quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (201)

Ilse Bing - Kloster Reichenau am Bodensee (1929)

o velho telhado
cobre aquele segredo
nunca antes lembrado

terça-feira, 19 de agosto de 2014

O espelho e a face

JCM - Speculum I (2014)

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Desde que me tornei homem, eliminei as coisas de criança. Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido. (Paulo, I Cor 13: 11-12)

Quem sou eu? Esta interrogação não é apenas o sinal de uma busca de identidade. É o sintoma de uma confusão. Aquilo que sei de mim resulta apenas do que vejo num espelho. Esta visão confusa não é um mero problema epistemológico, mas um indicador do grau de maturidade. A analogia trazida por Paulo remete explicitamente para isso. Vejo-me ainda como se vêem as crianças. A viagem do viandante é aquela que o conduz desta visão em espelho - toda a especulação é assim vista como um estado infantil da existência - para uma visão face a face. A viagem é uma transição da menoridade para a maturidade, a qual é esse momento em que me vejo tal como sou visto, em que me vejo face a face e descubro a minha própria verdade.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O próximo passo

JCM - Símbolos (2014)

Por vezes, o viandante encontra no caminho estranhos símbolos. Não indicam uma direcção, nem trazem consigo uma verdade indisputável. Apenas desencadeiam a meditação. E isso é o bastante. Estimulada pelo símbolo encontrado, a meditação autonomiza-se de tudo o que lhe é exterior. É nessa estranha clareira que o viandante decide o próximo passo.

domingo, 17 de agosto de 2014

Na densa névoa

JCM - Mitologias (o dia de  retorno de D. Sebastião) (2008)

Subir a escarpada montanha e adentrar-se na densa névoa, rasgar um caminho - o seu caminho - na pedra inóspita e velada pelos céus. Esta é a viagem do viandante. Move-o o puro caminhar, pois em cada passo há uma luz que se abre e o orienta - como se, estando ela ali, o chamasse de longe - na densa névoa que é a vida dos homens na Terra.

sábado, 16 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (468)

Ellen Auerbach - Under my umbrella (1949)

468. a mão suspende-se

a mão suspende-se
sobre a pele
e na sombra
tece-se a paisagem
onde ateado
o fogo alumia
o fim da viagem

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Lugar nenhum

JCM - Chemins qui ne mènent nulle part (2008)

Nunca meditamos suficientemente o verso de Rilke. Caminhos que levam a parte alguma são ainda caminhos? Não deverá qualquer caminho levar-nos a um lugar determinado, a um destino prévio e já constituído? O que significa então esse nenhum lado? Significa a indeterminação, em primeiro lugar. Significa, depois, que esse lugar para onde se caminha não existe, ele apenas poderá emergir do próprio caminhar. Na vida do espírito não são os lugares que determinam caminhos para ligação entre eles. É o caminhar que abre o caminho e o lugar. É a viagem que aflora a clareira e a determina, para logo a abandonar. O viandante caminha pois não pertence a qualquer lugar.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (200)

Francesco Ferruccio Leiss - Ricordo di una serata nebbiosa (1955)

a luz desvanece-se
no frio segredo da noite
prodígio acontece

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Da ambiguidade do ritual

JCM - Raiz e Utopia (Ritual) (2014)

O ritual, como tudo o que é essencial na vida dos homens, possui uma ambiguidade constitutiva. O ritual é o processo pelo qual a vida social, religiosa, cultural, etc. transita do caos para ordem. É uma fonte de vitalidade e uma forma do homem lidar com o que há de desmedido e de transcendente. Transporta, porém, consigo uma grande ameaça. A ritualização da existência, se desligada do espírito que lhe deu existência, torna-se uma fonte de morte. Ritualizada e vazia, a vida perde o sentido.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A presença do eterno

JCM - Ruínas, Évora (2008)

Esses lugares abandonados pela vida a que chamamos ruínas são sinais dispersos pelo mundo. Sinalizam o passar do tempo e a precariedade de tudo o que é feito pelo homem. Mas a sua insistência em persistir ultrapassa toda a medida humana e aponta para o que há de mais incompreensível para a nossa experiência. Ruínas, mais do que o restolho que a vida abandonou, são a presença do eterno naquilo que é tecido de tempo.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O sonho como ensaio

JCM - Colour dreams (2014)

Os sonhos sempre causaram perplexidade aos homens. Viram neles uma antevisão do futuro (a natureza profética dos sonhos) ou o sintoma de um trauma do passado (a psicanálise freudiana). Esta relação do sonho com a temporalidade acaba por esconder uma outra não menos importante, a relação com o espaço físico. O sonho é a experiência onde os homens ensaiam uma suspensão das leis da natureza, vivendo através deles aquilo que não é permitido pelas leis físicas que governam os corpos. A pergunta que nos deveria ocorrer seria não sobre o que irá acontecer no futuro ou sobre aquilo que aconteceu no passado e está oculto no inconsciente. A pergunta decisiva sobre o sonho deverá ser antes esta: por que razão temos necessidade de ensaiar oniricamente uma vida fora dos constrangimentos impostos pelas leis da natureza?

domingo, 10 de agosto de 2014

Da necessidade de mitologias

JCM - Mitologias (animais totémicos)  (2014)

A vida dos homens é uma longa colecção de mitologias, um exercício contínuo de mitificações, uma produção ininterrupta de mitos. Com a experiência trazida pela modernidade e pelo iluminismo sabemos que entre o mitificar e o mistificar o passo é curto, demasiado curto. Assim informados, por que razão insistimos no trabalho do mito? Não seria mais curial entregar tudo à guarda da ciência empírica? Isso seria verdade se não pressentíssemos que uma outra verdade exige um outro acesso. A nossa disposição para as mitologias reflecte não o amor dos homens às ilusões e às quimeras, mas o seu fundo compromisso com a verdade, com uma outra verdade que escapa à ciência e nos chama de longe.

sábado, 9 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (199)

JCM - Raiz e Utopia (o eterno retorno) (2014)

este mar secreto
abre-se de onda em onda
um sonho desperto

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O desejo e a moral

Edward Burne Jones - A manhã da Ressurreição (1882)

Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mateus 16:24)

Funda-se o Cristianismo em preceitos morais? Não, eles não são o fundamento da religião que tomou conta da Europa e de uma parte apreciável do mundo. Onde se funda então o Cristianismo? Funda-se no desejo, como refere Mateus: Se alguém quiser vir comigo... Os preceitos morais inscrevem-se num lugar segundo e são inúteis se a faculdade de desejar não estiver mobilizada. Apesar de secundários, esses preceitos são condição necessária. Dois preceitos são indicados por Mateus. A renúncia a si mesmo e o tomar a sua cruz. Através deles o desejo é canalizado - enquanto amor - para o caminho a seguir. E todo o Cristianismo não é outra coisa senão isto.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Pensamento humano

JCM - Auto-retrato VII (2014)

Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamento não são os de Deus, mas os dos homens. (Mateus 16:23)

Que bagagens deve o viandante deixar para trás para que a viagem possa prosseguir? Em primeiro lugar, antes de toda a outra mercadoria, deve abandonar os seus próprios pensamentos, as suas considerações sobre si, sobre o mundo ou sobre a própria viagem que é chamado a fazer. Tornar-se pobre em espírito não é outra coisa senão deixar para trás esses pensamentos, que são humanos, demasiado humanos. Isto é, limitados, finitos, retrato do egoísmo próprio. Só assim um outro pensamento se poderá manifestar.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (467)

Ferdinand Hodler - Desnudo tumbado con flor (1888)

467. a flor luminosa solta-se

a flor luminosa solta-se
o tempo a perdeu

mas levada pelo vento
poisa na tua mão

e tudo se transfigura
na noite de breu

lua e trevas são agora
sol no coração

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cegos e guias de cegos

JCM - Distopia (o olho do panóptico) (2014)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mateus 15:14)

É no contexto de uma discussão sobre o que é a tradição que surge esta resposta. Por que razão se diz que se está perante cegos e guias de cegos? Porque a tradição espiritual é reduzida à observância ritualista sem relação com a vida verdadeira. É a ausência de contacto com a vida do espírito que torna os homens cegos. E aqueles que os guiam são ainda cegos, talvez mais cegos, pois vendo não vêem a vida. Cuidam apenas de um sistema de observação - que hoje diríamos distópico - que permite controlar a observação exterior das regras rituais sem tocar naquilo que vivifica o homem, e lhe dá a possibilidade de passar da cegueira à visão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Por que duvidaste?

Norman Narotzky - All life is there (1984)

E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:31)

Esta pergunta - por que duvidaste? - fica sem resposta. Pedro não disse nada. Este silêncio, porém, é eloquente e dá que pensar. Situa-se no encontro conflitual entre fé e dúvida. Qual o significado do silêncio de Pedro? A finitude da sua humanidade indica que esse conflito é constitutivo do homem. Enquanto ser natural dotado de razão, o homem está cindido entre a crença absoluta e a dúvida. Pedro não respondeu pois a sua natureza era a resposta. Duvidar faz parte da condição humana. Para que apenas a fé mais pura brilhasse, seria necessário que Pedro, sendo humano, fosse mais do que um homem. E foi isto o que, por várias vezes e em diferentes circunstâncias, lhe foi pedido.

domingo, 3 de agosto de 2014

A cura dos enfermos

Pablo Picasso - La malade

E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos. (Mateus 14,14)

Duas perplexidades surgem ao leitor perante este texto de Mateus. A primeira leva-o a perguntar: por que razão uma grande multidão leva ao desencadear da compaixão, de uma íntima compaixão? A segunda diz respeito aos enfermos que nela estavam e que foram curados. Quem são eles, esses enfermos? A primeira perplexidade encontra resposta no versículo anterior. Essa grande multidão é composta por aqueles que O seguiram desde as cidades. A compaixão denota a compreensão do esforço - da ascese - que representa seguir o Mestre. Segui-Lo emerge, deste modo, como um processo contra-natura, um exercício que exige sacrifício. Mas quem são os enfermos? São aqueles que, mesmo ao segui-Lo, caem na errância, perdem o alvo. Fazem o caminho mas não sabem o sentido desse caminho. Reproduzem o gesto ritual, mas este é já destituído de verdadeira vida. Por isso é dito que estão doentes. São esses os enfermos que a compaixão leva à cura, isto é, à revelação do sentido do caminho que estão a fazer.

sábado, 2 de agosto de 2014

Folhas mortas

JCM - Folhas mortas (2014)

Exaustas, as folhas entregam-se à morte. Não porque a morte tenha triunfado, mas para que a vida volte de novo e, na exuberância e frescura do verde, se torne símbolo que oriente o viandante no caminho. Sempre que este se depara com folhas mortas é a vida plena e triunfante que espera.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O verdor da vida

JCM - Viriditas (2007)

Terra viriditatem sudat. (Hildegard von Bingen, Symphonia armonie celestium revelationum)

Viriditas pode ser traduzido por verdor, a qualidade daquilo que é verde. O termo designa um dos conceitos centrais da mística de Hildegard von Bingen. Designa a qualidade daquilo que é saudável e, por isso, é verde, fresco. Esta saúde refere-se tanto ao domínio físico como ao espiritual. Pode ser entendida como um equilíbrio, mas um equilíbrio que resulta da escuta da Palavra, como se a vida, no verdor que a mostra como saudável, apenas do Logos pudesse provir.

quinta-feira, 31 de julho de 2014

A maior das quimeras

Max Ernst - Quimera (1925)

Não há gente mais dada a quimeras do que aquela que se diz realista e apenas interessada na materialidade do mundo. A abertura ao espírito - a vida contemplativa - tem por pressuposto o abandono de toda e qualquer ilusão, seja uma ilusão material, seja uma ilusão dita espiritual. Pois aquele que quiser salvar a sua vida - a maior das quimeras-, perdê-la-á.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

Haikai do Viandante (198)

Francis Schanberger - Two Leaves (secret hiding place) (2013)

secreto lugar
onde o teu corpo me espera
na noite ao sonhar

terça-feira, 29 de julho de 2014

Do tempo e da eternidade

JCM - Do tempo e da eternidade (2007)

Água e árvores. A água, claro, é um símbolo da temporalidade, do fluxo do tempo. As árvores, não sendo eternas, podem sem dificuldade simbolizar a eternidade. Se nos deixarmos guiar por esta simbólica talvez possamos penetrar um pouco no mistério da criação daquilo que é temporal. Como as árvores precisam de água para se alimentar, também aquilo que é eterno mergulha as suas raízes no fluxo temporal, alimentando-se do sentido que assim faz nascer.

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Do ocaso e da aurora

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Quando desce a noite, descobrimos a verdade do dia. No ocaso encerra-se a luz. Cercada pela noite, porém, a luz não se desvanece. Respira lentamente e prepara, nas trevas mais densas, o raiar de uma outra e mais decisiva aurora. A viagem continua.

domingo, 27 de julho de 2014

À volta de um ponto

Frantisek Kupka - Alrededor de un punto (1911-12)

Por vezes, o viandante volteia uma e outra e outra vez em torno de um ponto. Sinal de que está perdido? De certa maneira, sim. Fundamentalmente, porém, sinal de que, tomado pela errância, procura já o caminho que o leva ao que chama por ele.

sábado, 26 de julho de 2014

Signo sinal 4. A natureza como palavra

Joseph K. Dixon - A Native American sends smoke signals in Montane (1909) [National Geographic Found]

O homem pode utilizar os elementos da natureza como signos e símbolos, porque toda a natureza é já - no todo e nas partes - signo e símbolo. Através dela, aquilo que está para além da natureza comunica connosco. Saibamos nós ver e escutar O que nela se manifesta e se torna palavra.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Poemas do Viandante (466)

JCM - Entrada (2014)

466. quero-te ver nesta porta

quero-te ver nesta porta
à luz que se esvai

aguardo-te no segredo
que de ti descai

desejo-te nessa hora
vem e logo vai

quinta-feira, 24 de julho de 2014

A sombra sobre a palavra

Rembrandt - Parábola do homem rico (1627)

Por que lhe falas em parábolas? (...) Por isso lhes falo por parábolas; porque eles, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem nem compreendem. (Mateus, 13:10 e 13)

A parábola e a alegoria são formas indirectas de tornar acessível um certo conteúdo discursivo excessivamente luminoso. E o som e a luz são de tal modo fortes que os olhos e os ouvidos dos homens não os suportam. Falar por parábolas - ou através de alegorias - é projectar uma certa sombra sobre a palavra. Não para que ela se oculte, mas para que se revele segundo a possibilidade de escuta daqueles que por ela são atingidos.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Um traço de luz

JCM - Origem da Vida (2014)

Um traço de luz irrompe nas trevas e, lentamente, dissemina-se na planície da noite. Onde tudo parece ausência, lentos grãos de vida brotam da escuridão. Sementes carregadas de esperança anunciam a via, a verdade e a vida.

terça-feira, 22 de julho de 2014

Haikai do Viandante (197)

JCM - Caminhos (2014)

sendas de verão
rasgam a pele da terra
abrem-se na mão