Aubrey Vincent Beardsley - The Kiss of Judas, illustration for The Pall Mall Magazine (1893)
«No entanto, vede: a mão daquele
que me vai entregar está comigo à mesa! O Filho do Homem segue o seu caminho,
como está determinado; mas ai daquele por meio de quem vai ser entregue!» Começaram
a perguntar uns aos outros qual deles iria fazer semelhante coisa. Levantou-se
entre eles uma discussão sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus
disse-lhes: «Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a
autoridade são chamados benfeitores. Convosco, não deve ser assim; o que for
maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. Pois,
quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está
sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Lucas 22,21-27) [Comentário de Cirilo
de Alexandria aqui]
[Nota: o texto do evangelho de Lucas de hoje tem uma dimensão incomportável
para o comentário num blogue. Escolheu-se apenas uma pequena passagem para
comentário. Consultar o texto de Lucas completo aqui
(deverá ser necessário pesquisar, depois, na data correspondente)]
Este excerto pode ser lido no cruzamento de duas temáticas. A primeira
cruza traição e missão. A segunda meditação centra-se no problema da autoridade.
A transição entre os dois temas é obscura. Perante o anúncio de que um dos
discípulos iria praticar a traição, surgiu a questão de qual deles seria o
traidor. De imediato, porém, o texto resvala para uma outra questão: qual deveria
ser considerado o maior. Neste texto de Lucas descobre-se, de imediato, que
aqueles discípulos escolhidos são humanos, demasiado humanos. Não parecem ser
pessoas especialmente espirituais, mas homens comuns que podem trair e que, movidos
pela vaidade, se questionam pelo seu lugar e pela sua preeminência. Talvez este
apontamento sociológico dos
discípulos permita ligar os dois temas em causa.
O Filho do Homem deverá realizar a sua missão, cumprir o seu serviço, efectivar
a sua destinação. Que esta missão, para que seja consumada, dependa de um acto
de traição não é das menores perplexidades que se encontram nos textos evangélicos.
Contudo, a traição inscreve de imediato aquela missão no espaço humano, embora
não lhe retire o carácter providencial que ela encerra. Uma estranha dialéctica
está aqui inscrita: a traição tem por fim evitar a consumação da missão, mas é
ela que desencadeia a sua efectiva realização. Ora, como se poderá avaliar o
acto de traição? Do ponto de vista objectivo, ele permitiu que a missão se
realizasse. Do ponto de vista subjectivo, não deixa de ser um serviço vil. A
missão de Cristo não se realizou devido ao acto de traição mas com e apesar
dele. Independentemente das consequências, há formas de servir que são absolutamente
vis (ai daquele por meio de quem (o Filho
do Homem) vai ser entregue!)
O segundo tema do texto de Lucas é o da autoridade. Contrariamente à
autoridade política, que reside no poder e na dominação, a autoridade
representada pela figura de Cristo reside no serviço. Maior é aquele que serve
os outros, não o que os domina e coage. Servir significa então um exercício de
libertação. Será tanto maior, terá tanto mais autoridade, quanto maior for a
disponibilidade para servir. No cerne da autoridade (o ser maior) está então o
servir. É neste conceito que se encontra a ligação com a traição, a qual também
é um serviço.
Servir é o essencial, mas nem todas as formas de servir são dignas de
valor. O texto traz assim a necessidade de perscrutar as razões por que nos
dispomos a servir os outros. Esse perscrutar é também um caminho de
purificação. Os homens são frágeis, vaidosos e dissimulados. Por isso, a sua
forma de servir pode ser muita idêntica à daquele cujo serviço foi trair. O
texto confronta-nos com o núcleo central das razões que nos conduzem a determinadas
opções, e confronta-nos na sua máxima dureza. Serves por que razão? Não será o
teu serviço um acto de traição?