sábado, 8 de janeiro de 2022

Meditação Breve (173) O insulto

Vespeira, Parque dos Insultos, 1949
Há em todo o insulto uma desfiguração. Não do insultado, mesmo que se vise através da injúria redescrever-lhe a figura com contornos ominosos, mas do insultante. A acção de atingir o outro recai sobre si mesmo, dilui a própria figura, abre uma fenda no seu ser pessoa, por onde entra o vitríolo que a haverá de corroer. Nunca um insulto é desprovido de consequências.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

A Sarça Ardente - 97

Caspar David Friedrich, Winter Landscape with Church, 1811
O fumo do Inverno
desce
sobre o jardim.

Os cedros reverberam
na memória
dos dias luminosos
da infância.

Tudo se suspende
na viagem
entre a invernia
que me traz
da casa do passado
ao porto do presente.

Janeiro de 2022 

terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Impressões 89. Tempo

Alex Teuscher, Time neverending, 2010
A linha do tempo. Ao ouvir a expressão, logo se imagina uma seta disparada do passado, voando em direcção ao futuro, uma linha recta interminável. O tempo humano, porém, pouco tem a ver com essa experiência. Avança, mas também parece voltar a um ponto anterior, num esforço de recapitulação. O eterno retorno do mesmo, porém, não deixa de ser uma ilusão. O melhor símbolo para a impressão que o tempo produz no espírito dos homens será a espiral. Conjuga progresso e retorno e, se olhada com atenção, manifesta o carácter abissal do tempo.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (421)

Kazimir Malevich, Apples Trees in Blossom, 1904
 Sob o azul dos céus
as macieiras florescem.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Meditação Breve (172) Cruzar os braços

George Platt Lynes, Crossed Arms, 1941

Um sintoma de cansaço, um sinal de expectativa, uma recusa de acção? Seja qual for o sentido que se dê ao gesto de cruzar os braços, ele nunca deixa de pertencer a uma fenomenologia dos actos ostensivos, daqueles que pelo seu acontecer querem indicar sempre uma outra coisa. É sempre um gesto que se liga àquilo que o transcende. 

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (71)

Eugène Atget, Rue de l’Hôtel de Ville, 1921
O tempo quase podia ter sido suspenso e o que se vê, a rua, os prédios, a iluminação eléctrica, teria sido coalhado num instante eterno, num silêncio que voz alguma haveria de incomodar, não fora as rodas de um veículo caído em desuso começarem lentamente a rolar, arrastando atrás de si os segundos, depois os minutos e continuando por aí fora, num nunca mais parar da duração. 

sábado, 25 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 96

Gerardo Rueda, Composición, 1959
Sobre a sombra
ergue-se
um dia de luz,
a longa espera
terminada,
o sussurrar do oceano
na memória,
o arder do silêncio
ao abrir-se
no arquipélago
do coração.

Dezembro de 2021 

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Desabrigado

Weegee, Night Shelter, c.1938

Tinha chegado a onde nunca imaginara chegar. Estava só e descobrira que nenhum lugar fora feito, na realidade, para ser o meu lugar. Nenhuma desculpa podia apresentar no tribunal da consciência para me absolver da situação. Tão pouco seria sensato culpar qualquer entidade metafísica que me tivesse predisposto para a ruína. Escolhera, fingindo não escolher, o caminho que me levou a este abrigo. Por incúria, pela vertigem de um desejo de queda. Na hora em que me deitei no banco de madeira, estava reconciliado comigo. Abandonara tudo. Chegara ao centro de mim mesmo. Descobrira que a verdade de todo o homem é ser um desabrigado. Ao adormecer, sabia, pela primeira vez, o que era a vida. Poderia recomeçar. Sem qualquer ilusão.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (70)

Frederick Sommer, Taylor, Arizona, 1945
Quando o sal da vida se retira e a ruína se apossa da realidade, resta a ordem inóspita de um silêncio hostil, fabricado nos interstícios do esquecimento, na distorção da memória, no sufoco de tudo o que retirou cada coisa da insignificância.

domingo, 19 de dezembro de 2021

Meditação Breve (171) A alma da multidão

Alfred Eisenstaedt, Nightime view of crowds gathering outside the Steel Pier, 1941

Grandes querelas teológicas podem vir à luz quando se trata de saber se os indivíduos possuem ou não uma alma. Assunto obscuro e que dividirá, em qualquer credo, ortodoxos e heresiarcas. O que não será objecto de querela, pela sua evidência, é a existência de uma alma na multidão. É a alma de grupo que nasce mal os homens se juntam e cresce como um íman poderoso que, sem cessar, atrai novos membros. É essa alma que conduz as multidões em actos que só elas poderiam realizar, é ela que as leva para a casa que é a sua. Quando a alma, por motivo obscuro, perde a força ou desaparece, a multidão dissolve-se.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (420)

Hiroshi Hamaya, Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan, 1962
 Branca, pura, a neve
sobre o cume da montanha.
Incêndio de água.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 95

Esteban Vicente, Matices del rojo, 1986
O sopro suave do vento
empurra para longe
a sombra
povoada pelas camélias
do meio-dia.

O Sol sorri sobre a cal
do casario.
Sentada sob a tristeza,
uma mulher
sorri no fulgor do silêncio.

Dezembro de 2021

domingo, 12 de dezembro de 2021

Impressões 88. Luz

Thomas Hoepker, Inside the Pantheon. Rome, Italy, 1984

Também na obscuridade se encontra o divino. Basta que a luz irrompa e abra uma clareira na densa floresta das trevas. Nesse choque entre o claro e o escuro, entre a luminosidade e a cerração, de súbito manifesta-se a voz de uma alteridade radical pela qual se pode reconhecer a marca daquilo que é divino.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O sal do silêncio (69)

Brassaï, Le jardin des Tuileries la nuit, Paris, 1931-32
Eis a noite que sobe do fundo da terra, do abismo que ninguém conhece, para a envolver com o sal da escuridão, para trazer um instante de sossego, para encerrar dento do mistério aquilo que à luz do dia era claro e sem enigma.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Meditação Breve (170) O enigma da esfinge

William Holman Hunt, The Sphinx, 1854

Não há qualquer enigma na esfinge. O enigma da esfinge reside naquele animal que, apesar de ainda ser uma animal, é portador de razão. É desta que nasce o enigma da esfinge, como todos os outros. O espanto, a perplexidade, o desejo e os limites da razão concorrem para que, de súbito, surja no pensamento do homem uma esfinge e, no terror do seu coração, o enigma.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Haikai do Viandante (419)

Vincent Van Gogh, El puente de Trinquetaille, 1888
 Pontes sobre os rios
de súbito unem as margens.
Fogo e fantasia.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A Sarça Ardente - 94

Charles Émile Jacque, Shepard with Flock
Pequenos pastores de barro
apascentam rebanhos
sobre o musgo
verde do presépio.

Esperam a noite que trará
luz à luz do dia,
música
ao súbito silêncio dos anjos.

Dezembro de 2021

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Impressões 87. Néon

Alfred Eisenstaedt, Decorative multiple exposure of neon signs at night, 1937
Nada mais equívoco do que o néon na noite. Anuncia-se com mais pura e luminosa das luzes e não passa de uma emanação exuberante daquilo que nas trevas há de mais obscuro.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Meditação Breve (169) A condição humana

Frank Horvat, Beggar, Calcutta, India, 1953
Eis a nossa condição. Somos todos, de um ou de outro modo, pedintes. Uns estendem a mão para a esmola, outros para o assalto, outros ainda para o fruto do esforço. Só por manifesta cegueira se poderá pensar que existe uma diferença essencial entre as diversas modalidades de estender a mão. São moralmente diferentes, mas ontologicamente todas elas são a manifestação da nossa radical finitude, da nossa nunca superada dependência, da nossa nunca conquistada autarquia. Ricos e pobres, reis e súbditos, todos são pobres pedintes.

sábado, 27 de novembro de 2021

O sal do silêncio (68)

Aaron Siskind, Chicago Facade 7, 1960

Na repetição do idêntico não existe apenas a cadência de um ritmo, mas uma aproximação assimptótica ao silêncio, pela contínua eliminação do diferente, o qual, com aquilo que tem de inusitado, traz a mácula do ruído ao sal da serenidade.

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Histórias sem nexo 27. Sem grinalda

Josep Guinovart, Agramunt IV, 1976

Grácil a Graciela, no grémio, grafou grande grosseria. Gregário, o Gregório grifou como um Graco. Grunhiu o Grimaldo, o grotesco, com a grua na greda, enquanto a grossa Griselda, em greve, greguejava com grima. Em grupo, a gripe grudou-os na gruta gris. Gritaram, grilaram, griparam, sem grinalda.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

A Sarça Ardente - 93

Saul Steinberg, November, 1965
Os dias de Novembro
deslizam, mudos,
pela sombra
das acácias,
pelas folhas secas
das tílias,
pelos fios que vão
dos meus olhos
à luz do teu coração.

Novembro de 2021

domingo, 21 de novembro de 2021

Meditação Breve (168) A árvore da vida

Diane Arbus, Xmas tree in a living room, Levittown, Long Island, 1963
Quando se tenta perceber quando a árvore se imiscuiu na vivência do Natal, perde-se o essencial dessa associação. Simbolizar o nascimento de Cristo pela árvore é indicar que se a queda dos homens está associada a uma árvore, a da ciência do bem e do mal, então a sua salvação também depende de uma outra árvore, como se a criança nascida no presépio de Belém se enraizasse na terra, que é a carne, para se elevar ao alto e, desse modo, ser a nova árvore que supera a que foi motivo de queda para os homens. Para além da sabedoria do bem e do mal, diz-nos a árvore de Natal, existe uma outra, a da ciência da Vida, cuja interdição agora está levantada.

sexta-feira, 19 de novembro de 2021

Haikai do Viandante (418)

Toni Schneiders, Gräser im Fluss, 1974
 
Ervas sobre o rio
cobrem o fluxo das águas.
Sonhos e miragens.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Haikai do Viandante (417)

Aaron Siskind, Gloucester, 1944
 
A luva caída

na corrosão do soalho.

Vento de ruína.

domingo, 14 de novembro de 2021

Micronarrativa (57) A mulher dupla

Ilse Bing, Self reflection, 1947
Solteira, cansou-se da solidão. Arquitectou diversas soluções. Das menos ousadas, às mais radicais. Achou as primeiras frouxas, as segundas hiperbólicas. Foi então que lhe ocorreu a solução. Saiu de casa, ganhou distância suficiente, apontou a máquina à janela do quarto. Disparou. Captou si uma dupla imagem, uma em cada vidro. A partir daquele momento, nunca mais estaria só. Se ficasse solteira, seriam duas. Se casasse, o marido seria bígamo, mas isso já não lhe importava.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

A Sarça Ardente - 92

Edgar Degas, Casas junto al mar, 1869
Uma manhã limpa
a lembrar
os dias de Inverno,
se o Sol afasta
as nuvens
para cintilar
sobre o silêncio
e o canto nupcial
adormecido
nas teias de tule,
no lar da memória.

Novembro de 2021

terça-feira, 9 de novembro de 2021

Meditação Breve (167) Cinema

Hiroshi Sugitomo, Cabot Street Cinema, Massachusetts, 1978

De modo bem diferente do teatro e da ópera, em que a luz tem um papel instrumental, o cinema não é outra coisa senão luz, em diferentes modulações, que chega aos olhos dos espectadores e é descodificada em imagens. Fazer cinema parece ser uma forma de esculpir a luz. Esta é de tal modo importante que, para que um filme seja verdadeiramente sentido como tal, o espectador tem de estar mergulhado na escuridão da sala. A luz que banha ecrã salva-o das trevas mais densas. Todo o filme é uma luta contra as trevas.

domingo, 7 de novembro de 2021

Biografias 25. O motociclista

Martin Munkacsi, Motorcycle racing, Europe, c. 1929

Tenho pressa de chegar. A meta espera-me. Com ela, a vitória, a coroa de louros, a certeza de que sou, entre todos, o mais corajoso, aquele que mais arrisca a vida para encurtar o tempo, para ser o mais rápido. Para chegar a onde? Que pergunta. Para chegar à meta, para fugir ao que fui, para me entregar nos braços do que serei, para não ter de encarar a minha imagem devolvida pela superfície polida de um espelho. Se suportasse aquilo que sou, se aceitasse a imagem que me pertence, que necessidade teria de correr desenfreado e ser o primeiro a chegar a lado nenhum.

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

Meditação Breve (166) O terror

Lee Miller, SS Prison Guard, Buchenwald, 1945
Não é quando se pratica o terror que este se grava no rosto e emerge como o símbolo da presença do mal no mundo. É na hora em que se é atingido, em que um verdugo se ri ou uma vítima se vinga, que ao rosto chega, numa máscara de espanto e horror, o sinal da presença desse mal nunca compreendido, nunca suportado, mesmo por aqueles que o praticaram. O terror é sempre pessoal e intransmissível.