René Magritte - Auto-retrato (1923)
Naquele tempo, Jesus estava a
expulsar um demónio mudo. Quando o demónio saiu, o mudo falou e a multidão
ficou admirada. Mas alguns dentre eles disseram: «É por Belzebu, chefe dos
demónios, que Ele expulsa os demónios.» Outros, para o experimentarem,
reclamavam um sinal do Céu. Mas Jesus, que conhecia os seus pensamentos,
disse-lhes: «Todo o reino, dividido contra si mesmo, será devastado e cairá
casa sobre casa. Se Satanás também está dividido contra si mesmo, como há-de
manter-se o seu reino? Pois vós dizeis que é por Belzebu que Eu expulso os
demónios. Se é por Belzebu que Eu expulso os demónios, por quem os expulsam os
vossos discípulos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes. Mas se Eu
expulso os demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus já chegou até vós. Quando
um homem forte e bem armado guarda a sua casa, os seus bens estão em segurança;
mas se aparece um mais forte e o vence, tira-lhe as armas em que confiava e
distribui os seus despojos. Quem não está comigo está contra mim, e quem não
junta comigo, dispersa.» (Lucas 11,14-23)
[Comentário de Simeão o Novo Teólogo aqui]
As palavras de Cristo relatadas nos evangelhos são, muitas vezes,
interpretadas de forma não política, como se dissessem respeito a uma esfera
para lá da vida da pólis. Uma esfera
ética e religiosa. Contudo, é possível pensar que isso seja uma mera aparência
que não corresponde à verdade. O recurso, nas analogias presentes nas
parábolas, à metáfora do reino é recorrente, o que deixa perceber uma atenção
muito especial a esse fenómeno, como se ele fosse essencial na relação do homem
com o divino e com o humano.
O texto de Lucas pode ser lido como uma reflexão sobre a cisão de si
mesmo a partir da ideia de divisão de um reino. Qual a condição de
possibilidade de existência de um reino? Que não esteja dividido contra si
mesmo, que mantenha a unidade, que evite, em última análise, a guerra civil. A
divisão do reino conduz à devastação, à destruição. A integralidade do reino é
essencial à sua persistência na existência. E o que se diz do reino humano é
extensível aos reinos de Satanás e de Deus.
É no âmbito da chegada do Reino de Deus aos homens que surge a
afirmação final do texto: Quem não está
comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa. Pode ser lida,
certamente, como uma prefiguração da instituição da Igreja, da necessidade de
uma comunidade reunida em torno de Cristo. O texto, porém, permite ir numa
outra direcção e pensar a dispersão que ocorre no próprio homem.
O que homem que se divide a si mesmo, que opõe o Cristo que há em si
ao eu empírico. É esta divisão de si consigo mesmo que conduz à dispersão e à errância,
esse sentido originário daquilo que, posteriormente, foi denominado como
pecado. Em cada homem, a dimensão empírica, a persona que a configura, tende, pela sua natureza intrinsecamente fragmentária,
para a dispersão e o esquecimento do que há de mais essencial no interior do
homem, para a obliteração dessa presença do Cristo em cada homem, pois ele o
centro unificador da vida e do sentido. Tomando o modelo do reino, a dispersão
de si, a derrelicção do Cristo interior, terá com fim a pura devastação de si.