sábado, 20 de julho de 2019

Micronarrativa (21) O peso da sabedoria

Petr VelkoborskýLittle schoolboy, 1987
A sabedoria é uma coisa boa, muito boa. É o que me dizem lá em casa e a professora não pára de o repetir. Quase acreditei, mas descobri que era uma afirmação falsa, palavras para enganar crianças. A sabedoria é uma coisa pesada, tão pesada que, ao entrar no nosso cérebro, torna-o cada vez mais pesado. Quando estudamos demais corremos o risco de não conseguir levantar a cabeça. Temos de ter cuidado. Nada pior que um homem que não pode erguer a cabeça.

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Poesia do Viandante (730)

William Congdon - Destroyed City (1949).
730. cidades circuncidadas


cidades circuncidadas
pelo terror
púrpura perpétua
engalanada de ervas
e destroços
cidades cantadas
na tômbola
sinuosa da solidão
castas cidades
cidades de cimento e sal

(28/12/2016)

quarta-feira, 17 de julho de 2019

O sal do silêncio (22)

Harry Callahan, Chicago, ca.1950
As aves partiram, os ninhos foram deixados ao abandono. O silêncio cresceu e, como sal, depositou-se na brancura da neve. Árvores irrompem da terra, elevam-se aos céus. Os seus ramos enegrecidos e descarnados esperam. O tempo passa vagaroso, movido pelo lento murmúrio com que o vento em vão procura as folhas que deseja acariciar.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Micronarrativa (19) Vingança

Cecil Beaton, Three models dressed in Ladurée macaron colours, 1948
Uma lê, a outra reza. De que estou à espera? Sempre podia pegar num livro ou fazer uma oração, mas ler para quê e rezar a quem? Aguardo que se cansem. Quando quiserem falar comigo, direi que me dói a cabeça, levanto-me e deixo-as aí, abandonadas e entregues aos devaneios com que me esquecem.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Haikai do Viandante (374)

Clara Gangutia, Arco-íris, 1991
Sob o arco-íris
a vida corre em silêncio.
Da terra ao céu.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Poesia do Viandante (729)

Adolph Gottlieb - Amanhecer (1971)
729. no ardor do astro

no ardor do astro
o dia amanhece
transborda de luz
abre a úlcera
e urde
os tentáculos
que trarão
o navio da noite

(28/12/2016)

quarta-feira, 10 de julho de 2019

Diálogos morais 13. Escuta

Josef Sudek, St. Vitus cathedral, Prague, Czech Republic, ca. 1926-27
- Ouviu?
- Não, não ouvi nada.
- Apenas um rumor, um sussurro.
- Talvez seja algum animal, um rato, um esquilo perdido.
- Não, o som desses conheço-o muito bem.
- ...
- Olhe a luz, veja como os raios penetram na catedral.
- Sim, mas não oiço nada.
- Se não consegue escutar a luz, o que conseguirá ouvir?

terça-feira, 9 de julho de 2019

Micronarrativa (18) O medo do encontro

Guy Bourdin, Fashion photography, 1970s
Ela queria sentar-se na sua própria sombra, mas um medo ancestral impedia-a. O que seria dela se, esmagada, a sombra se retirasse e ela, sem defesa ou saída, ficasse abandonada à tirania da luz? Então, quando o desejo a impelia, segurava-se a qualquer coisa que impedisse o corpo e a sombra de se encontrarem.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Haikai do Viandante (373)

Richard K. Hofmeister, Castle Enshrouded by Mist, 1979
Névoa e silêncio
cobrem o velho castelo.
Chão de pedra fria.

domingo, 7 de julho de 2019

Diálogos morais 12. Asas

Andrzej Mroczek - Nuit sur la Place du marché principal de Cracovie, 2004, (Sculptures d’Igor MITORAJ)
- Também te arrancaram os braços.
- É verdade.
- E as asas, o que é feito delas?
- Nunca as tive.
- O sexo, porém, sempre to permitiram.
- Não tenho a certeza.
- Não?
- Por causa dele, disseram-me, nunca teria asas.

sábado, 6 de julho de 2019

Poesia do Viandante (728)

Julian Schnabel - Always Virtue (1988)
728. virtudes são vírgulas

virtudes são vírgulas
no vendaval
do vício
                fogos-fátuos
na fogueira
da folhagem
                reticências
no rumorejar
do ruído

(28/12/2016)

sexta-feira, 5 de julho de 2019

O sal do silêncio (21)

Eve Arnold, Silvana Mangano at the Museum of Modern Art, New York, 1956
Há rostos silenciosos, e no silêncio que os habita esconde-se a luz de todos os mistérios do mundo. Em nenhuns outros se é capaz de imaginar uma personagem da tragédia grega. O silêncio é a máscara que permite que a voz do destino fale para o espectador atónito e que, quase incrédulo, espera a revelação da verdade.

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Meditação Breve (105) De pernas para o ar

John Vachon, Children playing at a playground, Irwinville school, Georgia, 1938
Por vezes, como se dentro delas falasse um forte instinto, as crianças sentem que alguma coisa não está bem. Então, colocam-se de pernas para o ar e esperam, não sem razão, que a verdade lhes seja revelada.

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Haikai do Viandante (372)

George Pierre Seurat, Landscape with Horse, 1882
Um cavalo come
a erva da Primavera.
O homem espera.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Micronarrativa (17) A sombra do desejo

Ray K. Metzker, Philadelphia, 1964
Ela nunca sabia quem iria encontrar ao virar de uma esquina. Umas vezes, não estava lá ninguém. Outras, passava por conhecidos e desconhecidos. O encontro mais decisivo foi aquele em que se deparou com a sombra do seu próprio desejo.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Poesia do Viandante (727)

Norman Narotzky, Last Light, 1990
727. last light in the sky

last light in the sky
luz e lírios
cisnes selvagens
desdobram-se
nas docas
lançam âncora
na areia lívida
the livid sand
dos areais da língua

(28/12/2016)

domingo, 30 de junho de 2019

Impressões 35. O hálito da Terra

Jeanne Carbonetti, Aliento de Primavera, 1988
Também a Terra possui um hálito. Chega até nós não na forma de um aroma, mas como um espírito que procura uma forma, como uma alma que se aproxima de um corpo e, fulgurante de luz e cor, entra nele pela porta aberta do olhar extasiado.

sábado, 29 de junho de 2019

Protecção

Richard Peter, Dresden 1945. View from the city hall tower, 1945
Não era um anjo. Longe disso. Foi alguém que, quando começaram os bombardeamentos, decidiu ir para o cimo da torre e observar. Era corajoso e, diz-se, não odiava os atacantes. Talvez compreendesse as suas razões. A princípio, chorou e sentiu uma dor lancinante a germinar mesmo no centro do seu ser, enquanto a cidade, a cidade onde nascera e que amava sobre todas as outras, se desmoronava. Depois, as lágrimas secaram, a dor desapareceu, o coração, que sempre fora benevolente, empederniu. Só assim suportava o que via. A partir do coração, a pedra cresceu a cada bombardeamento, tomou-lhe conta do corpo, paralisou-o. Hoje, é a estátua que ali vê. Protege-nos com o seu olhar de mármore.

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Diálogos morais 11. Saberes

Karlheinz Weinberger, Rebel Youth, 1950s

- Sais comigo, esta noite?
- Não, não me parece.
- Tens já programa?
- Não, nem por isso.
- Então, sabes que…
- Preferia não saber.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O sal do silêncio (20)

Abbas Kiarostami
De ramo em ramo, o pássaro do silêncio tece, com linhas de vento, a fina rede que colherá o fogo da árvore da Primavera. 

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Poesia do Viandante (726)

Norman Narotzky, Down to the Sea, 1983
726. o silêncio marítimo

o azul marítimo
da água
ilumina-se
no silêncio
percutido
pelo tambor
de areia e algas

(27/12/2016)

terça-feira, 25 de junho de 2019

Meditação Breve (104) Realidade humana

George Tice, Horse and Buggy, Lancaster, PA 1961
Contra o céu amplo e fundo, tudo o que pertence ao homem é pequeno e risível. Os seus objectos, os seus animais, a sua posição no mundo, até o seu desmedido orgulho e a nunca justificada vaidade.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Haikai do Viandante (371)

Modesto Urgell Inglada, Apunte de puesta de sol

No céu cor-de-rosa
a noite caminha alegre,
Fecho a porta e canto.

domingo, 23 de junho de 2019

Diálogos morais 10. Das coisas necessárias

Fred Boissonnas, Quiet Greece, 1903-1930
- O que queres daqui, rapaz?
- Não tem uma moeda?
- Para que raio queres tu uma moeda?
- Por que raio não a haveria de querer?
- És espevitado. Não há aqui moeda nenhuma.
- E uma nota, das pequenas?
- Desanda daqui.
- E um cigarro, também não há?

sábado, 22 de junho de 2019

O sal do silêncio (19)

Eugène Atget, Rue de la Montagne-Sainte-Geneviève, 1924
O chão brilha sob a luz mesclada de névoa, espera pelo viandante perdido que, olhando estupefacto para a direita e para a esquerda, não sabe já em que mundo se encontra. Se naquele de onde partiu, se naquele onde haveria de chegar.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Poesia do Viandante (725)

Norman Narotzky - All Life Is There (1984)

725. flores abandonadas

flores abandonadas
no herbário
da infância
sangram odores
de óleo
por poros de seda
secam se a mão
as toca
com a variz do vento

(27/12/2016)

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Impressões 34. O corpo e a dança

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye leaping, 1947
Dançar talvez seja a mais perigosa das ocupações humanas. Ao elevar-se, a bailarina vai perdendo um a um os seus corpos, como se alma, no momento da elevação, se quisesse despir dos mil vestidos que compõem o seu guarda-fatos. O perigo está no momento em que pousa na terra. Quantos corpos terá a alma dançante perdido? Os que recuperou e uniu em si ainda são suficientes para que tenha algo para dar vida e fazer rodopiar no palco perante uma plateia suspensa e tremente?

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Incendiada

Leonard Misonne, Bad Weather, 1909
Nos dias de chuva, ela passeava-se sob um guarda-chuva de cor sóbria. Não havia no seu rosto, para além da beleza, um sinal que a diferenciasse de qualquer um de nós. A família era conhecida e tinha influência assinalável na cidade. O estranho era que nem a beleza nem a influência lhe atraíam pretendentes. Nessa tarde de que me fala, chovia e ela fez o seu passeio habitual. Sentou-se, contra o costume, num banco de jardim. De dentro da gabardina, retirou uma garrafa, regou-se com o conteúdo e acendeu um fósforo. As chamas consumiram-na de imediato. Quando chegaram perto do sítio onde estava, não havia qualquer vestígio da sua existência. Nem sequer cinzas. Não há provas de que tenha morrido.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Haikai urbano (48)

William Degouve de Nuncques, Nocturne in the Parc Royal, Brussels

Cidade tomada
pela escuridão da noite.
Fulgor da sombra.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Diálogos morais 9. Descrições

Raoul Hausmann, Les photographes Raoul Hausmann et Marthe Prévot,1957

- Vês a mesma coisa que eu?
- Não sei o que vês. Se descreveres, talvez...
- Descrever?
- Sim, dizeres o que vês, as características, essas coisas.
- Impossível.
- Não entendo.
- Se eu descrevesse estaria já a falsificar o que vejo, a mentir-te e jurei nunca te mentir.