quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Meditação breve (11) - Abismo

Alfons Mucha - El Abismo (1897-99)

Não, abismo não é o que nos espera após uma queda. Abismo é onde nos encontramos sem sabermos como sair.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (2)

Francisca Muñoz y Manuel Herrera - Apunte de viaje (1982-1997)

um comboio passa
entre a floresta de gruas
a cidade cresce

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Chegar a casa

Gustave Guillaumet - El Desierto (1867)

Cheguei. Não temo o calor dos dias e o frio das noites? Não. Se procurasse abrigo e o conforto fosse fosse o fim, então ter-me-ia enganado e haveria razões para todos os tipos de temor. Cheguei sem esperar nada, sem pedir nada, sem querer receber coisa alguma. Deixei tudo para trás. Na verdade, não deixei grande coisa. Trouxe-me a mim, pois ainda não sei como me deixar também de lado. Contemplo a vastidão do deserto e sinto-me um grão de areia entre miríades de grãos de areia. Canto sob o sol e espero a noite. Cheguei a casa.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (609)

Eduardo Gruber - ¿Cáctus? (1996)

609. um cacto cresce

um cacto cresce
no furor
do deserto
manso como a cal
e gangrena
glóbulo a glóbulo
grão a grão
na arenosa areia

(07/12/2016)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Meditação breve - 10. Sono

Lucien Freud - Sleeping nude (1950)

O sono não é apenas uma forma de retemperar forças e de devolver ao corpo o vigor que a vigília lhe roubou. O sono é um protesto. Um profundo protesto contra a realidade e os imperativos, tão sem sentido, que ela traz a cada momento. Contra a usura da realidade, adormecemos.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Meditação breve - 9. Horários

Lothar Schreyer - Horário (1921-22)

Submetemos a vida a horários para que nada de decisivo nos aconteça. Aquilo que importa, o mais decisivo, não tem hora nem dia. Acontece quando acontece. Chega sem se anunciar e parte sem se despedir.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (1)

Oscar Dominguez - La Rêve (1946-47)

sonhos geométricos
nascem na luz dos semáforos
um carro parou

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

As escadas

Ramón Pérez Carrió - Tres lecciones de tinieblas (2000)

Nunca ia a casa dela, mas ela visitava-me. Quando partia, um enorme vazio abria-se em mim. Aprendi a esperar e a espera era compensada. Poucos dias depois, ela voltava. Até que deixou de vir. Sem saber o que fazer, fui a sua casa. Ela olhou-me em silêncio. Não havia desaprovação nos olhos, mas abriu uma porta e começou a subir umas escadas. Seguia-a. Não sei quanto tempo subi aqueles degraus. Mais do que seria suportável por um ser humano. Nunca a vi, apenas ouvia, muito acima, os seus passos sobre a madeira. Exausto, sentei-me e adormeci. Quando acordei, estava deitado à sua porta, mas da casa, da sua casa, - disseram-me - não havia memória de que alguma vez fora habitada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (608)

Jacint Salvadó - Informel (1959)

608. castelos e constelações

castelos e constelações
chuva de orquídeas
no prado estelar
a pedra preta e
fulminante
nascida no casulo
da lira lívida
desta paisagem

(06/12/2016)

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O reconhecimento

Maurice Denis - Os peregrinos de Emaús (1895)

O episódio dos discípulos de Emaús (Lucas 24:13-34) onde se narra a aparição de Cristo ressuscitado a dois discípulos é marcado por dois momentos ligados ao reconhecimento. O primeiro é o da ausência do reconhecimento, a incapacidade demonstrada em atentar na identidade do outro que segue caminho com eles. O segundo momento é o do reconhecimento dessa identidade. Esse reconhecimento, porém, não se dá numa situação trivial, como a conversação doutrinal da viagem, a qual se mostrou incapaz de gerar o reconhecimento, mas no momento em que é mobilizado um símbolo, a fracção e bênção do pão. 

É o símbolo que desencadeia o processo de reconhecimento, o que torna manifesto que todo o reconhecimento do outro, de qualquer outro, implica a suspensão da trivialidade e a mobilização de uma dimensão simbólica onde esse outro ganha sentido e valor. O paradoxal no texto é que o reconhecimento conduziu, de imediato, ao desaparecimento de Cristo. Reconhecer o outro não significa, então, prendê-lo numa esfera significativa, circunscrevê-lo em conceitos. Isso significaria reduzi-lo à trivialidade que se liga à significação usada na vida quotidiana. O outro, seja o Cristo ou o homem comum, pertence a uma dimensão simbólica e só esta permite conjugar o reconhecimento desse outro com o mistério, nunca desvendável, que o constitui.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Meditação breve - 8. Muros

Philip Guston - Ancient Wall (1976)

O corpo e o medo que o habita erguem muros. O espírito, na ânsia de um horizonte cada vez mais amplo, tem por missão destruí-los. Onde se ergue um muro é ainda o animal que que fala.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Meditação breve - 7. A floresta

Arnold Böcklin - Floresta Sagrada (1882)

Não há florestas sagradas e florestas profanas. Todas as florestas são sagradas pois, ao ligarem o homem ao que há de mais arcaico e primordial, geram nele o espanto, o terror, o tremor e o temor que o sagrado, nas suas hierofanias, sempre provoca.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (607)

Jacint Salvadó - Informel (1959)

607. gárgulas gotejam

gárgulas gotejam
gotas de âmbar
e vinho
no vidro da tarde
na nuvem de melancolia
que desce
ferida e feliz
no ventre
onde gorgolejam
águas e luz

(06/12/2016)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Meditação breve - 6. Amnésia

Chema Cobo - Amnesia (1990)

A amnésia não é uma falta ou uma ausência, tão pouco uma perturbação. É a possibilidade da inocência.

A dádiva

Pierre Puvis de Chavannes - O pobre pescador (1881)

Espero. O barco preso à margem e, sob os meus olhos, a água passa, como por mim passam os anos. Antes - ah, como era ingénuo - dizia que tudo dependia da minha iniciativa. Não me faltava iniciativa, mas ela trouxe-me aqui. De pé, sobre o velho barco, sem exigir nada do mundo ou do rio. Eu sei que nascemos predadores, mas também nascemos ignorantes. O peixe virá se tiver de vir. Se vier é porque me pertence. Se não, é porque as águas ainda o reclamam como seu. Julgava que tudo dependia da conquista, hoje descobri que mesmo o conquistado é uma dádiva. A água passa e eu espero.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Haikai do Viandante (314)

Ovidio Murguía de Castro - Árboles en invierno

os dias de inverno
despem de folhas as árvores
sombra e escuridão

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O começo

Max Beckmann - Begining (1949)

O começo de algo ou de alguém nunca deixa de exercer sobre os homens um certo fascínio. Esse fascínio vem menos da novidade do que da possibilidade. Em cada começo há um mundo possível que permanece velado e misterioso. Que possibilidades se abrem ali? Como vai o espírito libertar-se do véu que o cobre? Terá forças para isso ou sucumbirá perante o peso da tarefa. Há começos gloriosos que conduzem a grandes derrocadas. Há também começos obscuros que, silenciosamente, se erguem à glória. Todo o começo, apesar de já conter em si tudo o que há-de vir, é incerto. O tempo se encarregará de transformar a incerteza na mais definitiva e irremediável das certezas.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (606)

Cruzeiro Seixas - Homem com pássaro (1958)

606. um pássaro poisa

um pássaro poisa
na cabeça 
curva
do homem
um ramo de giestas
tão vivas
tão cantantes
no silêncio ofegante
do odor vernáculo
da madrugada

(06/12/2016)

domingo, 22 de janeiro de 2017

Meditação breve - 5. Escrita

John Yardley - Choosing a book

A proliferação de livros de todo o género numa cultura como a ocidental é uma tentativa desesperada para colmatar o facto das duas personagens fundamentais e fundadoras dessa cultura, Sócrates e Cristo, não terem escrito uma linha. Tudo o que se escreve no Ocidente não passa de uma hermenêutica dessas ausências originais. E numa cultura cujos fundadores nada escreveram tudo pode ser dito e escrito.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Meditação breve - 4. Niilismo

Jesús de Perceval - Hasta que se aniquile (1965)

O que é o niilismo? A desvalorização de todos os valores? Não, propriamente. O niilismo é a consumação da tendência para o nada que habita tudo aquilo que existe. O niilismo é a retirada do espírito de um modo de vida que, um dia, pareceu eterno e que o tempo, essa máscara vulgar da eternidade, revelou na sua verdade, isto é, no nada que era.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

Uma das categorias centrais da vida espiritual é a de fim do mundo. Não se trata, porém, de um reconhecimento de que o mundo terá um fim, mas da própria finitude dos mundos humanos. Cada mundo humano é o produto da vida espiritual, de uma certa compreensão que o espírito tem de si mesmo. Esse mundo terá a sua forma de vida, as suas instituições, os seus costumes e a sua forma de pensar. O apocalipse que revela o fim do mundo significa que a vida espiritual já não se reconhece nesse mundo de vida e em tudo onde ela tomou forma. O espírito prepara-se então para morrer, para renascer num outro mundo, com novas instituições, modos de vida, formas de pensar e de se realizar. A categoria do fim do mundo torna patente a natureza metamórfica da vida espiritual, cristalizando-se nessa categoria o momento libertador de uma forma caduca, a morte desta, e um novo nascimento no espaço e no tempo.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Meditação breve - 3. Protecção

Gerardo Rueda - Positivo-Negativo (1965)

Para além do positivo e do negativo está a realidade. A sua luz é tão excessiva que os nossos olhos necessitam de se proteger com um catálogo de conceitos. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (605)

Maria Helena Vieira da Silva - O passeante invisível (1951)

605. invisível passa

invisível passa
o passeante nocturno
praças e vielas
rodopiam
em seus olhos
de luz
chamas de pedra
flutuam
no inquieto xadrez
do inverno e da rua

(06/12/2016)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

História de um olhar

Ferdinand Hodler - Alma decepcionada (1891)

Vem todas as manhãs, desde que não chova, e parte pouco depois do meio-dia. Ainda era jovem quando começou a vir. Senta-se e olha. Não, não. Se procuro na memória descubro que o espectáculo, ao longo de tantos anos, está longe de ser monótono. Nos primeiros tempos, o seu olhar era garboso e inquieto, havia nele ânsia de domínio de tudo o que o rodeava. Mais tarde, parecia ter uma certeza funda nesse senhoria. A partir de certa altura, deixou de olhar em volta. Olhava para si. Agora olha para baixo, para a terra. Chega e parte e nunca dela desprende o olhar.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Meditação breve - 2. Ansiedade

Edvard Munch - Ansiedade (1894)

O grau de ansiedade mede a distância que vai de nós àquilo que nos envolve e do qual nos separámos. A separação da envolvência transforma esta não apenas numa coisa desconhecida mas, e fundamentalmente, numa ameaça e num perigo. A ansiedade é o sintoma de um esquecimento. 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Haikai do Viandante (313)

Manuel Narváez Patiño - Invierno (1993)

desejo de luz
no coração do inverno
branca a neve cai

sábado, 14 de janeiro de 2017

Meditação breve - 1. O Inverno

Ramón Casas Carbó - Invierno (1893)

Há no Inverno uma ilusão de suspensão do tempo, como se este, desgastado pelo frenético devir das estações mais quentes, precisasse de se recolher na sombra e na solidão, onde o fogo, uma reminiscência dos dias de Verão, o mantém na vida. Ali recupera a força com que vai brotar no exterior e entregar-se de novo à veloz vertigem da corrida que só para nós, pobres mortais, tem fim.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (604)

Arden Quin - Cercle Rouge (1944)

604. um círculo vermelho

um círculo vermelho
pulsa
na relva rude
e verde da solidão
grita preso
numa geometria
feita de triângulos
de adobe
e quadrados
de cinziareia de sol

(06/12/2016)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesque (1922)

O burlesco e o grotesco que esteticamente lhe está ligado são visões críticas da distorção da própria vida espiritual. Muito facilmente os homens tomam a vida do espírito - nos múltiplos domínios que a constituem - como uma afirmação de si e da sua vaidade. Esta incongruência entre aquilo que anseia a libertação das restritas fronteiras do pequeno ego e o seu aprisionamento por este mesmo ego torna-se risível. O burlesco tem então o poder, através do exagero caricatural, de tornar patente, aos olhos de todos, o quão grotescos podem ser os homens.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

A própria sombra

John Yardley - A book on the terrace

Temo-a. Sento-me no terraço e, mal abro o livro, dou com a minha sombra presa à parede. Sinto uma vertigem, mas deixo os olhos correr sobre as palavras, cavalgar as linhas, para que os dedos possam mudar as páginas. Nunca olho, sinto, porém, que a sombra está viva e se vai transformando conforme a leitura avança, Chego a sentir-lhe o cheiro. É nesses momentos que ela me atrai. Desejo saber como é, mas temo que ela se desprenda da parede e me ataque. Então, naquele instante em que o medo se está a transformar em pânico, fecho o livro e a sombra desaparece.