sexta-feira, 23 de junho de 2017

A sombra

Aart Klein - Skater, Holland, 1970s

Padeci desse mal que atormenta muita gente com propensão para a metafísica. Não, não se tratam desses sempre prontos para a arena da argumentação. Essa patologia tem origem diversa. A minha, como a de muitos outros, era fruto das variações sobre o tema quem sou eu? Tem razão, uma patologia musical. Música e metafísica são irmãs, embora já poucos o saibam. Tudo isso, porém, deixou de me interessar. Acertou. Curei-me. A cura? Nasceu da revelação da verdade. Patinava, como todos os anos no Inverno, sobre o lago gelado. De repente, olhei e vi a minha sombra no gelo. Tudo se iluminou. Eu não passava da emanação da minha sombra. Uma sombra de uma sombra, talvez.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Haikai urbano (14)

Robert Doisneau - Place de la Concorde, Paris, c. 1940

manhã de neblina
sobre a praça da concórdia
rumores de inverno

domingo, 11 de junho de 2017

Poemas do Viandante (633)

Manuel Viola - Batalla al amanecer (1979)

633. as labaredas da manhã

as labaredas da manhã
no labor da sombra
deslizam
pela púrpura da noite
e cambaleiam
em céu de cinza
tisnado de escuridão
e cântaros de luz

(11/12/2016)

sábado, 10 de junho de 2017

Haikai do Viandante (325)

Reuben Wu - Light Painting With A Drone

floresta de pedra
sobre o lago do silêncio
luz água e calcário

domingo, 28 de maio de 2017

Viagem para si

Will Faber- Buscándome a mí (1968)

Buscar-se a si mesmo é como a tarefa de retorno de Ulisses à pátria. Múltiplos são os obstáculos que, durante a vida, se interpõem no caminho daquele que empreende a viagem de regresso si. Muitos nem se apercebem que há uma viagem a fazer. Outros soçobram no caminho vítimas de ilusões. Por fim, há os que empreendem a viagem para Ítaca, sabendo-a sempre ali e sempre distante. Sabendo que a Ítaca que encontram, sendo real, ainda é uma imagem e um símbolo da Ítaca a devem chegar. Descobrem que a viagem é infinita.

sábado, 27 de maio de 2017

Poemas do Viandante (632)

Eduardo Gruber - Bajos Fondos (1990)

632. o fundo salitrado da noite

o fundo salitrado da noite
ruge-me nos dedos
se toco a parede
e grãos de areia
e cal deslizam
pelas horas
na praia de poeira
na simetria de salitre

(11/12/2016)

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Mundos voláteis

Toni Schneiders - Karussell, Dom von Hamburg, sd

Mundos voláteis manifestam-se, por breves instantes, e logo desaparecem. Aquilo a que chamamos mundo talvez seja apenas esta volatilidade. Instantes de manifestação, como se fosse uma hierofania, para logo soçobrar no não manifestado.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

Haikai urbano (13)

Alfred Ehrhardt, Lauben am altstädter Ring, Prag, Böhmen und Mähren, 1941

na cidade velha
arcadas, sombras, segredos
homens em silêncio

terça-feira, 23 de maio de 2017

Caminho

Hiroshi Sugitomo - Strait of Gibraltar, 1996

A linha que separa é também a que une. Quando se diz a linha do horizonte, o pensamento abre-se a uma dupla experiência, a do discernimento das diferenças ou a da fusão na identidade. Nestas duas experiências encontram-se três caminhos para o homem. A da especialização numa diferença, a da imersão muda no idêntico, a da tensão contínua entre o diferente e o idêntico. A cada um o seu caminho.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Poemas do Viandante (631)

Yves Klein - Vent Paris-Nice (COS 10) (1960)

631. o vendaval de neve

o vendaval de neve
desliza
nas escamas
da memória
murmúrio de sedas
no veludo
do tempo
água-forte que traça
figuras enlouquecidas
                no bronze
das estátuas
                               ou das estrelas

(10/12/2016)

domingo, 21 de maio de 2017

Pobres e ricos em espírito

Jill Freedman, Richest man in the world, 1970s

Na vida material, aquele que move a generalidade dos seres humanos, a riqueza reside no acumular. Na vida espiritual, pelo contrário, a verdadeira riqueza é pobreza. Reside no abandonar. Abandonar inclusive aquilo de que o espírito se apropriou e toma como propriedade sua. Um espírito que é proprietário, mesmo que seja apenas e só de bens espirituais, é um espírito submetido à lógica do mundo material, às regras do mercado. Só se tornará efectivamente rico quando se despir de tudo isso e se tornar um pobre de espírito, um sem-abrigo que não espera nada e vive para cada instante que a vida lhe concede, .

sábado, 20 de maio de 2017

O sonho

René Burri - Town of Shanghai, China, 1989

Era um sonho recorrente, daqueles que persistem ao longo da vida. Um quarto, um televisor e nele um rosto, parte de um rosto, para ser mais preciso, onde se abria um olho. Observava-me e seguia os meus passos dentro do quarto. Sentia incómodo, mas não medo. Não sei se o sonho era demorado, parecia-me que durava uma eternidade, até que acordava e não havia olho, rosto ou sequer um televisor. Nunca tive uma televisão. Até hoje, até agora que acordei e você está aí a olhar-me. Reconheço bem o olho que me espiou, o corte de cabelo que eu percebia no sonho e nada explica o que faz um televisor de ecrã estilhaçado no meu quarto.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Meditação breve (32) - Esperança

Pete Turner - New Dawn, Heimaey, 1973

O momento em que o dia irrompe é sempre o símbolo de uma esperança. A exuberância da luz rasga o véu da escuridão e anuncia aos homens um novo começo, e a esperança não é mais do que isso, o desejo de um novo começo, a possibilidade do inédito a redenção pelo retorno à inocência.

quinta-feira, 18 de maio de 2017

As mãos

Stephan Vanfleteren

Eis as minhas mãos. São assim, já não me lembro como foram. Como eram pequenas e cresceram acompanhando o ritmo do corpo, não o sei. Tornaram-se poderosos, diz-me a memória que resta. Pegaram no mundo e ergueram-no, tocaram em corpos que enlouqueceram, imagino. Agora são um mar de rugas, a pele gasta, uma vontade de inércia. Dantes, guiavam-me, iam sempre à minha frente. Hoje não sei o que fazer com elas. Olho-as, mas não sinto nostalgia. Dizem-me que elas teriam muito a contar. Talvez, mas a verdade é que quase não me lembro. São apenas umas mãos escavadas pela enxada do tempo.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Poemas do Viandante (630)

Yves Klein - Anthropométrie suaire sans titre  (ANT SU 3) (1960)

630. a borboleta desce

a borboleta desce
miraculada
de cores
no alvéolo branco
do ciúme
e estende a teia
aos amantes
no vinho ébrio
borboletado
de janeiro a janeiro

(10/12/2016)

terça-feira, 16 de maio de 2017

Haikai urbano (12)

John Atkinson Grimshaw - Liverpool Docks, 1880s

navios do passado
chegam na luz do futuro
cidade de sombra

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Olhares

Unknown Photographer - The first day of school, Portugal, 1936

A escola é, muitas vezes, um treino sistemático para aprender olhar para baixo, como se todo o interesse dos homens estivesse na terra. Por vezes, alguém ousa olhar para cima e é nesse momento e nesse gesto que o homem adquire rosto, onde se manifesta o espírito, e um outro sentido para a vida se torna manifesto.

domingo, 14 de maio de 2017

Meditação breve (31) - Ser

Barbara Brändli - Untitled, from Sistema Nervioso (1974-5)

Não basta ser, é preciso querer ser. Não basta querer ser, é necessário afirmá-lo e inscrevê-lo na realidade. Um facto que se torna projecto para se tornar ser.

sábado, 13 de maio de 2017

Os caminhos do espírito

 Francis Wu - Shellfish Catching at Dawn, undated

Basta uma simples fotografia de uma actividade material para se perceber que a vida do espírito possui múltiplos caminhos. Antes das sendas singulares, estão vias mais gerais, a que se dá o nome de culturas. Estas conferem enquadramento e sentido para a aventura individual. O caminho espiritual, seja em que área for, é sempre um processo de singularização. As culturas mais do que dispositivos de diferenciação são meios de intermediação entre o universal e o singular.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Poemas do Viandante (629)

Lucio Muñoz - 7-86 (1986)

629. o pó da penumbra

o pó da penumbra
levanta-se
e trémulo deixa
entrever
o açafrão da paisagem
na rota rasgada
pelo tímido tremor
da chuva de novembro

(10/12/2016)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Haikai do Viandante (324)

Gustave Le Gray - Groupe de Navires - Cette, Mediterranée (1857)

silêncio no porto
são águas da primavera
os navios parados

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Sombras

Loomis Dean: Women modeling apres-ski fashions designed by Fred Spillman cast long shadows on the Palace Hotel’s ice rink. St. Moritz, Switzerland, 1958

Acha curiosa a fotografia? Tem razão, claro. Ela merece o nosso olhar atento, mas não é por aquilo que somos levados a pensar. A beleza das mulheres, a luz e a projecção de grandes sombras sobre a superfície gelada. Em tudo isso, há um estranho equívoco. Os nossos hábitos não nos deixam perceber a realidade. Estas sombras já estavam impressa no gelo há muito. Sempre que a havia luz, eram visíveis. Até que um dia, juro que o vi, começaram a formar-se estranhas estátuas de gelo, quando estavam completamente formadas, ouvi vozes. Falavam entre si. No dia seguinte, quando a luz voltou, elas lá estavam. De carne e osso. Aquelas mulheres, tão vivas, são sombras das próprias sombras.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Haikai urbano (11)

Alexey Titarenko - Untitled, (White Dresses), St. Petersburg, Russia (1995)

no vazio da rua
passeiam dois anjos brancos
os homens esperam

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A fuga

Heinrich Kuhn

Ficava longas horas a olhar as águas do lago. Não pensava em nada, olhava e entregava-me a um estranho sentimento de nostalgia. Sempre que ali estava, dentro de mim nascia a certeza de que há muito eu teria habitado o lago. Quero dizer: o lago teria sido a minha casa e a água o meu elemento. Com o passar das horas, o sentimento transformava-se em convicção e uma estranha evidência crescia em mim. Então, levantava-me e corria para casa. Um dia ouvi, vinda do fundo, do lago a voz da minha mãe, morta há muito. Chamava-me para casa. Levantei-me e ainda dei uns passos em direcção à água. O crocitar de um corvo, contudo, fez-me parar. Fugi, é essa a palavra, e nunca mais voltei.

domingo, 7 de maio de 2017

Poemas do Viandante (628)

Lucio Muñoz - 22-84 (1984)

628. um lago secreto desliza

um lago secreto desliza
sob pedras
de mármore
respira a textura
da escuridão
rumoreja junto
ao abismo aberto
na líquida luz do aluvião

(10/12/2016)

sábado, 6 de maio de 2017

A fresta

Gilbert de Chambertrand - Paris Street, 1930s

De que se fala quando se fala de vida espiritual? Essencialmente de três coisas. De busca, de fresta e de luz. Ao homem foi dado, como circunstância da sua vida, o reino da sombra. Por vezes, afunda-se nas trevas exteriores ou interiores. A vida espiritual, porém, é a busca sem fim da fresta, uma pequena fresta, por onde a luz possa entrar na sua vida. Se a queda nas trevas é o apagamento de todo o sentido, a busca de uma fresta por onde a luz possa penetrar é a viagem incerta para a terra do sentido e da significação. O que dá sentido a uma existência? Qual a sua significação?

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Meditação breve (30) - Máscara

Herb Ritts - Mask, Hollywood, 1989

Na máscara, encontramos não um disfarce mas o verdadeiro rosto de quem a usa. Sem ela, tudo o que se dá ao olhar é equívoco ou, para ser mais exacto, suspeito.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Haikai do Viandante (323)

Rockwell Kent - Admiralty Inlet (1922)

secreta enseada
onde os meus olhos se perdem
um resto de inverno

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Meditação breve (29) - Do lugar

Marcelo Montecino - Untitled, Santiago, 1970

O drama de ser posto a um canto. E todo este drama nasce de se se julgar merecedor de ocupar o centro, da ilusão que há uma diferença entre centro e periferia, da ilusão que o nosso lugar é onde todos nos vejam, não se percebendo que é bem mais importante ver do que ser visto.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Poemas do Viandante (627)

Francisco Soto Mesa - 9-98-1 (1998)

627. ondas de seda

ondas de seda
desdobram-se
no segredo das glicínias
rolam na rua
e esperam
na luz do castiçal
o relâmpago do remorso

(10/12/2016)