segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (603)

Ramón Rivas - Abstracto (1955)

603. constelações lunares

constelações lunares
germinam nos campos
elevam a luz
ao fruto dos céus
e aves e nuvens
e anjos de asas
gramaticais
incandescem
no dedo solto
e livre no livre
e liberto
aluamento da terra

(06/12/2016)

domingo, 8 de janeiro de 2017

Prazer pleno

Guillermo Muñoz Vera - La cosecha (1995-96)

É no capítulo três do livro de Eclesiastes que surge a grande meditação sobre os ritmos de vida do homem. O central nesse capítulo, porém, não é o ensinamento de uma rítmica existencial mas a afirmação de que a vida merecer ser vivida plenamente: assim eu concluí que nada é melhor para o homem do que alegrar-se e procurar o bem-estar durante a sua vida; e que comer, beber e gozar do fruto do seu trabalho é um dom de Deus (Eclesiastes, 3:12,13). A rítmica existencial, que começa o capítulo, só faz sentido no âmbito da busca de uma vida feliz e realizada, realização onde se inscreve uma interpretação hedonista da existência. O ritmo do plantar e do colher não é então o do opróbrio e da desgraça mas do prazer pleno de estar vivo. E esse prazer e o reconhecimento e a gratidão pelo dom da vida.



sábado, 7 de janeiro de 2017

Haikai do Viandante (312)

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

ao longo do rio
vão perdidos os meus olhos
sombras e navios

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O combate decisivo

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

O maior, mais decisivo e enigmático dos combates não é aquele que opõe os homens entre si ou o que os opõe à natureza. Esses combates por duros e mortais que sejam são superficiais, não porque não sejam dolorosos mas porque resultam de uma visão superficial da vida. O verdadeiro combate é aquele que opõe o espírito a si mesmo, essa noite escura onde se confronta com a ilusão que nasce do desejo, que nasce do seu próprio desejo de verdade e de clarividência.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (602)

Zao Wou-ki - 22-01-68

602. trémulo tremo no oceano

trémulo tremo no oceano
tenebroso
na fímbria azul
do mar
monstruoso
ó fria montanha
coberta de névoa
pobre palácio
d’água e verdierva

(05/12/2016)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Da luz e da sombra

Maurice Chabas - Hacia la luz (1895)

A atracção que o homem sente pela luz revela a sua condição sombria. Umas vezes a luz é vista como refúgio, hipótese ilusória de fuga de si mesmo, outras como possibilidade de olhar o que há em si de sombra e de trevas e, por essa iluminação, reconciliar-se com a sua natureza. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Da queda

Ana Peters - A Queda (1996-97)

A tradição judaica, uma das tradições constitutivas do homem ocidental, coloca como princípio de hominização - não entendida, claro, na perspectiva científica - o mito da queda. O homem tal como o conhecemos é o resultado de uma degradação originária simbolizada, mas não descrita, na perda de Adão e Eva. É este mito que ecoa nas diversas manifestações da vida do espírito - da arte à filosofia passando pela religião -, dando-lhe um horizonte. O mito não conta apenas uma história simbólica sobre a nossa existência degradada e degradante. Traça também uma finalidade, um horizonte de toda a vida, a restauração da condição prévia à queda. O mito da queda é menos a justificação da nossa maldade, embora também o seja, do que a recordação do sentido que o homem deve dar à sua existência.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Auto-retrato

Jorge Carreira Maia - Auto-retrato (2014)

Se havia sol, ele vinha e parava defronte da velha parede.  Na aldeia, dizia-se que ali tinha vivido em criança. As ruínas eram o que restava da casa onde nascera. Talvez. Sabe como são as coisas nos sítios pequenos. A imaginação trabalha depressa e com alvoroço. O que fazia ele perante a parede? Nada. Chegava até ela, detinha-se, olhava-a, enquanto o sol o iluminava por trás e a sombra se projectava. Um dia, porém, reparei que a sombra se tinha entranhado na parede. Fui ver. Não havia sinal de pintura. A sua presença bastara para criar o auto-retrato. Nunca mais voltou.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (601)

Zao Wou-Ki - 10-2-76

601. de súbito o caos

de súbito o caos
coagula
em nuvens de cloro
e raios irrompem
cavalos de luz
na pradaria
do infinito
luas sonoras
a vibrar
no cru coral do tempo

(05/12/2016)

sábado, 31 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (311)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

manhã de inverno
o sol cai sobre os ciprestes
campos de saudade

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Criadores de espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Na ideia de espantalho pensa-se uma ilusão capaz de provocar medo e, desse modo, evitar que certo objectivo seja realizado. É um truque difundido há muito nos campos para protecção das culturas. O ser humano, contudo, é exímio em criar espantalhos para si mesmo, para que não seja confrontado com os objectivos que a vida lhe coloca e os tenha de realizar. Muitas vezes, o maior dos espantalhos, a grande ilusão, reside numa aparência de realização e na congratulação com aquilo que se costuma designar por triunfo na vida.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (600)

Zao Wou-Ki - 10-11-58/30-12-70

600. incandescências de areia

incandescências de areia
embutidas
no basalto do dia
desfiguram-se
entre a sépia
do deserto
e o cobalto que
desce na estátua
daqueles olhos

(05/12/2016)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A mulher sentada

Henri Rousseau - River Bank (1890)

Sempre a vi ali. Sentada, contempla o rio. Por vezes, levanta a cabeça e observa o arvoredo ou o casario, como se esperasse algum sinal, mas logo o olhar volta para o fluxo das águas. Nunca ninguém lhe dirige a palavra. Quem por ali passa ignora-a ou, comecei a desconfiar, não a vê. O banco é só dela e, por instinto, suponho, todos respeitam a propriedade. Nunca sai dali? É isso que quer saber? Se se ouve o dobre a finados, ela levanta-se, entra no barco, pega nos remos e desaparece na curva do rio. Quando volta, senta-se e volta a fixar os olhos nas águas que passam. Em silêncio.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Das trevas

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

Há duas espécies de trevas na vida do espírito. A primeira espécie é objectiva. Resulta da ausência absoluta de luz. São as trevas exteriores. A segunda é subjectiva. A luz é de tal maneira intensa que o espírito fica cego. São as trevas interiores. Às primeiras resta sempre a expectativa de que um foco de luz as ilumine. Às segundas há que aceitá-las e aprender a navegar na escuridão.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A conversação

André Hambourg - La conversation (1929)

Na vida espiritual, tomada numa ampla acepção, a conversação, como outros aspectos da vida dos homens, apresenta um ambiguidade essencial. Tomada como bavardage, tal como os franceses a entendem, ela é um factor de inibição do caminho, uma distracção, no melhor dos casos, e uma alienação, nos piores. No entanto, é fundamental como o encontro entre espíritos, encontro onde se inter-animam e se fazem progredir no caminho. É também estrutural enquanto diálogo consigo mesmo, onde a conversação estabelece a ponte entre as partes cindidas do self e lhe permite aperceber de uma unidade anterior a toda a cisão que o espírito sofre no mundo.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (599)

Bill Jacklin - Duet (1971)

599. a sonora sombra

a sonora sombra
desce
pelas escadas
da noite
e pura paira
na fronteira
irisada
de um fruto
ferido por terra

(04/12/2016)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (310)

Caspar David Friedrich - Mist (1807)

névoa na manhã
tudo se torna mistério
o natal chegou

Tempestade

László Péri - Der Strum (1923)

No caminho do viandante, a tempestade é um elemento central. Na tempestade dissolve-se a ordem estabelecida. Os hábitos, cristalizações de onde o espírito se ausentou, são desfeitos perante o inusitado do tempestuoso. Mais leve, o espírito reabre-se para o inédito de cada momento, salvo pelo troar da tempestade.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A adoração do Menino

Maestro del Retablo di Bolea - Adoración del Niño

Desde há bastante tempo que é moda olhar para o cristianismo a partir das práticas deletérias dos cristãos. Esse olhar enviesado oculta o papel profundo que o cristianismo tem no melhor que há na cultura e civilização ocidentais. Veja-se o exemplo retirado do quadro atribuído ao mestre do retábulo de Bolea. Sem o arquétipo presente na adoração do Menino, não haveria espaço cultural para uma das mais importantes conquistas civilizacionais da humanidade consignada nos direitos das crianças. Mesmo que muitos cristãos, nomeadamente padres católicos, tenham violado de forma infame esses direitos, a sua condenação começa no acto em que uma certa civilização ou cultura coloca no cerne das suas crenças a divindade do Menino Jesus, o respeito infinito pela criança, a qual, para além de humana, é divina. O que se diz dos direitos das crianças, poder-se-ia estender a todas as outras esferas dos direitos civilizacionais, nas quais a dignidade do ser humano, essa reivindicação iluminista, repousa, em última análise, nos textos neo-testamentários. Há coisas que não devemos esquecer.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (598)

Felo Monzón - Construcción (1975)

598. desenho labirintos

desenho labirintos
                ao correr
das mãos
             e toco
     com a noite
    as paredes
de argila
onde     uma música
                de segredos
me há-de prender
me há-de perder

(04/12/2016)

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

De olhos fechados

Odilon Redon - With Closed Eyes (1890)

Fecho os olhos e é tudo o que me resta. A escuridão é benfazeja. Houve um tempo em que queria ter os olhos bem abertos. Era perspicaz e via tudo, pensava. Rapidamente, a desilusão chegava. Afinal não tinha visto tanto quanto julgara. Os olhos, por abertos que estejam, são maus julgadores. As aparências são mesmo aparências. A uma desilusão somou-se outra e outra. Parecia não ter fim. E em cada uma descobria que os olhos, os meus olhos, me tinham traído. Resta-me fechá-los e entregar-me à cegueira. No escuro não há lugar para a ilusão. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

No parapeito

George Seurat - Man at a Parapet (1881)

Se fosse um pássaro... Se fosse um pássaro poderia saltitar no parapeito sem medo de cair. Não, não sou um pássaro. Sinto apenas a vertigem e um desejo de voar. Tenho medo de olhar para baixo. Tenho medo do apelo do voo. Tenho medo. E não sei por que razão este parapeito me chama e por que motivo me debruço nele. Olho e vejo o que se passa lá em baixo. É tudo tão pequeno. Os homens, os carros. Será ali a ilha de Lilliput? Meu Deus, subo para o parapeito. Dei um passo e estou no vazio, mas as costas rasgam-se e umas enormes asas fazem-me deslizar no ar. Voo. Alguém grita:"É Gabriel, o Arcanjo". Calo-me, o que lhes direi?

domingo, 18 de dezembro de 2016

A adoração dos pastores

Rafael Durancamps - La Adoración de los Pastores

Aproxima-se o Natal. Uma das características deste evento é a sua inverosimilhança. A adoração dos pastores ao menino nascido no presépio de Belém é absurda. A natureza absurda destas narrativas não lhes vem de uma pretensa ingenuidade, mas da ausência desta. Estas narrativas foram concebidas não como um registo histórico-racional, mas contra esse mesmo registo. Dizem, pela sua simples existência, que não se dirigem à razão mas à imaginação. Não nos narram factos históricos mas trazem à luz modelos imaginários que estão para além do tempo e da história. A adoração dos pastores não retrata um facto do passado, mas um evento eterno que nunca deixou de acontecer. Na essência do cuidar do rebanho está um acto de adoração que transcende o pastor e o rebanho. É a alteridade, consubstanciada no adorado, que permite ao pastor ser aquilo que é.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (597)

Josef Albers - Constelación estructural. Alfa (1954)

597. de alfa em alfa traço

de alfa em alfa traço
no azeviche
dos céus
constelações
de luz
e letras lívidas
rastos de saudade
na solitária solidão de deus

(04/12/2016)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O fogo

Paul Serusier - The Fire Outside (1893)

Vinham todos os sábados. Um bloco de rocha servia mesa, talvez de altar. A primeira juntava lenha e ateava o fogo. Uma segunda trazia uma antiga panela de tripé e colocava-a sobre o fogo. Depois, vinham as outras, em procissão. O número era variável, mas nunca menos que uma vintena. Chegavam silenciosas, de olhar mortiço. Rodeavam o fogo, olhavam-no intensamente. Chegada a hora estendiam um prato vazio e as primeiras serviam-lhe a comida. Comiam e fitavam o fogo. Nunca uma palavra era dita. Acabada a refeição, iam-se embora como tinham chegado. Os olhos eram então um fogo insaciável.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (309)

Modesto Urgell Inglada - Entardecer

rosa sobre rosa
a planície entardece
terra e solidão

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Encerrar-se na sua concha

Georgia O'keeffe - From a Shell (1930)

Na concha simboliza-se o ambiente protegido e o refúgio inexpugnável. De que se protege aquele que se encerra na sua concha? Da ameaça exterior, das solicitações do mundo? Em aparência sim. Aparências, porém, são aparências e, muitas vezes, ocultam a realidade. Na verdade, procura-se protecção contra o vento. Não o elemento físico, mas aquele vento que sopra onde quer e tem o condão de confrontar o homem com aquilo que ele é. Ao encerrar-se na sua concha, o homem protege-se de si mesmo e da sua verdade.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (596)

Victor Vasarely - Belle-Isle (1949-52)

596. arquipélago negro

arquipélago negro
sobre azul
rochas presas
na água
da claridade
onde peixes
germinam e gemem
no gerúndio
fulvo
a obscurecer
de ilha em ilha

(04/12/2016)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Da ociosidade

Edward Burne-Jones - Pilgrim at the Gate of Idleness (1884)

Para os gregos o ócio era a condição de possibilidade da filosofia. Sem ele não seria possível uma vida espiritual efectiva e fecunda. Há um momento, porém, talvez ainda na Idade Média em que o ócio emerge como um inimigo dessa mesma vida espiritual. A ociosidade é retratada como uma donzela sedutora, tal como, muitos séculos depois, Burne-Jones, inspirado no Romance da Rosa, a retrata.  O peregrino tem de resistir à sedução do ócio para poder continuar a viagem. A acção ganhava assim uma preeminência, na vida espiritual, sobre a contemplação. O mundo moderno estava à porta. Lentamente, mas de forma inexorável, o peregrino tornou-se em turista ou em caixeiro-viajante.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Acções de resgate

Pedro Calapez - Submerso (2001)

As múltiplas e diversificadas formas que toma a vida espiritual, da arte à religião ou à filosofia, têm um aspecto comum. A condição do espírito é de estar submerso, oculto pelas águas. Cada aventura espiritual é um exercício de o trazer à luz e de o resgatar da sua alienação na natureza. Um romance, um quadro, a prática dos místicos ou a especulação dos filósofos são, na verdade, acções de resgate e de libertação.