segunda-feira, 13 de março de 2017

Poemas do Viandante (617)

Morgan Russell - Synchromy in Orange: To Form (1913-14)

617. o ofício dos anjos

o ofício dos anjos
tinge-se
de cores cantantes
e vacilantes hossanas
brotam em forma
de frio
no fogo laranja
na fogueira azul
no fogaréu vermelho
que cresce
na fímbria da flor

(08/12/2016)

sábado, 11 de março de 2017

Haikai Urbano (5)

Ángel Orcajo - Arquitecturas IV (1986)

impérios de vidro
em torres frias de metal
um anjo acordou

sexta-feira, 10 de março de 2017

A porta aberta

William Henry Fox Talbot - The Open Door (1844)

Em todos estes anos quase sempre vi a porta aberta e a vassoura encostada à ombreira, tal como as vê daqui. A casa parece imutável, conheço-a assim há mais de cinquenta anos, mas quando era criança os mais velhos diziam a mesma coisa. O tempo não passa por ela. É o que se diz. E ninguém se aproxima? Raramente. Conheci dois, com um intervalo de trinta anos, que se aproximaram e entraram. De ambas as vezes, as pessoas ouviram a porta bater e viram-na fechada durante semanas. Depois voltou a abrir-se. E eles? Ninguém os tornou a ver e não se encontraram voluntários para os ir procurar.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Poemas do Viandante (616)

Javier Calvo - Itinerario que conduce al invierno (1974)

616. caminhos de inverno

caminhos de inverno
escadas de musgo
e terra
batidos pela chuva
do lírio de bronze
a arder
no húmus da madrugada

(08/12/2016)

quarta-feira, 8 de março de 2017

Meditação breve (18) - Noite

JCM - Anoitecer em Torres Novas (2016)

O homem não anoitece, nasceu já noite cerrada. Nele não há crepúsculos. Por vezes, uma súbita luz ilumina-o, mas isso é uma dádiva para que possa suportar sem desfalecer a noite que é.

terça-feira, 7 de março de 2017

Desejo

John McKirdy Duncan - Pensive (1920)

A que lugar pertenço? À terra ou ao mar? Quando chegam os dias de sol, tão poucos, felizmente, passeio pela praia e olho o mar. O azul das águas e o som das ondas acordam em mim uma estranha nostalgia, como se me segredassem que o meu reino não é a terra mas a água. Então, olho o azul marítimo e oiço uma voz. Diz-me: Vem. Espero-te há muito. E todo o meu corpo pede para entrar nas águas. Tremo e quando me dirijo para o mar uma gaivota grasna ou uma criança grita, por vezes é o latido de um cão. Então fico presa à terra, os pés incapazes de se mexer, até que a noite chega, o desejo se quebra e o corpo me leva para casa.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Haikai do Viandante (317)


nuvens sobre nuvens
anunciam a tempestade
silêncio de inverno

domingo, 5 de março de 2017

Graffiti

Brassaï - Graffiti, Paris (1944-45)

Há em muitos graffiti que poluem as paredes das nossas cidades uma revelação espiritual que raramente se tem em conta. Não me refiro aos que pretendem transmitir mensagem significativas e socialmente reconhecíveis, mas aos que desejam apenas exprimir, num gesto que derrama tinta sobre uma parede, uma emoção ou um sentimento. Traduzem um mal estar, uma opressão da esfera emotiva pela esfera significativa, uma impossibilidade de conferir sentido quando tudo parece entrar em derrocado. Resta então o grito silencioso jogado numa parede. De certa maneira, há um retrocesso, um recuo do campo da interacção comunicativa para o da mera expressão, mas esses mesmos graffiti mostram que o espírito, também ele, se sente preso nos ardis da semântica e nas regras licenciosas da gramática.

sábado, 4 de março de 2017

Poemas do Viandante (615)

Eusebio Sempere - Invierno (1965)

615. o jardim inclina-se

o jardim inclina-se
no inverno
ergue túlipas
entre rosas
e na terra de saibro
abrem-se covas
onde se enterra
a luz azul
e grave de um cravo

(08/12/2016)

sexta-feira, 3 de março de 2017

Meditação breve (17) - Rebelião

Carlos Calvet - Rebelião (2008)

Uns vêem a rebelião como um princípio de esperança; outros, como a consequência do desespero. Na verdade, a rebelião é apenas o sinal de que nada é sólido e tudo o que parece estável e eterno se pode fundir no rio do tempo.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Meditação breve (16) - Prisão

Tal-Coat - Auto-retrato (1980)

Mais importante do que salvar ou perder a face é não ter face. Nem boa nem má reputação. Preocupar-se com a face ou a reputação é ainda um sinal de que se está preso na opinião do mundo.

quarta-feira, 1 de março de 2017

Haikai Urbano (4)

Nadir Afonso - Le Lac de Toronto (1984)

a cidade cresce
na luz das águas do lago
cimento e sombra

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (614)

Marcel Duchamp - Disc em movimento - Rotolief

614. um disco em delírio

um disco em delírio
desenha
uma rota de colisão
e rodopia
rodopia
tomado pela cólera
de um coral
preso ao fundo
negro
negro da escuridão

(08/12/2016)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A sombra exausta

Bill Jacklin - Argus I (with Shadow) (1985)

Já não posso estar aqui. Durante muitos anos, pode crer, este foi o meu lugar. Cansada, sentava-me nesta cadeira. Sempre no mesmo lugar junto à parede. Via a luz que entrava na casa. Gostava, em particular, dos crepúsculos, da sensação do mundo a desvanecer-se na noite. Agora, cada vez que aqui me sento, é um tormento. Sinto umas mãos nas minhas costas. Empurram-me como se tivesse perdido o direito a sentar-me na minha cadeira. Se descobri quem me empurrava? Sim. É a minha própria sombra. Que desapareça, grita. De tanto conviver comigo, está exausta e não me suporta. Chegou o tempo dela se sentar na cadeira e descansar, afiança, enquanto me empurra.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Da casa do espírito

Lajos Kassák - IV. Aristocratas e Castelos (1920)

Os castelos perderam sentido e com eles também o perderam as aristocracias. Um certo espírito está sempre ligado a um certo tipo de habitação. Quando a casa perde o sentido morre também o espírito que a habitava e lhe dava vida. Mas o espírito não é imortal? Não está ele para além do corpo e da morte? Não e sim. Sempre que o espírito encontra albergue numa certa moradia limita-se e torna-se mortal. O tempo e a história dar-lhe-ão o fim que já está inscrito na sua limitação. O espírito imortal , esse não tem onde habitar, não procura morada nem lugar de repouso. Como o vento, ele corre pela terra. Ora está no deserto, ora sopra do cume das montanhas. Vagabundo, sem eira nem beira, miserável e sem casa onde habitar, esse é o espírito imortal.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O desejo de voar

Tal-Coat - Vuelo (1973)

O desejo de voar que habita os homens não se deve a uma propensão para imitar as aves mas a uma ânsia de libertação. Libertar-se das limitações do corpo e do império da gravidade. Voar é então um devaneio da razão sobre as condições da nossa humanidade. No entanto, este sonho de se libertar da prisão imposta pela densidade da carne é apenas o prelúdio de uma compreensão do homem como espírito. No voo a espécie humana simboliza a graça do espírito, a graça de um mover-se que a eleva acima da condição terrestre e a abre para o incomensurabilidade da condição celestial.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (613)

Felo Monzón - Composición cinética (1965)

613. o lirismo do labirinto

o lirismo do labirinto
leveda
em traços negros
e traz aos olhos
névoas
neblinas matinais
a combustão
do desejo
no labor lavrado da lava

(08/12/2016)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Meditação breve (15) - Édipo e a esfinge

Valerio Adami - Édipo e a esfinge (1980)

Não foi Édipo que matou a esfinge. Foi a esfinge que se deixou matar por Édipo, para assim o perder sem remissão. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Haikai do Viandante (316)

Fernando Sáez - Crepúsculo (1991)

frias sombras descem
sobre o palácio de inverno
uma ave cantou

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O concerto

Antonio Bueno - Concerto per Flauto e Violoncello (1972)

Era domingo, eu estava só. Ao cair do crepúsculo comecei a ouvir uma música. Um dueto para flauta e violoncelo. O som foi-se aproximando. Fiquei fascinado. Conforme anoitecia, a música tornava-se mais viva. A certa altura, mesmo no centro desta sala, vejo duas formas, primeiro difusas, depois cada vez mais nítidas. Eram os instrumentos. Pareciam tocar sozinhos. Senti medo, confesso. Quando a noite se cerrou, notei que duas mulheres, jovens e belas, os tocavam. E como tocavam… Não sei quanto tempo durou o concerto. Adormeci e quando acordei, na manhã de segunda-feira, elas tinham desaparecido. Os instrumentos são aqueles que vê. Foram a sua herança.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (612)

Yves Klein - Empreinte du fond d’une baignoire vide dont l'eau avait été colorée de Vermillon (1960)

612. lento e leve levita

lento e leve levita
o vento
poeiras de sódio
rastos de sílica
traços de lítio
seguem
na folha caída
do sonho sonhado
na cegueira de deus

(07/12/2016)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Meditação breve (14) - Crença e dúvida

Francisco Arjona - ¡Adelante con la duda! (1985)

Não é a dúvida que mata a crença. É a crença que não se põe em dúvida que acaba por morrer anémica.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (3)

Francisco José Pérez Masedo - Extrarradio (2000)

o novo deserto
sol cimento e solidão
rumores de cinza

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (611)

Yves Klein – Allures (1959)

611. cidades sitiadas

cidades sitiadas
de silvas e cal
manchas
breves
e máculas de óxido
no ócio
das ruas presas
ao verniz do vendaval

(07/12/2016)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Velhas árvores

Edvard Munch - Old Trees (1923-25)

As velhas árvores exercem sobre a imaginação um fascínio tão grande como o fogo ou a água. Estes remetem para os elementos primordiais que seriam, juntamente com o ar e a terra, como um dia se supôs, os componentes de que todo o resto se fabricaria. A velha árvore fascina a humanidade, contudo, por outro motivo. Melhor, por vários motivos. Ela, devido à sua dimensão, parece ligar o fundo da terra ao próprio céu. Vemo-las como como um eixo de ligação entre mundos. Mas não é só por isso que elas nos fascinam. A sua idade, muitas vezes incomensurável com a esperança de vida dos homens, e a sua impassibilidade acordam em nós o desejo, nunca satisfeito, de enfrentar o tempo e as suas peripécias. Fascinam-nas porque são mensageiras da eternidade perante olhos demasiado conscientes de que são breves e passageiros.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Meditação breve (13) - Solidão

Carlo Carra - Solitudine (1917)

A solidão abre a porta para o silêncio, mas é preciso que o solitário se cale e deixe o lobo devorador do pensamento apaziguar-se.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Meditação breve (12) - Nostalgias

Umberto Boccioni - Estados del alma I: Los que se quedan (1911)

Pior que a nostalgia dos que partem é a nostalgia dos que ficam. Os primeiros sentem falta do que conheceram. Os segundos sentem apenas uma falta sem conteúdo e que nada pode preencher.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Haikai do Viandante (315)

Antonio Tápies - Pintura gris verdosa (1954)

dias de frio e cinza
nas planícies do inverno
silêncio na tarde

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (610)

Lucio Muñoz - 2-85 (1985)

610. estendo um lençol

estendo um lençol
de azul
no ruído das rochas
e espero
o mar
e as marés de março
para ver o riso
de ouro na artéria
sulfídrica
da sulfurosa tristeza

(07/12/2016)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Exterior e interior

Alejandro Mesonero - Exterior - Interior

Uma das armadilhas da vida do espírito reside na oposição entre exterior e interior. Uma longa tradição, composta de múltiplos matizes, vê a vida espiritual como pura interioridade, como tendo a sua génese e o seu território na vida subjectiva. O exterior é sentido como uma ameaça a esse paraíso de onde brotaria a criatividade e a espiritualidade humanas. Exterior e interior, contudo, definem-se um pela relação com o outro, o que em vez de os tornar opostos mostra-os como complementares. Não há vida do espírito sem esse imenso território exterior onde o espírito se configura. Não há mundo sem um espírito que lhe dê figura e, pela sua actividade, sentido. O espírito não é outra coisa senão aquilo que supera a diferença entre o exterior e o interior e, estando neles, está aquém e além deles.