Mário Eloy – O Poeta e o Anjo (c. 1938)
Recosto a cabeça no regaço dela e penso. Onde se inscreve a fronteira entre o poeta e o anjo? Dói-me, dói-me todo o corpo. Os anjos, esses, não têm dores. Os anjos não têm corpo, diz-se. Na cabeça daqueles corpos que não são corpos há, porém, ritmo, uma música, a música das esfera celestes. E eu oiço essa música. Toma-me por dentro, corre por artérias e veias e explode-me no coração. É nesse momento que escrevo. Escrevo o que oiço. Escrevo a sombra do cântico dos anjos, escrevo o eco longínquo da música das esferas celestes. Agora que tudo se apaga, agora que a minha cabeça repousa, por uma última vez no regaço dela, já não oiço música alguma. Abro os olhos e vejo um anjo. Um anjo que ainda não sou mas que serei quando...