terça-feira, 13 de outubro de 2015

O não expectável

Maria Helena Vieira da Silva - O acontecimento (1972-73)

Duas características marcam aquilo que chamamos acontecimento. Por um lado, o facto de ocorrer, de sobrevir; por outro, a sua natureza contingente, não necessária, meramente eventual. Isto faz do acontecimento, ao olhar comum, alguma coisa não essencial, aquilo que ocorre mas que pode não ocorrer. Esta leitura, todavia, é superficial, pois não tem em conta o carácter de epifania que todo o acontecimento traz consigo. Um acontecimento é a revelação de alguma coisa que, ao manifestar-se, rompe com o hábito e com aquilo que é expectável. O não expectável pode ser muito mais essencial do que aquilo que ocorre segundo as marcas da necessidade.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A necessidade de certificação

Marc Chagall - O mito de Orfeu (1977)

Podemos estabelecer uma conexão entre o mito de Orfeu e o destino da mulher de Lot. Alguma coisa terrível acontece quando se olha para trás. Mas o mito de Orfeu, com a perda de Eurídice, talvez nos permita perceber uma outra coisa. A mulher de Lot parece movida pela curiosidade. Orfeu é movido pela necessidade de certificação, de certeza. E quando procura essa certificação perde o alvo da sua viagem. A vida espiritual está para além da certeza e da certificação. Nela nada está dado, nada está garantido. O homem avança no meio do nevoeiro e nada pode esperar a não ser prosseguir o caminho.

domingo, 11 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 6

Paul Ackerman - Femme nue devant une table

6. Sob a luz da sombra

Sob a luz da sombra
Desenho o teu corpo
Preso ao meu desejo.

E o que me assombra
Não é luz nem trevas
Mas o que em ti vejo.

sábado, 10 de outubro de 2015

A reconstrução da totalidade

Georgia O'keeffe - Blue and Green Music (1919)

A realidade sensível que nos atinge cinde-se nas portas de entrada da nossa consciência. Sabor, cor, tacto, som e cheiro são já exercícios que resultam de um processo analítico de abstracção imposto pela nossa natureza. Toda a vida espiritual passa pela reconstrução daquilo que foi cindido, num esforço de apreensão do todo que a nossa sensibilidade fragmentou, numa experiência que espera sempre descobrir que o todo é mais do que a mera soma das partes.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O ritmo de cada um

Nicolás de Lekuona - O bosque do ritmo (1932)

O ritmo é aquilo que diferencia o caminho de cada um na vida do espírito. Por isso, nenhuma aventura espiritual de um homem pode ser modelo a copiar por outro. A consciência desta diferença radical é essencial. O que está em jogo, na vida espiritual, não é a massificação igualitária mas a singularização de cada um. Que cada um, segundo o ritmo que é o seu, responda à voz que o chamou. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (251)

Gustav Klimt - Palácio sobre a água (1908)

imóveis as águas
esperam a luz do estio
árvores na margem

terça-feira, 6 de outubro de 2015

No magma umbroso

Fernando Lerín - Sem título (1985)

No magma umbroso da vida estão contidos todos os possíveis. O lento e doloroso trabalho do espírito acabará por retirar uma e outra figura (um deus, um poema, um quadro, um rapto místico, uma sinfonia), num processo secreto, inesperado, que traz consigo a luz que iluminará por instantes o caminho do viandante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Do trabalho alienado

George Grosz - Arbeiter (1912-13)

É por demais conhecida a teoria marxista da alienação. O homem, no trabalho moderno ao tornar-se mercadoria, estranha-se da sua própria natureza. O mecanismo económico do estranhamento é, contudo, secundário. A alienação do homem no trabalho reside no facto deste não ser um factor de realização da vida do espírito. Em muito do trabalho que o homem realiza - mesmo em domínios ditos criativos e não apenas no trabalho mecânico - o que existe é uma submissão do espírito a regras que lhe são estranhas. É esta submissão que impede que o trabalho de cada um seja a realização de uma vocação, isto é, uma resposta a uma voz que o chama.

domingo, 4 de outubro de 2015

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de artificio

O fogo de artifício não é uma mera diversão para alegrar a vida cansada das pessoas. Ele constitui a metáfora por excelência da vida dos homens. Preferem um fogo e uma luz aparentes ao fogo e à luz real e efectiva. O verdadeiro fogo queima e a verdadeira luz cega. Para lidar com eles, um longo e difícil caminho é necessário. É mais fácil fixar-se nas aparências e deixar-se levar pelo artifício do que entregar-se ao esforço que a vida do espírito exige.

sábado, 3 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 5

Aristide Maillol - Dans l'esprit d'une fresque (1930)

5. Silêncio, silêncio

Silêncio, silêncio.
Oiço um rumor,
Nasce no teu ventre.

Silêncio, silêncio.
Vejo o fulgor
Que a ti me prende.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Arrependimento e conversão

Cecilio Pla Gallardo - Arrepentimiento (1896)

Na vida dos homens, o arrependimento é uma das experiências mais equívocas. Arrepender-se significa que a consciência moral sente remorso por actos ou faltas passadas. Arrependimento, exigem-no os pais aos filhos, os professores aos alunos, o confessor aos crentes, o juiz aos condenados. E o bom senso diz-nos que o arrependimento é melhor que a contumácia no erro. Este jogo entre o arrependimento da consciência moral e a orgulhosa obstinação no erro encerra, contudo, o problema no âmbito da consciência e oculta a questão essencial. O problema não é moral mas da ordem do ser, daquilo que se é. Mais do que arrepender-se, há que tornar-se outro, deixar de ser aquilo que conduz ao erro e tornar-se um outro ser. É esta alteração que faz da conversão uma experiência radicalmente diferente da do arrependimento. E só esta experiência pode evitar o retorno à errância.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (250)

Eugene Delacroix - Estudo do céu ao entardecer (1849)

um céu de outono
entardece nos teus olhos
luz sombra e sonho

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O lugar da noite

Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)

Para onde vou agora que todos voltam para casa? Quando a noite cai, sinto um pequeno alívio. Os dias, com a sua luz, cansam-me. Por vezes, sinto a cabeça vazia; outras, ela parece estoirar de tão cheia. São assim os meus dias, um eterno balancear entre o vazio e a plenitude. Quando a noite cai, todavia, saio de casa e tomo o caminho contrário ao da multidão que volta. Não olham para mim, seguem indiferentes como se eu fosse apenas uma sombra no crepúsculo. Essa indiferença alimenta-me e eu sigo rua fora. Para onde? Apresso-me para o sítio que semeia o medo daqueles que passam por mim. Corro para o lugar onde nasce a noite. E ela, hirta no seu vestido de veludo, lá está à minha espera. Sinto os seus olhos nos meus. Não os vejo, sinto-os. Tremo no silêncio e nunca sei se a manhã chegará.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O jogo das labaredas

Boris Kustodiev - Fogueira (1916)

A fogueira não é apenas o centro de uma sociabilidade campestre, o lugar à volta do qual os homens se reúnem e dão livre curso à imaginação narrativa. Ela é também um sinal, um indício, em suma um símbolo. Eleva-se da terra para o céu, como se o destino de toda a matéria fosse rarefazer-se para se elevar ao alto. Aturdido, o homem fixa o olhar no jogo das labaredas e, sem dar por isso, recebe uma lição de metafísica.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O desejo e o nada

Remedios Varo - O desejo (1935)

Associamos rapidamente o desejo ao fogo e dizemos coisas como o fogo do desejo ou o desejo ardente. O que muitas vezes desencadeia o desejo é uma carência, a ausência de qualquer coisa. Pensa-se então que a energia que se manifesta no desejo vem do objecto desejado e não do nada que se revela na carência ou na falta. Isso será, todavia, um equívoco. A energia que alimenta o desejo não é o objecto que o há-de satisfazer, e assim matar, mas a própria carência, o próprio o nada que se manifesta no desejar. O desejo alimenta-se de si e é a si que vai buscar a energia com que fulge na noite e arde no dia. O desejo deseja-se a si.

domingo, 27 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 4

Ramón Casas Carbó - Desnudo (1984)

4. Deitada na erva

Deitada na erva
Um rasto de luz
Ergue-se aos céus.

E os teus cabelos
Esperam a voz
Secreta dos meus.

sábado, 26 de setembro de 2015

O livro fechado

Lisa Milroy - Book (1983)

Há dias em que o coração se descompassa. O som de um violino, um raio de sol entre as folhas das árvores, o grito do meu neto no quintal. A razão, nessa hora, cede, torna-se difusa e uma oração sacode-me os lábios. Uma oração que nasce na razão e que desce, tremeluzente, pelo corpo, para se entranhar em cada célula do meu ser. A terra, em convulsão, logo se aquieta e o coração sossega. Esqueço-me de Deus e pego, ao acaso, num livro, num daqueles que está perdido pelo chão do quarto. Abro-o e começo a ler. Seja qual for o livro, são sempre as mesmas palavras que encontro: esqueces-te de mim mas só eu sei o nome que, no grande livro, se esconde no segredo do teu nome. O livro fecha-se; adormeço.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (249)

Herbert Boeckl - Arbres au bord du lac de Klopein (1923)

neste velho lago
árvores crescem nas margens
raízes na água

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Sobre a discussão

Emil Hansen - Discussion (Blue)

No mundo ocidental, a valorização da discussão - sob a denominação de discussão crítica - oculta duas coisas essenciais. O culta o seu real valor e a sua impotência na vida do espírito. O real valor da discussão é o da substituição da violência física pela confrontação simbólica. Esta substituição, contudo, é uma necessidade social e nada tem a ver com o caminho para a verdade. Os limites da discussão estão na sua própria natureza. A confrontação simbólica através de palavras é ainda uma paixão, onde os egos se afirmam e se defendem. O caminho do espírito começa, todavia, quando o ego se cala e abandona o palco onde representa o seu triste papel.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 3

Toulouse-Lautrec - Crouching Woman Red Hair (1897)

3. Avisto o teu corpo

Avisto o teu corpo
E tudo estremece.

Os astros no céu.
As águas na terra.

E a minha mão
Que se desvanece.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Do início e do fim

Paul Klee - Ab ovo (1907)

Que maior ilusão poderá haver do que pensar num início? Tanto na vida da natureza como na do espírito não há um início, mas apenas processo de transição que medeiam dois infinitos, o infinito que vem antes e o infinito que vem depois. Mesmo numa interpretação da criação do mundo ex nihilo só em aparência um início. O criador seria o infinito que precede a criação e a criatura. Se não há um início, haverá um fim? Não se estenderá o infinito infinitamente?

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A curva da estrada

Paul Cézanne - A Turn in the Road at La Roche-Guyon (1885)

Uma curva na estrada. Ele parou, olhou em redor, e tornou murmurar: uma curva na estrada. Sentou-se. Estava cansado. A viagem tinha sido longa, mas sem grandes surpresas. Até aqui, o caminho sempre fora recto, agora aquela curva. O que haverá depois dela? Que mundo espera do outro lado? Deixou a memória vaguear por cada uma das etapas que o trouxera ali. Escolhera caminhos fáceis. Neles não havia segredos nem mistérios. Tudo se abria diante do olhar. Agora, tinha uma curva e um mundo que nela se escondia. Anoiteceu e ele continuou sentado à beira da estrada. Olhava à curva, fascinado. O cansaço era tanto que o sono venceu o fascínio. Quando acordou, olhou para a curva que tolhera a sua viagem. Desaparecera. À sua frente erguia-se uma enorme escarpa. Uma fronteira intransponível.

domingo, 20 de setembro de 2015

Do belo e do útil

Kazimir Malevich - Macieiras em flor (1904)

Na vida da natureza como na do espírito, o prazer estético vem antes da utilidade. Antes do fruto, desse símbolo recorrente de tudo o que é útil, vêm as flores. É com a queda da beleza que emerge a utilidade. Esta, porém, não deveria ser considerada como a mera negação daquela. Deveria, antes, contê-la, intensificá-la, sendo o fruto não apenas útil como belo. A vida do espírito não é outra coisa senão esse contínua fusão do bom, porque útil ao caminho, e do belo.

sábado, 19 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (248)

Pablo Picasso - Casas en la colina (Horta de Ebro) (1909)

casas na colina
vistas de longe parecem
aves de rapina

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

De ruína em ruína

Juan O'Gorman - De unas ruinas nacen otras ruinas (1949)

Nunca meditaremos o suficiente sobre um símbolo tão rico como o das ruínas. Nelas não se manifesta apenas a inconsistência física dos corpos, a degradação da vida material e o efémero da construção humana. Elas simbolizam a passagem e a morte, mas como todos os símbolos as ruínas também falam da vida, do sopro do vento, do trabalho do espírito. As ruínas nascem no momento em que o espírito se retira daquele modo de existência para que a vida se afirme de uma outra e mais rica forma. O espírito progride de ruína em ruína.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 2

Nicanor Piñole - Desnudo femenino

2. Essa subtil ânsia

Essa subtil ânsia
Que te toca o ventre
Desce no meu corpo.

É luz que me acende
Se te vejo o rosto
Se te olho de frente.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Entre o caos e o cosmos

Álvaro Lapa - Sem título (1964)

A vida do espírito é vista como um mundo organizado, um cosmos em oposição ao caos. Esta visão dicotómica, contudo, falha o essencial. Toda a actividade espiritual, seja qual for a sua natureza, está entre o caos e o cosmos. Não é a completa ausência de forma nem a forma pura definitiva e eterna. Ela é o processo contínuo de transição, onde estruturas formais se libertam do caos, ganham um sentido que se desvanece pois outras estruturas tomam o seu lugar, numa busca de perfeição sempre ameaçada pelo retorno ao informe e à queda no abismo hiante.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

A aprendizagem mais difícil

Pat Steir - Nothing (1974)

Não querer nada, não desejar nada, não esperar nada. Aceitar aquilo que é enviado e abrir-se ao que nos solicita. Estas são as aprendizagens mais difíceis. São também as mais importantes. Melhor, estas são as únicas aprendizagens importantes,  as únicas decisivas.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Antropometria

Yves Klein - Antropometrias (1960)

Há palavras que nos fazem parar para as olhar bem dentro e tentar descobrir o seu sentido e o que nele se oculta. Uma palavra como aquela que dá título a uma série de trabalhos de Yves Klein, antropometria, faz-nos pensar. O que se pensa nela? A submissão do homem a um metro, a uma medida que se lhe impõe e que o submete ao jogo das comparações? Se meditarmos sobre essa possibilidade logo descobrimos que ela talvez seja o mal menor. Pior seria pensar a antropometria como a ideia sofística de que o homem é a medida, o metro, com que tudo se deve medir. Pior do que ser submetido a uma medida é ser a medida de todas as coisas.

domingo, 13 de setembro de 2015

O sopro que anima

Francis Picabia - Animação (1914)

Toda a vida espiritual é um exercício de animação. Em latim anĭma (alma) significa também sopro, ar. Possuir alma significa ter recebido o sopro, ter sido insuflado. A vida do espírito é, em primeiro lugar, preparação e abertura para receber o sopro que anima, que dá alma; depois, é também a transmissão desse sopro em cada momento da vida. Salvar a alma significa ter a capacidade de ser insuflado e de insuflar. Perder a alma não é mais do que a incapacidade de receber o sopro, o vento que corre onde quer.