quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ídolos e idolatrias

Concetto Pozatti - ...e il popolo fa un vitel d'oro di getto e lo adora (1963)

Um dos traços característicos dos nossos dias é a enorme propensão para a idolatria, para a transformação de qualquer coisa num bezerro de ouro, ao qual se presta, com sofreguidão e histeria, tributo e adoração. Esta propensão é acentuada por um renascimento do politeísmo. A multidão não se contenta com um ídolo. Ela precisa, na sua angústia e desespero, de uma manada de bezerros de ouro. A vida espiritual, contudo, é a diluição dos ídolos e o abandono de qualquer idolatria, a começar pela idolatria de si mesmo, o mais venerado dos bezerros de ouro. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Rituais de Fevereiro

Joaquín Vancells i Vieta - Fevereiro, paisagem (1891)

Espero, espero que Fevereiro chegue. Ainda haverá frio. Sim, frio e chuva, as árvores despidas. Poderei fazer uma cama de folhas húmidas e deitar-me. O frio que fará! A humidade entrará na minha carne, nos meus ossos, e eu serei fria e húmida como o Inverno. Espero. Sim, quando chegar Fevereiro, entrarei na floresta. Despir-me-ei e nua esperarei a vinda, a vinda... Fará frio e os animais olhar-me-ão com medo. Uma folha cairá sobre mim, quando a luz da tarde começar a declinar. Estremeço, se penso na noite que há-de vir. Estremeço e sinto já a lua a descer sobre o meu corpo indefeso e penetrar-me célula a célula. Estremeço, na luz fria e húmida em que me tornarei. Fevereiro chegará.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Perder a figura

Albert Gleizes - Transfiguração (1943)

Se se pensar a vida espiritual como transfiguração, não basta pensar esta como uma mudança de figura, como a aquisição de novas configurações. É preciso pensá-la na sua radicalidade semântica, como um ir para além de qualquer figura, como um perder a figura. A vida do espírito é um caminho para além de toda e qualquer figuração.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como uma orquestra

Paul Ackerman - A Orquestra

Da ideia moderna de orquestra pode-se retirar uma poderosa analogia da vida espiritual. Na verdade, olhada desta perspectiva, a vida pode ser encarada como um contínuo ensaio de orquestra, onde um maestro desconhecido tenta conjugar os vários naipes de instrumentos, os poderes do corpo, os anseios da alma e as faculdades do espírito, para que o indivíduo, na sua singularidade, se descubra como pura harmonia.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (267)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter (1895)

manhãs de inverno
chegam numa luz difusa
neve frio brancura

sábado, 16 de janeiro de 2016

Esperam por nós

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Esperam por nós, disse ela e calou-se. Ele olhou-a. Havia naquele olhar perplexidade e perturbação. Hesitou, mas deixou escapar: quem espera por nós? Ela emudeceu e os olhos prenderem-se na areia molhada. Com um dedo, desenhou grandes veleiros e sob eles um mar violento e sombrio. O vento soprou em rajada vinda do norte. Tiveram ambos frios, mas evitaram aquecer-se nos olhos um do outro. Quem espera por nós? Ela desenhou um sol sobre a agitação marítima e uma bandeira no mastro de cada barco. Uma onda de calor desceu sobre eles. Em sussurro, ela exclamou: eles, eles esperam por nós. Se não vieres, perdes-me. Ele deitou-se na areia. Então, ela entrou no mar que desenhara. Um barco esperava-a perto da rebentação.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sobre as ondas

Edvard Munch - A onda (1921)

Submergir-me completamente na onda, deixar-me ir e vir ao sabor da força das águas, ser não eu mas a água empurrada pelo vento, abandonar-me ao acontecimento no pleno esquecimento de mim. Eram estes pensamentos que o tomavam de assalto quando, sentado na areia, olhava o mar batido pelo sol da tarde. Por vezes, sobressaltava-se. O grasnar de um pássaro, o rumor de um papel arrastado pelo vento. Perante o mar, tudo se tornava tão claro. Estava na fronteira, fascinado, preso a uma voz antiga. Uma gaivota poisou ao seu lado. Olhou-a. Olharam-se. Lentamente, sentiu que ela entrava nos seus olhos. Respirou ofegante. As ondas, o mar, o vento do crepúsculo, tudo se tornara mais nítido. Sentiu um tremor nos braços, uma ondulação no corpo, e olhou. Voava sobre o mar. Ao longe, o sol esperava por ele. Estava salvo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fogos de artifício

A vida quotidiana é um exercício contínuo de fogos de artifício. Ansioso por provar a sua própria existência, o ego é incapaz de se conter e, sempre que tem um público, entrega-se à produção do mais vivo espectáculo de fogo de artifício. A vida do espírito, contudo, começa no momento em que se decide pôr de lado o fogo de artifício e se inicia a procura do fogo que arde sem se ver.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 14

Pablo Picasso - A bela holandesa (1905)

14. Assim tão despida

Assim tão despida,
tão exposta ao vento,
esperas a mão
que te abra o corpo
ao furor secreto
de um sentimento.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O infinito da vida

Frantisek Kupka - O princípio da vida

Sim, todos sabemos que a vida - a vida biológica - tem um princípio, um começo. Se pensarmos, todavia, a vida tal como ela se revela no homem, facilmente somos seduzidos pela ideia de que ela, a vida, não tem princípio nem fim. E é esta sedução pelo infinito da vida que se torna símbolo e é deste símbolo que toda a vida espiritual, nas suas múltiplas dimensões, é exegese e realização.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Idas e vindas

Paul Gauguin - Idas e vindas (1887)

A viagem espiritual é composta de muitas idas e vindas. Seria uma ilusão pensar que a vinda marca um retorno ao mesmo. A vinda contém em si a ida e aquilo que o viandante, ao voltar, encontra - em si mesmo e no lugar a que retorna -  não é o mesmo que tinha à partida. É sempre um outro que retorna e o lugar também é já outro. Por vezes, diz-se que um dado escritor escreve sempre o mesmo livro, mas isso é um equívoco. Cada vez é um escritor novo que o escreve. Foi e voltou, mas já não era o mesmo que o escreveu, mesmo que o livro fosse palavra a palavra, letra a letra, semelhante ao anterior. E mesmo uma obra nestas condições seria já uma outra obra. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

A promessa da repetição

Oskar Laske - River Landscape (1944)

Heraclito constata que não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio, pois estas estão em constante renovação. Esta constatação de uma impossibilidade esconde, porém, uma pergunta mais decisiva: se pudéssemos, deveríamos querer mergulhar duas vezes nas mesmas águas? Será que a vontade quer a repetição ou o inédito? A viagem do espírito - seja qual for o caminho escolhido, a arte, a religião, o pensamento - é sempre marcada por esta questão. Ela é a luta contra o fascínio que a promessa da repetição, apesar de impossível de cumprir, traz consigo.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (266)

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

as ervas cresceram
nas terras abandonadas
vento e solidão

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Do valor do caminho

Juan Miró - Ciurana, The Path (1917)

Pensa-se sempre o caminho como aquilo que liga dois pontos, o de partida e o de chegada. Se eliminarmos tanto a partida como a chegada, o caminho, que tinha um mero valor instrumental, toma um valor intrínseco. O caminho vale por si mesmo, pelo facto de ser feito ao caminhar. Independentemente do ponto de onde se partiu e do ponto a que se chegou, se é que se partiu de algum lado e se chegou a outro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Da ausência e da presença

Hermen Anglada-Camarasa - O palco (1901-02)

O palco é um poderoso símbolo da natureza da vida pública. No palco, os actores representam para uma plateia. Em analogia, também as pessoas, na esfera pública, representam para uma plateia, mais ou menos indefinida. O sentido último deste estar perante os outros é o de transformar aquilo que é uma presença numa representação. Representar significa que o representado não está presente, que se torna ausente. Assim, a vida pública - seja em que grau for - é o processo pelo qual aquele que está presente se torna ausenta. A vida espiritual é o processo contrário: é a viagem que parte da representação e da ausência, que lhe é inerente, para procurar alcançar a pura presença.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Eclipses

Eugène Atget - Eclipse (1911)

Num eclipse, um astro oculta outro. Os eclipses, todavia, não são meros fenómenos astronómicos. Também no homem existem eclipses, quase sempre persistentes. Aí o indivíduo, ansioso da sua subjectividade, acaba por se eclipsar a si mesmo.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (265)

Caspar David Friedrich - Couple Watching the Moon (1824)

sob a luz da lua
ergue-se a velha floresta
olhos noite e sombra

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Da vida como sonho

Arnold Böcklin - A vida é um sonho breve (1888)

A definição metafórica da vida como um sonho breve traz nela a ocultação de uma necessidade que se coloca a todos aqueles a quem esse sonho, ainda que breve, foi dado. Trata-se da necessidade de despertar. Por breve que seja o tempo do sonho, o sonhador recebe também a injunção de despertar do sonho, de abandonar o sono e de chegar ao estado de vigília. A vida espiritual do homem, nas suas múltiplas facetas, não é outra coisa senão esse processo de despertar e de transitar do sono para a vigília. No despertar do espírito, o homem morre, mas morre apenas para aquilo que é um sonho, uma ilusão, ainda por cima breve.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Da tempestade

Léonard Misonne - A Storm Arrive

Também as tempestades fazem o caminho do viandante. Não, não digo que fazem parte do caminho. Digo antes que elas também são o caminho. Fazer parte do caminho seria ainda dizer que se podem evitar, que enfrentá-las ou não está na mais do viajante, no seu arbítrio. Se elas também são o caminho, isso significa que não está nas mãos do viandante vivê-las ou não. Elas impõem-se-lhe, são uma necessidade inexorável, uma disciplina obrigatório num currículo que sendo o seu o ultrapassa infinitamente.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 13

Jean-Baptiste Camille Corot - L´Odalisque romaine (1843)

13. Reclino-me sobre

Reclino-me sobre
o teu corpo nu.
Toco-te a pele
e deixo os meus
olhos perderem-se
no negro vazio
que se abre em ti.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A viagem espiritual nada tem de diversão turística. Na verdade, ela não passa de um combate, do mais enigmático dos combates. O viandante luta consigo próprio, com a sombra que nasce do seu desejo de ser alguém, de possuir uma identidade, com a aspiração humana ao reconhecimento. Luta, na verdade, contra uma quimera. Uma quimera, contudo, não deixa de ser um rude e inultrapassável inimigo enquanto não for reconhecido como aquilo que é, uma quimera.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

A palavra do tempo

John Yardley - Bologna Side Street

Estou sentado e vejo o tempo passar. Perde os contornos, desfigura-se, arrasta consigo quem vai, as casas, os carros. O tempo inunda os meus olhos de desfiguração. Um dia foram tão precisos e agora... Bem, agora os meus olhos contam-me outra história do mundo, uma história vista com os olhos do tempo, um fluxo interminável de perda de fronteiras. Aquele casal é já uma névoa e o grande edifício abre-se para mim na vitória dos escombros, também eles entregues à anarquia da poeira. Tremo se olho para as minhas mãos. Tremo se a a memória me assalta. O tempo fala dentro de mim e eu sou apenas a imprecisão de um fluxo, a sombra delida que, em desespero, se agarra ao fetiche de um nome, como se as palavras não fossem vento no silêncio do tempo que passa.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O bosque obscuro

Valentín Albardíaz - Bosque Oscuro VII (1994)

Na Idade Média ainda era possível descrever a experiência mística a partir da metáfora do bosque deleitoso. Os prazeres que se abriam aí à experiência da humanidade foram-se, com o advento e progresso da Idade Moderna e a propensão desta para a acção, tornando cada vez mais estranhos. O apelo a uma vida que esteja para lá da acção, uma vida de reflexão e de contemplação, implica ainda, nos dias de hoje, a entrada no bosque, mas de um bosque obscuro, tal a desconfiança que tudo isto provoca na mentalidade dos homens modernos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Encontrar a vida

Maurice Denis - Orpheus and Eurydice (1910)

Como todos os mitos, o de Orfeu e de Eurídice presta-se a interpretações múltiplas e diferenciadas. Podemos, por exemplo, pensar que Orfeu desce ao reino da morte para resgatar a sua própria alma, o seu princípio de vida que estaria morto pelo envolvimento na vida quotidiana. O que o mito nos diz, então, não é que o homem não pode olhar esse princípio - a alma - que o constitui. Diz-nos antes que não o pode contemplar em qualquer lugar e movido por qualquer desejo de certificação. Todo aquele que quer assegurar-se da sua vida já a perdeu. Só quem abandonar qualquer desejo de segurança e de certeza poderá encontrar essa mesma vida.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (264)

Edvard Munch - Winter Night (1900)

as noites de inverno
descem frias sobre a floresta
neve e solidão

domingo, 27 de dezembro de 2015

Tornar-se ausente

Eloisa Sanz - Ausência (1991)

Há um momento na vida dos homens em que o tornar-se presente - nos lugares que se pensam como significativos - é o seu grande desejo. A presença é um sintoma de que se é alguma coisa, a expressão do desejo de reconhecimento.  A generalidade só desiste de tornar-se presente quando percebe que não tem o poder suficiente para se impor ao mundo e aos outros. O viandante, porém, recusa a ilusão da presença. A sua viagem e a sua vida é um contínuo tornar-se ausente, um abandono persistente dos lugares da existência e de qualquer pretensão ao reconhecimento, um tornar-se nada no exercício da ausência.

sábado, 26 de dezembro de 2015

Lugares negros


Georgia O'keeffe - Black Place III (1944)


A relação entre a vida espiritual e os lugares negros é central. Por lugar negro deve-se entender qualquer lugar onde o espírito não penetrou. O trabalho do espírito não é outro senão fazer com que a luz resplandeça nas trevas, mesmo que estas não compreendam a luz e não a reconheçam.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (263)

George Inness - Evening Landscape (1862)

sombra pura sombra
a noite cai sobre a terra
os pássaros cantam

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Um jogo rítmico

José de Togores - Figura escondendo-se (1925)

A viagem espiritual dos homens é marcada por um jogo de ocultações e de manifestações. Por vezes, o espírito necessita de se esconder e nessa ocultação encontrar a energia, a força e a substância que levarão à sua manifestação. Ocultar-se não significa um puro desaparecimento, mas um momento em que o espírito se prepara para trazer ao mundo o inesperado, o inaudito e o inédito.

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 12

Ignacio Díaz Olano - Desnudo (1895)

12. A luz que te toca

A luz que te toca
na sombra do dia
enche-me os olhos
com uma promessa
pura e fugidia.