sexta-feira, 14 de abril de 2023

A memória do ar (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

O ar tece uma rede invisível e nela a realidade deixa-se prender até à imobilidade. São de aço flexível os fios com que a rede se tece, para que se ajuste aos prisioneiros que caem sob o seu império. Então, eles respiram lentamente e deixam correr o tempo, esquecidos da subjugação ao soberano que não se vê.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

A Canção da Primavera 4

Abel Salazar, Na ribeira

É uma luz indecifrável

a que sobre a cidade cai.

 

Desliza no céu como um anjo

incógnito entre as nuvens.

 

Ilumina ruas e praças,

as mãos crispadas pelo vento.


Abril de 2023


segunda-feira, 10 de abril de 2023

No limiar (2)

Imagem obtida através de IA da CANVA
A desordem em que os mundos germinam em breve é levada à fronteira que deixa ver, como numa exposição acidental, o rigor do que virá e o ritmo das leis que então regularão os elementos. Ali, é um lugar de cacofonia, onde a língua do mundo que ainda não é um mundo se mistura com a do mundo que virá. O espectador acidental, caso pudesses existir, descobriria que todo o mundo verdadeiro é antecedido por um simulacro onde se esconde a falsidade que temperará o rigor da verdade desse mundo.

sábado, 8 de abril de 2023

Histórias sem nexo 29. Pedras

Fernando Lemos, Pedras, 1949
Um prado pródigo de pedras. Uma praça próxima de pedras. Um prato pronto de pedras. Uma praga procaz de pedras. Um pranto profano de pedras. Uma praia pruinosa de pedras. Um prândio prudente de pedras. Uma prata proba de pedras. Prados, praças, pratos, pragas, prantos, praias, prândios, pratas, promessas de pedras pródigas, próximas, prontas, procazes, profanas, pruinosas, prudentes, probas.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Geometrias de fogo (12)

Lee Miller, Eagles Nest in Flames, Berchtesgaden, Germany, 1945
Um casulo desfeito pelas chamas, o abrigo incendiado, a casa tomada pelas labaredas. O fogo dança sobre o sossego dos homens, corre pelos campos, toca com os seus dedos de carvão as árvores da floresta. Saciado, adormece na cinza que semeou, esconde-se no cântaro da ausência, até que o som de uma trombeta o acordo e trémulo regresse à vida.

terça-feira, 4 de abril de 2023

A Canção da Primavera 3

Manuel Cargaleiro, Zug – Primavera, 1961

A Quaresma como uma sombra

desliza ao sabor do vento.

 

Os dias abrem-se para a luz,

presos ao silêncio dos céus.

 

Pousada no ramo da tília,

uma ave canta a solidão.

 

Abril de 2023

domingo, 2 de abril de 2023

No limiar (1)

Imagem obtida com IA da CANVA

Já não é um caos, mas está longe de ser o cosmos que se acolhe dentro de um olhar ou que ressoa, se alguém fecha os olhos e escuta o mundo, como uma velha canção, daquelas que trazem o tempo na alma e ligam vivos e mortos. São linhas que procuram um campo onde se tornem o mármore, a pedra viva com que uma cidade perpétua se erguerá para receber a luz do Sol e a bênção da noite.

sexta-feira, 31 de março de 2023

A sombra da água (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

Uma sombra secreta habita no interior das águas. Penumbra revoltosa a dançar sob o império do vento. Se a luz a ilumina, a rebelião multiplica-se em imagens sem fim, onde o branco se desdobra em mil matizes de azul e verde. Se a luz se esconde, então só as trevas se acolhem no rugir ondeado das águas.

quarta-feira, 29 de março de 2023

O sal do silêncio (96)

Imagem obtida com IA da CANVA

O silêncio irrompe pelo deserto. É uma sombra que rasga as areias e deixa rastos indeléveis que vento algum apagará. É um silêncio feminino, grande como uma mãe que olha o futuro dos seus filhos e se ajoelha perante um altar para que o sal da vida amadureça nos seus corações indecisos.

segunda-feira, 27 de março de 2023

A Canção da Primavera 2

Pierre Bonnard, Advenimiento de la Primavera, 1909

Anunciação de um novo mundo,

um cântico na madrugada.

 

Declinam as últimas sombras,

tudo fulge no azul do céu.

 

Afastamos de nós as mágoas,

e as mãos abrem-se para o sol.

 

Março de 2023

 

sábado, 25 de março de 2023

Geometrias de fogo (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

Um deus ígneo, filho do Sol, esconde-se na montanha. Cintila como uma revelação que desce sobre os homens e lhes comunica o caminho da verdade. Resplandece ao tocar as águas e tornar-se num fogo aquático, numa labareda a dançar no lago, numa promessa inquieta no coração da terra.

quinta-feira, 23 de março de 2023

A memória do ar (10)

Robert Doisneu, La gargouille de Notre Dame, 1969
Rainhas dos ares, quase anjos, quase animais, pura matéria inerte, as gárgulas  olham o horizonte, vigiam as nuvens, perscrutam os aviões, oferecem o seu corpo de pedra ao cansaço das aves. Diante delas, o ar rodopia num turbilhão, para depois, bonançoso e invisível, pousar sobre a terra como uma canção que lentamente se silencia.

terça-feira, 21 de março de 2023

Impressões 110. Cores

Imagem obtida com IA da CANVA

Cores irrompem do fundo negro onde tudo repousa. Rasgam a tela da escuridão e abrem as portas da luz. Então, erguem-se diante dos olhos, trazendo mensagens de um mundo onde ainda não existiam. São anjos as cores, anunciam aquilo que se esconde por dentro de tudo o que é visível.

domingo, 19 de março de 2023

A Canção da Primavera 1

Imagem obtida com IA da CANVA

Um pássaro canta no ramo,

abre a senda da Primavera.


Os jardins esperam o sol

no silêncio do infinito.

 

Caminhamos lado a lado

presos ao murmúrio das rosas.

 

Março de 2023

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Geometrias de fogo (10)

Imagem obtida com IA da CANVA

Um espasmo longínquo incendiou o Sol, para que este fulgurasse no horizonte, e na Terra a luz e o calor vibrassem nas planícies cinzeladas pelo vento, nas montanhas resguardadas da erosão, nas mãos dos homens que esculpem sentidos para a vida e levam o fulgor de uma vela aos lugares onde cresce a escuridão.

quarta-feira, 15 de março de 2023

A sombra da água (10)

Imagem obtida com IA da CANVA

Antiquíssimos rios rasgaram a terra. Na infância silvestre de todos os começos, as águas selvagens derrubaram obstáculos, aplanaram leitos, esculpiram com cinzel de diamante as margens. Então o arvoredo cresceu e as sombras, se eram dias de sol, mergulharam na tepidez da corrente. Agora, passada a idade madura, tornaram-se planícies cintilantes, onde os olhos mergulham para, na contemplação do fluir do tempo, encontrarem o repouso de cada dia.

segunda-feira, 13 de março de 2023

A Luz de Inverno 12

Imagem obtida com IA da CANVA

Despede-te luz de Inverno

para que uma outra venha

iluminar estes olhos.

 

Despede-te luz de Inverno

deixa a morada vazia,

guarda de nós a tua sombra.

 

Despede-te luz de Inverno,

leva para longe a névoa

e a mágoa nos corações.

 

Março de 2023

sábado, 11 de março de 2023

Crónicas (222) O poeta

Imagem obtida com IA da CANVA

Olhou-se ao espelho e não soube identificar o que via. Aquela imagem seria o seu reflexo ou a de um simulacro. Abriu a torneira do lavatório e ouviu a água correr, sem desviar os olhos daquilo que pairava diante de si. Nem todas as manhãs o confronto com o espelho era tão cruel, abrindo-lhe uma fenda na alma, um rasgão na memória. Quando acontecia, porém, era tomado pelo medo e uma dor germinava por dentro do corpo, aumentava enquanto a água desaparecia. Chegado ao paroxismo da dúvida, ao momento em que a dor se tornava insuportável, apagava a luz, voltava costas e corria para a secretária. Caneta na mão, escrevia o primeiro verso. Olhava-o com alívio, depois outro e outro, até que a dor desaparecia e a dúvida tombava vencida por terra.

quinta-feira, 9 de março de 2023

A memória do ar (9)

Imagem obtida com IA da CANVA
As ruas são artérias por onde o ar, a matéria sanguínea das cidades, corre, para refrescar quem se abrasa submetido aos imperativos da necessidade ou, feito vento, purificar o hálito insalubre que se eleva de grandes ou pequenos edifícios. De cima dos arranha-céus, anjos invisíveis sorvem sem pressa os vendavais que se erguem no horizonte, para que os homens não sejam arrastados pelo ciclone que toda a vida esconde.
 

terça-feira, 7 de março de 2023

Impressões 109. Universos circulares

Imagem obtida com IA da CANVA

Universos circulares escondem-se como velhas praças secretas que só os amantes, perdidos na sua inocência, conhecem. Ali flui uma energia silenciosa, a lenta combustão das memórias, o ardor dos corpos tomados pelo prazer dos sentidos. Quando uma tempestade sobrevem, um manto de de aço e acrílico desce para proteger quem ali sonha. Se a Primavera transborda num dia de luz, uma esperança verdeja no horizonte e o longínquo bramir do mar ecoa no cristal das paredes.

domingo, 5 de março de 2023

A Luz de Inverno 11

Imagem obtida com DALL-E 2

A graça dos dias de Inverno

declinou entre as sombras

de outros dias que se anunciam.

 

Nuvens brancas e luz pálida,

um vento nem frio nem quente,

pessoas perdidas nas ruas.

 

Uma súbita alegria

espreita no horizonte,

pura como um sol poente.

 

Março de 2023


 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Haikai do Viandante (430)

Imagem gerada por IA, CANVA
O rio rompe a terra,
e nas margens a floresta
bebe-lhe as águas.

quarta-feira, 1 de março de 2023

O Espírito da Terra (25)

Charles Job, Ploughing on the South Downs, 1907

Rasgar a terra para que dê fruto e o homem se alimente não do pão que dela nasce, mas do espírito que se liberta pelo infindável labor de cada dia. Então, o homem falará e, nas suas palavras, ecoará o espírito da terra, o rumor da casa onde nasceu e que o aguarda para o fazer escutar a última, a mais decisiva das palavras.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Geometrias de fogo (9)

Fogo na noite (imagem gerada por IA da CANVA)

Então, o fogo crepita como uma canção presa na armadilha da noite. Ergue-se e rumoreja, se o vento o impele. Silencia-se, quando a Lua, sobranceira, o olha de cima e lhe conta as labaredas ou lhe desenha no céu a geometria incerta com que se move, feito ladrão, por dentro das trevas e das planícies vazias da solidão. 
 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

A Luz de Inverno 10

José Vilató Ruiz, Lluvia, 1945

Chove. Chove sobre a tarde

uma água fria na penumbra

da flor que incendeia o dia.

 

As árvores rumorejam

no bosque verde da dor,

na erva do vendaval.

 

Espero a noite feroz,

a água fria do teu corpo

na bruma do esquecimento.

 

Fevereiro de 2023

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O sal do silêncio (95)

Pere Ysern Alié, Cuevas del Drac. Mallorca, 1920-25

No fundo da terra, onde a beleza se oculta de olhares ímpios, celebram-se os mistérios mais sagrados, para os quais não há linguagem que os diga ou pensamento que lhes descubra o sentido. Tudo ali é silêncio e sombra, para que o sal do segredo floresça à luz do sol e se torne palavra na boca pura da poesia.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A memória do ar (8)

Ernst Haas, View from Notre Dame, Paris, 1955

Vista de cima, a cidade é o rasto de uma memória que se rarefaz à medida que se sobe e o vento sopra para limpar os miasmas que da terra se elevam. O que é sólido mostra-se fluido, e um olhar treinado descobre já as frestas por onde o ar circula com a força do diamante e a transparência do éter.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

A Luz de Inverno 9

Wassily Kandinsky, At Rest, 1908

Do Inverno, os dias frios

de Fevereiro recolhem-se

na gruta negra da noite.

 

Estrelas caminham pálidas,

aves perdidas no céu,

fios de luz na voz dos mortos.

 

As ruas esperam o fogo

como as rosas, a água

e o meu corpo, a madrugada.


Fevereiro de 2023

 


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Geometrias de fogo (8)

Georgia O'keeffe, Era rojo y rosa, 1959

O fogo é uma canção que crepita no horizonte, uma parra que se desprende da vide, se chega o Outono, uma mulher tomada pela loucura do amor. Então, as chamas dançam, enquanto as cores incendiadas se desdobram, como labaredas de mármore e âmbar, entre o rosa leve da saudade e o vermelho vivo da paixão.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

A sombra da água (9)

Artur Pastor, Atlantic ocean, not dated
A água enrola-se no seu mistério e desdobra-se, como uma sombra no crepúsculo, pela areia, transformando a violência que a arrasta num suave deslizar de espuma pelos interstícios da terra. Ouve-se, então, o seu rugido declinar num suave rumor, o murmúrio de quem se entrega exausto à força do que acontece.