Paul Almasy, Paris, 1960s |
quarta-feira, 19 de outubro de 2022
Biografias 32. O guarda do parque
Não lhe compete a ordem pública, apenas a certificação de que as regras privadas sejam cumpridas. Cuida para que estranhos invasores não destruam os carros à sua guarda ou que motoristas desavisados danifiquem as viaturas que ali dormem o sono reparador, que lhes devolverá a energia mal os proprietários as façam trabalhar. Fundamentalmente, ordena a relação entre a passagem das horas e o custo, para que a cada fracção de tempo corresponda o preço estipulado. Sem o saber, o guarda do parque, mais que ao parque e aos automóveis, guarda com zelo essa estranha equivalência entre tempo e dinheiro, e fá-lo de tal modo que se é levado a crer que se pode comprar o tempo como se fosse mercadoria à disposição de quem acumulou generosas quantias para, pagando o tempo, se livrar da morte.
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
O Espírito da Terra (22)
Gertrude Käsebier, Blossom Day, 1904-05 |
Os dias em que a Terra se elava pela metamorfose de um botão em flor são marcos miliários no caminho da glória. O sólido e árido crucificam-se para que a seiva corra como um rio em busca da foz. Então, chega a hora em que a beleza se manifesta e tudo o que pertence à Terra se transforme em puro espírito.
sábado, 15 de outubro de 2022
Diálogos morais 64. Visão
Paul Strand, Conversation, 1916 |
- É o que te digo.
- Não posso crer.
- É a mais pura verdade.
- Custa a compreender.
- Também a mim custou.
- Como foi possível?
- Foi o que me perguntei na altura.
- Não admira, também me teria feito a mesma pergunta.
- É inacreditável.
- Agora que me disseste, ainda me custa a crer.
- Se não tivesse visto, não acreditava.
- Ah... viste.
- Com os meus próprios olhos.
- E ainda crês naquilo que os teus olhos vêem?
quinta-feira, 13 de outubro de 2022
O Ritmo do Outono 6
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Câmara discreta (18)
Constantine Manos, Moscow Airport, Russia, USSR, 1965 |
Tudo o que se vê na gélida assepsia das instalações fala de abandono. Não de uma mera partida para chegar a casa ou para ir longe e voltar, mas do desamparo de uma deserção daquele exército que se esconde na geometria do espaço, na rude frugalidade com que a vida, naquele lugar, se deixa ver. O que a circunspecção da câmara não mostra é o caudal da solidão que corre por dentro do corpo, é o borbulhar da dor no silêncio da espera.
domingo, 9 de outubro de 2022
sexta-feira, 7 de outubro de 2022
Impressões 106. Cuidar do silêncio
Aaron Siskind, Acolman 5, 1955 |
Há lugares em que o único ofício possível é o de cuidar do silêncio,
obstar a que o ruído se precipite sobre aquilo que existe, e assim evitar que, tresloucadas, as ondas sonoras rasguem a pedra e a entreguem nas mãos do tempo, que, com os
seus dedos de aço, haverá de a pulverizar, até que tudo se transforme em nuvem
de poeira levada pelo vento.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
O Ritmo do Outono 5
segunda-feira, 3 de outubro de 2022
Câmara discreta (17)
Hans Baumgartner, Primarschule im Hinterthurgau, 1947 |
Não é nos livros que se encontram os sonhos, pensa a aluna distraída perante a cena que, diante dela, alguém representa, para que o saber entre, talvez pelo coração, naquelas mentes demasiado ágeis. Um outro mundo mais vivo e mais real cintila dentro dos olhos, iluminando-os nessa fuga dos imperativos trazidos pela condição de estudante. Não é uma fuga para a ignorância, mas uma luta entre duas formas de sabedoria.
sábado, 1 de outubro de 2022
O Espírito da Terra (21)
Benvenuto Benvenuti, Avanti il tramonto, 1908 |
Ao pôr-do-sol, a terra liberta-se do cansaço do dia e, por instantes, deixa reverberar todas as cores que a habitam. Depois, deixa que as aves se calem e os animais se escondam para dormir. Então, chama a noite e, embalada pelo vento, adormece até que a aurora chegue com a promessa de um novo dia.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
O sal do silêncio (91)
William Henry Fox Talbot, A Scene in a Library, 1844 |
Onde os livros dormem à espera de leitores vorazes que deles não se cansem, reina um silêncio adormecido pelo passar das horas. Um mundo sombrio feito de poeira e esquecimento, pensará quem dos livros não se aproxima, mas aqueles cujos olhos não se cansam das palavras pensarão que ali encontraram a cintilação da luz e o sal da vida.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
O Ritmo do Outono 4
domingo, 25 de setembro de 2022
Micronarrativa (63) Jogadores
Otto Scharf, Kartenspieler, 1905 |
Apesar das moedas na mesa, os jogadores de cartas não jogam para obter ganhos. Seria, pensam, ignóbil fazer do lucro uma motivação para passar aquelas horas. Um duplo objectivo os move. Esconder o seu pensamento e desocultar o dos parceiros. Quando a sessão acaba, sentem-se felizes. São como as crianças que acabam de jogar às escondidas. Quando se vão embora, sabem que retornarão no próximo dia.
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Câmara discreta (16)
Ernst Haas, Santa Fe, New Mexico, 1952 |
Discreta, a câmara oculta as pessoas perdidas naquela vida, não lhes mostra a face, o corpo, o modo de ser que sempre se surpreende no olhar ou num trejeito dos lábios. Exibe, porém, os artefactos com que a vida se tece, os objectos dos pobres prazeres ou os que superintendem na fadiga. Cobre com a sua sombra de luz, a nudez de existências que se imaginam, mas não se vêem.
quarta-feira, 21 de setembro de 2022
O Espírito da Terra (20)
Artur Pastor, Santa Luzia, Algarve, da Série Outras Geometrias, anos 40-50 (ver aqui) |
A brancura que se exalta de luz na luz de um olhar, a cantaria gasta pelo arrastar dos anos e o sopro dos ventos vindos do mar, as redes que trarão o que comer, se marés estiverem de feição. Também onde o oceano impera se faz ouvir no bramir das águas a voz da terra.
segunda-feira, 19 de setembro de 2022
O Ritmo do Outono 3
sábado, 17 de setembro de 2022
quinta-feira, 15 de setembro de 2022
Impressões 105. Geografias de luz
Léonard Misonne, Coucher du Soleil, 1905 |
O mesmo lugar ocupa diversas geografias, conforme a hora do dia. Um lugar não é o mesmo ao amanhecer e ao pôr-do-sol, nem durante o dia e durante a noite, pois a luz, a sombra e as trevas trazem consigo outras tantas configurações que se apoderam do território e transformam a paisagem que ingenuamente se pensa ser única em múltiplas. Cada uma com o seu clima e com os seus pontos cardeais. O Norte ao amanhecer não é o Norte do anoitecer. Cada um deles tem a sua natureza, os seus segredos e os seus imperativos.
terça-feira, 13 de setembro de 2022
O sal do silêncio (90)
Ferreira da Cunha, Praça do Príncipe Real, 1945 (AML) |
O momento em que as praças são mais belas é aquele que combina o sal da ausência com o silêncio apenas maculado pelo vento e pelo cair outonal das folhas. Então, a beleza explode envolta num véu de melancolia e abre-se para que o olhar se deixe tomar pela cintilação da vida.
domingo, 11 de setembro de 2022
O Ritmo do Outono 2
sexta-feira, 9 de setembro de 2022
O Espírito da Terra (19)
Artur Pastor, da exposição Montalegre, Pequeno Grande Mundo (2022), anos 50 do sec. XX (visitar o site dedicado a Artur Pastor) |
A vida rude abre-se ao olhar, banhada pela intensa luz do abandono e do esquecimento. Nesta pobreza feita de contenção, de gestos medidos pela força dos dias e das noite, ouve-se a canção da Terra. Esta ergue a sua voz de vento e silêncio e deixa que o seu espírito, tomado pela quietude da inquietação, sopre onde quiser, ora como vendaval, ora como zéfiro benfazejo.
quarta-feira, 7 de setembro de 2022
Meditação Breve (185) Troca de palavras
John H. Gear, Aus Chioggia, 1908 |
Uma conversa não é apenas uma troca de palavras. É também um jogo de expectativas. Haverá uma revelação? Chegar-se-á a acordo? O interlocutor continuará a ser idêntico ao que tem sido até aqui? Sem estas expectativas, a troca de palavras seria inútil. Elas são o horizonte de toda a comunicação. Dão-lhe sentido e, naturalmente, distorcem-na, pois não há expectativas sem mal-entendidos, que a troca de palavras poderá ou não sanar.
segunda-feira, 5 de setembro de 2022
Impressões 104. Plenitude dos tempos
Henri Cartier-Bresson, Hyeres, 1932 |
Há expressões que nunca entendemos bem o seu significado decisivo, como plenitude dos tempos. Por vezes, temos uma rápida visão do seu significado, uma visão que não se deixa captar, mas que dança diante dos nossos olhos, quando o tempo como uma espiral se cruza com o tempo como uma linha recta que do passado se dirige para o futuro. Nesse súbito cruzamento, vislumbra-se a plenitude dos tempos.
sábado, 3 de setembro de 2022
O Ritmo do Outono 1
quinta-feira, 1 de setembro de 2022
Câmara discreta (15)
George Platt Lynes, Fashion Photograph for Lord and Taylor, 1940 |
O rosto velado para que a câmara não se torne, na sua inocência culpada, indiscreta, pois tudo o que a alma esconde, a face torna manifesto. O corpo coberto para que os olhos apenas o adivinhem, pois não há visão mais aguda do que aquela que nasce do vaticínio. As mãos erguidas para que testemunhem a rendição ao momento em que a existência fugaz toca o limiar da eternidade, pois não há encontro mais perigoso do que aquele que reúne o ser efémero e a luz perpétua.
terça-feira, 30 de agosto de 2022
domingo, 28 de agosto de 2022
Meditação Breve (184) Entrelaçar
Ruth Matilda Anderson, Máxima Hernández García, 1928 |
Entrelaçamos os dias para compor o calendário com que construímos a passagem do tempo. É um modo de compor paisagens, não aquelas que se encontram no espaço e ferem os sentidos para que eles as não esqueçam, mas as que só o espírito, preso à cintilação do invisível, pode compor para dar um sentido ao que não tem sentido.
sexta-feira, 26 de agosto de 2022
O sal do silêncio (89)
Eugène Atget, Jardin du Luxembourg, 1902 |
O silêncio é uma terra distante perdida no país do passado. Nele, os homens habitam imersos na serenidade, cobertos pela certeza de que todo o ruído declinará na mais pura e mais desejada mudez. Sentam-se nos bancos de jardim e rodeados pela solidão sentem-se o sal da Terra.
sábado, 20 de agosto de 2022
Crónicas (221) A felicidade
Amelia
C. Van Buren, Profile portrait of woman draped with a veil, 1917 (src L. of Congress) |
O véu
cobria-lhe a cabeça, nunca o rosto. Este oferecia-o ela aos olhos que nos seus
se quisessem deter. Falto à verdade. Não era uma questão de querer, mas de
poder. Movidos pelo desejo ou pela vaidade, muitos pretenderam olhá-la de
frente, submetê-la. Nenhum o conseguiu. Mal os seus olhos se encontravam com os
dela, não tinham outro remédio senão baixarem, vencidos por um poder que não
era humano, diziam. Todos, porém, lhe conheciam pai e mãe. Tão humanos quanto
eles. Os anos passaram e os pretendentes perderam a ousadia, desapareceram.
Restei eu. Não tive mais coragem do que eles, apenas encontrei a hora certa.
Quando a olhei, os seus olhos estavam mortos. A cegueira dela roubou-a à
solidão e trouxe-me uma inesperada felicidade. Até hoje.
quinta-feira, 18 de agosto de 2022
Impressões 103. Ondas
Artur Pastor, Oceano Atlântico, s/d |
Grandes ondas como antigos impérios. Erguem-se e espalham a energia do seu poder, para logo decaírem na babugem do tempo, deixando um rasto de espuma que novas ondas, como antigos impérios, haverão de apagar, muito antes de o sol se pôr e a noite cobrir tudo com a luz pura das estrelas.
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