejoso de metamorfose, lava feita animal. Um grito fulgurante da Terra; um trovão ecoa na esfera celeste. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O Espírito da Terra (36)

Léonard Misonne, Coucher de Soleil, 1905

Quando o Sol se põe, nesses instantes de cintilante indecisão, o espírito da Terra manifesta-se numa imagem de súbita nostalgia: as sombras alongam-se em busca do infinito, a paisagem funde-se num anseio de eternidade.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Câmara discreta (24)

Dorothea Lange, Woman’s foot, Vietnam, 1958

O pé flectido contra a dureza do chão, os dedos abertos ao ar do dia, o calcanhar escondido sob uma veste comprida. Discreta, a câmara oculta-nos o rosto, a dor inscrita nas rugas da face, o desespero a cintilar nos olhos, a raiva a dançar nos lábios cerrados. Tudo isso, porém, é-nos devolvido nas metáforas instituídas por aquele pé desnudado, como se cada parte de um corpo reflectisse não apenas a sua totalidade, mas também aquilo que habita no segredo da alma e no vendaval do espírito.

sábado, 23 de novembro de 2024

Ofício de Outono (9)

Jackson Pollock, Autumn Rhythm: Number 30, 1950

sob o gérmen da candura

vozes bastardas

murmuram no silêncio

 

os astros deslizam no céu

núncios minerais

na vertigem dos espaços

 

uma ave silvestre canta

a fímbria da noite

abre-se no abismo sideral

 

Novembro de 2024

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Haikai do Viandante (440)

Alson Skinner Clark, Autumn Blaze

Folhas amarelas

são cintilações de Outono.

Solidão nos campos.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Impressões 123. O caminho da floresta

Flor Campino, sem título, 1961 (Gulbenkian)

Ouve-se o canto dos pássaros e os olhos detêm-se no verde da floresta. Um desejo insensato apodera-se do corpo, e o viajante ocasional sente-se atraído por aquele território inóspito, onde o segredo da vida se combina com o mistério da luz. Intrépido avança e diante dele vê a floresta abrir-se num caminho que só o coração sabe a onde levará.

domingo, 17 de novembro de 2024

Meditação breve (200) Floresta humana

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Olhamos e não sabemos o que vemos. Uma floresta? Uma multidão? O afastamento das coisas torna a sua imagem imprecisa e as nossas representações desadequadas. Talvez, vista do espaço sideral, seja uma floresta de homens, uma multidão petrificada, presa aos seus corpos vegetais, que começam a florir e haverão de frutificar quando chegar a hora.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Ofício de Outono (8)

Paul Klee, The Messenger os Autumn, 1922

de súbito vieram dias frios

o vento cortante

sobre a palidez das faces

 

anuncia-se nos crepúsculos

de novembro

o eco futuro do advento

 

as tardes feitas de cinza

abrem-se

ao silêncio de quem espera

 

Novembro de 2024


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Micronarrativa (70) Corrida

Amadeo de Souza-Cardoso, Avant la corrida, 1912 (Gulbenkian)

O espectador olhava os cavalos, mas não via a corrida. Pensava, meditava, perdido na multidão, sobre a natureza das corridas. Umas não têm fim, outras não têm princípio, e havia outras que não tinham meio, pois o princípio e o fim coincidiam tanto no espaço como no tempo. E, quando o mais veloz dos cavalos se aprestava a ganhar o grande-prémio, sentiu uma iluminação: a única corrida autêntica é aquela que não tem princípio nem fim, pois é um eterno correr sem correr. Enquanto a multidão ovacionava o triunfador, ele saiu do hipódromo, pois a sua corrida não pertencia àquele mundo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Pintura e haikus (42)

António Sena, Lèvres errentes sur la mer, 1983 (Gulbenkian)

De súbito as ondas

saltam da boca do mar.

Fome e tempestade.

sábado, 9 de novembro de 2024

Signo sinal 23. Abandono

Amadeo de Souza-Cardoso, sem título, 1915 (Gulbenkian)

O rosto que se distorce é o signo da derrelicção do homem, desse abandono a que cada um se entrega, deixando-se enredar numa teia de sinais contraditórios, aqueles que, esquivos ou imperativos, vêm das suas pulsões e os outros que nascem fora de si, mas que tomam conta do castelo interior deixado ao acaso dos dias e à impaciência dos desejos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Ofício de Outono (7)

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908

mais cedo chegou o verão

de são martinho

sorri o sol a quem passa

 

memória de luz estival

na dança das estações

a caminho da noite invernosa

 

na terra poisam folhas mortas

o vinho novo cai

da taça cintilante do céu

 

Novembro de 2024


terça-feira, 5 de novembro de 2024

O sal do silêncio (119)

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)

As enormes mãos do silêncio abrem-se por dentro do tumulto da matéria ressequida. Procuram, na secura da poeira, a água perdida; esperam, no vácuo das horas, a seiva azul das plantas e o sal da terra.

domingo, 3 de novembro de 2024

A memória do ar (35)

António Areal, Opus n.º 59, 1963 (Gulbenkian)

O ar é como a pele de uma onça enlouquecida ou branco como um lençol estendido ao sol depois de lavado. Na cintilação dos opostos, o ar esconde o seu mistério, um enigma combinado com a resina das memórias e a seda cintilante que cobre os picos nevados das montanhas.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Ofício de Outono (6)

Eloisa Sanz, Camino de Tilos, 1999

mais pequenos os dias

flutuam

na lezíria enlameada

 

a luz indecisa enche

de sombras

a alameda das tílias

 

as palavras ecoam

vozes perdidas

no dédalo do passado

 

Novembro de 2024

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Geometrias de fogo (35)

Edward Hopper, People in the Sun, 1960

No Sol, manifesta-se o fogo, aquele que arde na alma e rumoreja no espírito. Perdidos na Terra, os homens voltam-se para esse astro benevolente, como se se voltassem para dentro de si para descobrir aquilo que lhes anima a vontade e incendeia a imaginação.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

A sombra da água (35)

John Ruskin, A River in the Highlands, 1847

O lento fluir da manhã traz consigo a bruma das montanhas e o ar frio das terras altas. Os homens suspendem a viagem sem finalidade e cantam o enigma das águas, a luz de coral que se desprende da aurora, o leve estremecer das árvores tocadas pelo espírito do rio. Então, acorda-se do sonho e o mundo renasce virginal perante os atónitos do viandante.

sábado, 26 de outubro de 2024

Ofício de Outono (5)

Milton Avery, Autumn, 1944

são agora mais suaves os dias

o sol e a cinza

uma rosa de seda

 

os mortos esperam o sulco

de uma palavra

no rumor lunar da história

 

na humidade das ruas

as folhas caídas

estremecem na sombra da tarde

 

Outubro de 2024


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O Espírito da Terra (35)

Daniel O'Neill, Returning home, 1956 (Gulbenkian)

Quando o espírito da terra se aquieta e o tempo das febres e alucinações chega ao fim, então emerge do magma sombrio a hora de os homens retornarem a casa. O caminho que fora tumultuoso, tomado pela inquietação das coisas sem norte, torna-se ameno e, sob a sombra suave do dia, oferece a segurança de uma viagem até à terra interior que espera cada um dos que vieram ao mundo.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Haikai do Viandante (439)

Ana Hatherly, Palma de Maiorca, 1958 (Gulbenkian)

Sob o céu cinzento

paisagens de azul e verde.

Árvores e vento.

domingo, 20 de outubro de 2024

Ofício de Outono (4)

Camille Corot, Italian lanscape near Marino in Autumn, 1826-27

germinou a semente do outono

as folhas caem

um frémito na fronteira da tarde

 

vieram intermitentes as chuvas

tocam as ruas da cidade

abrem sulcos no cenário da memória

 

uma música estelar desprende-se

da harmonia dos céus

ilumina o silêncio da alma abandonada

 

Outubro de 2024

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Histórias sem nexo 32. Cenas

Candido Portinari, Fumo, 1936 (Gulbenkian)

Severo e sem cerimónias, Severino sentou-se sem a Serena. Sebastiana seduzida cedeu ao Serafim. Uma secância sensual? Uma sedação sem a sensata seda de uma cefaleia? Cegos, Severino e Serena separam-se. Secos, Sebastiana e Serafim celebram. Cenas.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Impressões 122. Sombras do passado

António Soares, sem título, 1940 (Gulbenkian)
Sombras do passado visitam-nos e envolvem-nos na sépia de impressões arcaicas. Sinais retidos nas primeiras memórias ou imaginados no segredo de uma memória colectiva, o discurso infinito vindo no silêncio dos genes, composto numa língua desprovida de gramática, despida de palavras, aberta ao acaso do sentido.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Ofício de Outono (3)

Gregorio Prieto Muñoz, Aranjuez, 1918-1919

deixo-me levedar ao sol da manhã

cresço para o esquecimento

ou para a vereda da eternidade

 

a música das glicínias abre o jardim

caminho ao ritmo das flores

e bebo a água azul dos poços

 

os dias são agora uma oração erguida

sobre os abismos da noite

e os sonhos cegos da madrugada

 

Outubro de 2024


sábado, 12 de outubro de 2024

Meditação breve (199) O saber do fogo

Carlos Calvet, sem título, 1967 (Gulbenkian)

É um saber selvagem o que nasce de olhar o fogo, uma ciência incendiária que se propaga como uma epidemia ou certos erros que tomam o freio nos dentes e reduzem a linguagem a cinzas. Só aquele que domina as artes do fogo tem poder para domar a sua ciência, reduzi-la fórmulas práticas de onde nasce todo o artifício que há no frágil coração de uma labareda.