domingo, 24 de março de 2013

Da natureza do servir

Aubrey Vincent Beardsley - The Kiss of Judas, illustration for The Pall Mall Magazine (1893)

«No entanto, vede: a mão daquele que me vai entregar está comigo à mesa! O Filho do Homem segue o seu caminho, como está determinado; mas ai daquele por meio de quem vai ser entregue!» Começaram a perguntar uns aos outros qual deles iria fazer semelhante coisa. Levantou-se entre eles uma discussão sobre qual deles devia ser considerado o maior. Jesus disse-lhes: «Os reis das nações imperam sobre elas e os que nelas exercem a autoridade são chamados benfeitores. Convosco, não deve ser assim; o que for maior entre vós seja como o menor, e aquele que mandar, como aquele que serve. Pois, quem é maior: o que está sentado à mesa, ou o que serve? Não é o que está sentado à mesa? Ora, Eu estou no meio de vós como aquele que serve. (Lucas 22,21-27) [Comentário de Cirilo de Alexandria aqui] [Nota: o texto do evangelho de Lucas de hoje tem uma dimensão incomportável para o comentário num blogue. Escolheu-se apenas uma pequena passagem para comentário. Consultar o texto de Lucas completo aqui (deverá ser necessário pesquisar, depois, na data correspondente)]

Este excerto pode ser lido no cruzamento de duas temáticas. A primeira cruza traição e missão. A segunda meditação centra-se no problema da autoridade. A transição entre os dois temas é obscura. Perante o anúncio de que um dos discípulos iria praticar a traição, surgiu a questão de qual deles seria o traidor. De imediato, porém, o texto resvala para uma outra questão: qual deveria ser considerado o maior. Neste texto de Lucas descobre-se, de imediato, que aqueles discípulos escolhidos são humanos, demasiado humanos. Não parecem ser pessoas especialmente espirituais, mas homens comuns que podem trair e que, movidos pela vaidade, se questionam pelo seu lugar e pela sua preeminência. Talvez este apontamento sociológico dos discípulos permita ligar os dois temas em causa.

O Filho do Homem deverá realizar a sua missão, cumprir o seu serviço, efectivar a sua destinação. Que esta missão, para que seja consumada, dependa de um acto de traição não é das menores perplexidades que se encontram nos textos evangélicos. Contudo, a traição inscreve de imediato aquela missão no espaço humano, embora não lhe retire o carácter providencial que ela encerra. Uma estranha dialéctica está aqui inscrita: a traição tem por fim evitar a consumação da missão, mas é ela que desencadeia a sua efectiva realização. Ora, como se poderá avaliar o acto de traição? Do ponto de vista objectivo, ele permitiu que a missão se realizasse. Do ponto de vista subjectivo, não deixa de ser um serviço vil. A missão de Cristo não se realizou devido ao acto de traição mas com e apesar dele. Independentemente das consequências, há formas de servir que são absolutamente vis (ai daquele por meio de quem (o Filho do Homem) vai ser entregue!)

O segundo tema do texto de Lucas é o da autoridade. Contrariamente à autoridade política, que reside no poder e na dominação, a autoridade representada pela figura de Cristo reside no serviço. Maior é aquele que serve os outros, não o que os domina e coage. Servir significa então um exercício de libertação. Será tanto maior, terá tanto mais autoridade, quanto maior for a disponibilidade para servir. No cerne da autoridade (o ser maior) está então o servir. É neste conceito que se encontra a ligação com a traição, a qual também é um serviço.

Servir é o essencial, mas nem todas as formas de servir são dignas de valor. O texto traz assim a necessidade de perscrutar as razões por que nos dispomos a servir os outros. Esse perscrutar é também um caminho de purificação. Os homens são frágeis, vaidosos e dissimulados. Por isso, a sua forma de servir pode ser muita idêntica à daquele cujo serviço foi trair. O texto confronta-nos com o núcleo central das razões que nos conduzem a determinadas opções, e confronta-nos na sua máxima dureza. Serves por que razão? Não será o teu serviço um acto de traição?

Haikai do Viandante (133)

George Inness - Twilight (1860)

Pura luz da noite,
chegas frágil e cansada:
refúgio e açoite.

sábado, 23 de março de 2013

Sacrifício e universalidade

Giovanni Battista Piazzetta - El sacrificio de Isaac (1712-14)

Naquele tempo, muitos dos judeus que tinham vindo a casa de Maria, ao verem o que Jesus fez, creram nele. Alguns deles, porém, foram ter com os fariseus e contaram-lhes o que Jesus tinha feito. Os sumos sacerdotes e os fariseus convocaram então o Conselho e diziam: «Que havemos nós de fazer, dado que este homem realiza muitos sinais miraculosos? Se o deixarmos assim, todos irão crer nele e virão os romanos e destruirão o nosso Lugar santo e a nossa nação.» Mas um deles, Caifás, que era Sumo Sacerdote naquele ano, disse-lhes: «Vós não entendeis nada, nem vos dais conta de que vos convém que morra um só homem pelo povo, e não pereça a nação inteira.» Ora ele não disse isto por si mesmo; mas, como era Sumo Sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação. E não só pela nação, mas também para congregar na unidade os filhos de Deus que estavam dispersos. Assim, a partir desse dia, resolveram dar-lhe a morte. Por isso, Jesus já não andava em público, mas retirou-se dali para uma região vizinha do deserto, para uma cidade chamada Efraim e lá ficou com os discípulos. Estava próxima a Páscoa dos judeus e muita gente do país subiu a Jerusalém antes da Páscoa para se purificar. Procuravam então Jesus e perguntavam uns aos outros no templo: «Que vos parece? Ele virá à Festa?»  (João 11,45-56) [Comentário de Leão Magno aqui]

Este passo de João é essencial para compreender, do ponto de vista da elite sacerdotal e intelectual judaica, a morte de Jesus. Segundo a perspectiva de Caifás, a qual parece ter sido seguida pelo Sinédrio, Cristo deveria ser sacrificado. A morte de Cristo não é um acto meramente político, mas, da perspectiva dos seus opositores judaicos, um acto religioso, um sacrifício humano que visa salvar a nação ou povo e congregá-lo, fomentando, desse modo, a sua unidade. Há assim uma clara consciência de que aquela morte tem por finalidade fazer frente a uma dada crise comunitária através de uma saída sacrificial. Estamos perante uma prática arcaica, semelhante, por exemplo, ao sacrifício de Ifigénia pelos helenos, antes de e para rumarem a Tróia.

Estamos perante a génese da ruptura entre o monoteísmo judaico e o novo monoteísmo que emerge com Cristo. A ruptura dá-se não na compreensão da morte de Cristo como um sacrifício, mas na interpretação da finalidade e consequências desse sacrifício. Do ponto de vista da elite judaica, o sacrifício humano de Jesus de Nazaré inscreve-se numa longa tradição sacrificial presente na generalidade das religiões antigas. O sacrifício inscreve-se numa lógica utilitarista. Alguém – ou alguma coisa – é sacrificado para uma comunidade ou indivíduo obter alguma coisa. No caso presente, o sacrifício tinha um fim explícito: manter a comunidade viva e assegurar a sua unidade.

A interpretação cristã, contudo, é surpreendente, mais uma vez. O que vai ser imolado não é um simples ser humano, mas um homem que é filho de Deus. As consequências serão completamente diferentes daqueles que foram propostas, no Sinédrio, por Caifás. Rompem com a limitação étnica e põem de lado uma visão política de âmbito paroquial, para usar uma expressão anacrónica. O que está em jogo é um sacrifício que liberte o homem, que o salve. Não este ou aquele judeu ou o povo eleito no seu conjunto, mas todo e qualquer homem.

Estamos, de facto, perante uma primeira e efectiva globalização espiritual, para utilizar um termo também ele intempestivo. O sacrifício crístico visa preservar a humanidade e assegurar a sua unidade, visa congregar todos os homens num só espírito. A diferente interpretação do sacrifício de Jesus reflectiu-se, como dois mil anos de história o mostraram, no destino do judaísmo e do cristianismo, encerrando o primeiro no âmbito de uma particularidade étnica originária e fazendo do segundo um movimento espiritual que, pela sua essência, tem um cariz universal.

É esta natureza universal do sacrifício crístico – e não meramente étnico-cultural – que traz uma segunda e definitiva consequência: a partir do momento do sacrifício Cristo, todo e qualquer sacrifício humano é compreendido como ilegítimo, como um mero crime contra a pessoa. Na verdade, o sacrifício de Cristo trouxe consigo o imperativo da abolição de todo e qualquer sacrifício humano ou mesmo o sacrifício de outros animais. É a partir desse mesmo sacrifício que, retrospectivamente, podemos compreender a ilegitimidade de todos os sacrifícios humanos que a história dos homens registou. Deparamo-nos aqui com um ponto limite: a utilidade do sacrifício crístico foi a de mostrar a inutilidade – e o carácter criminoso – de todo e qualquer sacrifício de uma vida.

Sonetos do Viandante (19)

Odilon Redon - La lucha de la mujer y del centauro

19. Feroz centauro, que vida te espera?

Feroz centauro, que vida te espera?
A velha ordem está moribunda.
Não há jardins, nem os rios trazem água
Para matar do desejo a fria sede.

Descansa agora que o mundo perdeste,
Deixa a memória trazer-te vitórias,
Rudes derrotas, prazeres perdidos.
Dobra a cerviz, venha o dia submeter-te

Ao grande jugo da fétida dor.
Ouves o cântico, vil companheiro,
Do arcanjo de asas de sombra e seda?

Oiço um rumor, cresce o medo, a terra
Treme no exílio, severa e sombria.
Feroz centauro, que morte te espera?

sexta-feira, 22 de março de 2013

Uma questão de identidade

James Ensor - Ecce Homo

Naquele tempo, os judeus voltaram a pegar em pedras para apedrejarem Jesus. Jesus replicou-lhes: «Mostrei-vos muitas obras boas da parte do Pai; por qual dessas obras me quereis apedrejar?» Responderam-lhe os judeus: «Não te queremos apedrejar por qualquer obra boa, mas por uma blasfémia: é que Tu, sendo um homem, a ti próprio te fazes Deus.» Jesus respondeu-lhes: «Não está escrito na vossa Lei: 'Eu disse: vós sois deuses'? Se ela chamou deuses àqueles a quem se dirigiu a palavra de Deus e a Escritura não se pode pôr em dúvida a mim, a quem o Pai consagrou e enviou ao mundo, como é que dizeis: 'Tu blasfemas', por Eu ter dito: 'Sou Filho de Deus'? Se não faço as obras do meu Pai, não acrediteis em mim; mas se as faço, embora não queirais acreditar em mim, acreditai nas obras, e assim vireis a saber e ficareis a compreender que o Pai está em mim e Eu no Pai.» Por isso procuravam de novo prendê-lo, mas Ele escapou-se-lhes das mãos. Depois, Jesus voltou a retirar-se para a margem de além-Jordão, para o lugar onde ao princípio João tinha estado a baptizar, e ali se demorou. Muitos vieram ter com Ele e comentavam: «Realmente João não realizou nenhum sinal milagroso, mas tudo quanto disse deste homem era verdade.» E muitos ali creram nele. (João 10,31-42) [Comentário de Agostinho de Hipona aqui]

O texto de João começa com a exposição de um conflito em torno da identidade de Jesus. Para os judeus, Cristo blasfemava pois, sendo homem, fazia-se a si mesmo Deus. Quem era Ele? Um homem ou Deus? Surpreendentemente, a questão sobre a identidade de Jesus é transformada por Este na questão da identidade do homem, de qualquer homem. A opacidade da figura de Cristo surge assim como continuação da obscuridade que cada um é para si mesmo. Não é apenas Cristo que é um mistério para o homem, é o próprio homem que é mistério para si mesmo.

Como compreender a fúria daqueles que pegavam em pedras? De certa forma, a figura de Jesus Cristo funciona como um espelho. Ao verem-se nesses espelho, os homens não gostam do que vêem. A imagem de si-mesmos que lhes é devolvida está longe de lhes agradar. Observam-se numa figura onde sobressai uma mutilação e uma feiura que não podem, por orgulho, suportar. É como se a presença de Cristo lhes dissesse: vós sois deuses, como está na Lei, mas transformastes-vos em meros apedrejadores, pois já não sabeis quem sois nem qual o vosso caminho.

A solidariedade entre o mistério da identidade de Cristo e o mistério da identidade do homem tem como corolário a ideia de que a descoberta de Cristo é, para cada homem, uma viagem para si mesmo, uma descoberta de si e da sua própria verdade. Que isto indigne a razão torna-se evidente pelo facto de que nem as obras visíveis – essas provas materializadas de uma identidade que ultrapassa a mera consideração de um eu empírico – são o suficiente para acalmar os homens. A natureza do Cristo, a sua identidade, é um escândalo para a razão presa à abstracção lógica e limitada à informação empírica. Esse escândalo, contudo, não é diferente daquele que reside na identidade e natureza de cada homem. É esse escândalo que, através de Cristo, somos solicitados a aceitar e é esse mesmo que mais tememos em aceitar. Por isso, não faltam pedras nas mão.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Do tempo à eternidade

René Magritte - Eternidade (1935)

Naquele tempo, disse Jesus aos judeus: «Em verdade, em verdade vos digo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Agora é que estamos certos de que tens demónio! Abraão morreu, os profetas também, e Tu dizes: 'Se alguém observar a minha palavra, nunca experimentará a morte'? Porventura és Tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também! Afinal, quem é que Tu pretendes ser?» Jesus respondeu: «Se Eu me glorificar a mim mesmo, a minha glória nada valerá. Quem me glorifica é o meu Pai, de quem dizeis: 'É o nosso Deus'; e, no entanto, não o conheceis. Eu é que o conheço; se dissesse que não o conhecia, seria como vós: um mentiroso. Mas Eu conheço-o e observo a sua palavra. Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz.» Disseram-lhe, então, os judeus: «Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: antes de Abraão existir, Eu sou!» Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas Jesus escondeu-se e saiu do templo. (João 8,51-59) [Comentário de Gregório Magno aqui]

Este é um dos textos evangélicos com maior carga filosófica. Opõe ser e existir. Sem a compreensão desta oposição, uma oposição relativa, não será possível compreender a afirmação inicial se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. Abraão e os profetas existiram. A sua vida foi balizada pelo tempo, começou, durou e terminou. O tempo é a sua condição. Estavam, como todos aqueles que vêm à vida condicionados pela temporalidade. A resposta que Jesus dá à objecção de que ele não teria idade para ver Abraão mostra que ele se coloca num outro plano que não é o da duração. Antes de Abraão existir eu sou.

Antes não significa uma mera anterioridade temporal. Significa a pertença a uma realidade anterior – mais essencial – àquela onde o tempo é a condição de existência. Cristo diz aos interlocutores que está no tempo mas que não pertence à temporalidade, por isso não será afectado pela morte. Mas o que o texto põe claramente em jogo é outra coisa. Também o homem não pertence ao tempo, também a sua existência condicionada é uma limitação que ele pode ultrapassar.

São dois os momentos em que essa condição não condicionada do homem é manifestada. Uma delas está expressa nos enunciados constatativos Abraão, vosso pai, exultou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz. O dia, apesar da sua carga temporal, surge como símbolo daquilo que está para lá do tempo e do condicionamento que este impõe à existência. Abraão só de pensar em ver esse dia exultou. Dir-se-á que era o júbilo da esperança, a alegria da expectativa. A felicidade, porém, nasce da experiência directa dessa realidade, da experiência do Cristo em si mesmo.

O outro momento está no início do texto. Ele manifesta-se num acto de linguagem promissivo ou, na linguagem de John Searle, comissivo: se alguém observar a minha palavra, nunca morrerá. A promessa (nunca morrerá), todavia, está antecedida por uma condição (observar a minha palavra), sem a qual a promessa deixa de ter efeito. Nos actos comissivos, o locutor fica comprometido com um estado futuro. O escândalo do texto – escândalo que se expressa na violenta reacção dos interlocutores de Cristo – reside no paradoxo que ele contém: o futuro prometido é o da abolição do próprio futuro, a saída para lá do tempo, do qual o futuro é apenas uma das suas instâncias.

Abraão atingiu a felicidade porque fez do Verbo (Logos) a sua casa e o seu modo de ser. Quem assim o fizer, quem observar a Palavra (Logos) elevar-se-á a uma condição onde o condicionamento temporal – com as suas três instâncias, passado, presente e futuro – deixará de ter efeito. Desse modo, segundo a promessa, deixará de existir para passar a ser, ser que não contém um fui nem um serei, mas um eterno sou.

Haikai do Viandante (132)

John Constable  - Cloud study (1822)

Céu de cinza e aço,
tropel de nuvens abertas
sobre o que faço.