quinta-feira, 7 de março de 2013

A cisão consigo mesmo

René Magritte - Auto-retrato (1923)

Naquele tempo, Jesus estava a expulsar um demónio mudo. Quando o demónio saiu, o mudo falou e a multidão ficou admirada. Mas alguns dentre eles disseram: «É por Belzebu, chefe dos demónios, que Ele expulsa os demónios.» Outros, para o experimentarem, reclamavam um sinal do Céu. Mas Jesus, que conhecia os seus pensamentos, disse-lhes: «Todo o reino, dividido contra si mesmo, será devastado e cairá casa sobre casa. Se Satanás também está dividido contra si mesmo, como há-de manter-se o seu reino? Pois vós dizeis que é por Belzebu que Eu expulso os demónios. Se é por Belzebu que Eu expulso os demónios, por quem os expulsam os vossos discípulos? Por isso, eles mesmos serão os vossos juízes. Mas se Eu expulso os demónios pela mão de Deus, então o Reino de Deus já chegou até vós. Quando um homem forte e bem armado guarda a sua casa, os seus bens estão em segurança; mas se aparece um mais forte e o vence, tira-lhe as armas em que confiava e distribui os seus despojos. Quem não está comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa.» (Lucas 11,14-23) [Comentário de Simeão o Novo Teólogo aqui]

As palavras de Cristo relatadas nos evangelhos são, muitas vezes, interpretadas de forma não política, como se dissessem respeito a uma esfera para lá da vida da pólis. Uma esfera ética e religiosa. Contudo, é possível pensar que isso seja uma mera aparência que não corresponde à verdade. O recurso, nas analogias presentes nas parábolas, à metáfora do reino é recorrente, o que deixa perceber uma atenção muito especial a esse fenómeno, como se ele fosse essencial na relação do homem com o divino e com o humano.

O texto de Lucas pode ser lido como uma reflexão sobre a cisão de si mesmo a partir da ideia de divisão de um reino. Qual a condição de possibilidade de existência de um reino? Que não esteja dividido contra si mesmo, que mantenha a unidade, que evite, em última análise, a guerra civil. A divisão do reino conduz à devastação, à destruição. A integralidade do reino é essencial à sua persistência na existência. E o que se diz do reino humano é extensível aos reinos de Satanás e de Deus.

É no âmbito da chegada do Reino de Deus aos homens que surge a afirmação final do texto: Quem não está comigo está contra mim, e quem não junta comigo, dispersa. Pode ser lida, certamente, como uma prefiguração da instituição da Igreja, da necessidade de uma comunidade reunida em torno de Cristo. O texto, porém, permite ir numa outra direcção e pensar a dispersão que ocorre no próprio homem.

O que homem que se divide a si mesmo, que opõe o Cristo que há em si ao eu empírico. É esta divisão de si consigo mesmo que conduz à dispersão e à errância, esse sentido originário daquilo que, posteriormente, foi denominado como pecado. Em cada homem, a dimensão empírica, a persona que a configura, tende, pela sua natureza intrinsecamente fragmentária, para a dispersão e o esquecimento do que há de mais essencial no interior do homem, para a obliteração dessa presença do Cristo em cada homem, pois ele o centro unificador da vida e do sentido. Tomando o modelo do reino, a dispersão de si, a derrelicção do Cristo interior, terá com fim a pura devastação de si.

quarta-feira, 6 de março de 2013

A lei e a vida

Wassily Kandinsky - A vida multicolor (1907)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: Até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra. Portanto, se alguém violar um destes preceitos mais pequenos, e ensinar assim aos homens, será o menor no Reino do Céu. Mas aquele que os praticar e ensinar, esse será grande no Reino do Céu. (Mateus 5,17-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

Poder-se-á perguntar que perfeição é essa que o cristianismo traz à lei mosaica e aos Profetas. A resposta mais evidente diz-nos que a misericórdia e o amor ao próximo são as perfeições que tornam a lei mais adequada aos homens. Isso é verdade, mas o texto deixa perceber uma tensão já várias vezes detectada nas leituras que estão a ser feitas. A lei é composta por mandamentos, ordens, proibições. Sendo assim, ela é compreendida como algo exterior ao sujeito, como uma imposição que lhe vem de for. A tensão que está em causa é entre a lei e a vida, entre o exterior e o interior.

A lei com o seu cortejo de obrigações e proibições choca com a espontaneidade da vida. Esta espontaneidade é vista como aquilo que precisa de ser domado. A lei é esse exercício de domesticação de uma vida transbordante, onde os impulsos dionisíacos se fazem sentir, ameaçando a comunidade e os indivíduos de dissolução. A severidade do código mostra-nos bem a potência da vida e o fulgor dos impulsos que havia que domar. A exterioridade da lei, contudo, gerava o formalismo farisaico e o sentimento de estranheza perante essa obrigação imposta de cima e de fora.

A perfeição trazida por Cristo refere-se ao rasgar do véu da interioridade para tornar patente aquilo que os impulsos e os desejos ocultavam. No fundo do homem, reside também o amor e a misericórdia, há uma bondade que se deve manifestar enquanto vida. Não se trata de uma invenção exterior, mas de um trazer à luz aquilo que também faz parte da natureza humana, e que as múltiplas figuras da alienação continuamente obscureciam. A perfeição trazida é uma revelação, mas uma revelação do que já estava aí. Com a vinda de Cristo trata-se de viver isso que estava oculto, trata-se, como diz o texto, de praticar e de ensinar. A lei não é abolida, mas a vida encontra um caminho que, sendo vivido, dispensa a vigilância exterior da lei.

terça-feira, 5 de março de 2013

A lei e a misericórdia

Caravaggio - Siete obras de misericordia (1607)

Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou-Lhe: «Senhor, se o meu irmão me ofender, quantas vezes lhe deverei perdoar? Até sete vezes?» Jesus respondeu: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Por isso, o Reino do Céu é comparável a um rei que quis ajustar contas com os seus servos. Logo ao princípio, trouxeram-lhe um que lhe devia dez mil talentos. Não tendo com que pagar, o senhor ordenou que fosse vendido com a mulher, os filhos e todos os seus bens, a fim de pagar a dívida. O servo lançou-se, então, aos seus pés, dizendo: 'Concede-me um prazo e tudo te pagarei.’ Levado pela compaixão, o senhor daquele servo mandou-o em liberdade e perdoou-lhe a dívida. Ao sair, o servo encontrou um dos seus companheiros que lhe devia cem denários. Segurando-o, apertou-lhe o pescoço e sufocava-o, dizendo: 'Paga o que me deves!’ O seu companheiro caiu a seus pés, suplicando: 'Concede-me um prazo que eu te pagarei.’ Mas ele não concordou e mandou-o prender, até que pagasse tudo quanto lhe devia. Ao verem o que tinha acontecido, os outros companheiros, contristados, foram contá-lo ao seu senhor. O senhor mandou-o, então, chamar e disse-lhe: 'Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque assim mo suplicaste; não devias também ter piedade do teu companheiro, como eu tive de ti?’ E o senhor, indignado, entregou-o aos verdugos até que pagasse tudo o que devia. Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão do íntimo do coração.» (Mateus 18,21-35) [Comentário de Cesário de Arles aqui]

O texto trata da natureza da justiça e da misericórdia divinas e estabelece um padrão de comportamento para as relações humanas. É comum afirmar que o ethos da compaixão crística – que resulta do padrão desenhado pelo texto de Marcos – não tem sentido quando transposto da relação puramente humana entre um eu e um tu para a dimensão cívica. Não é possível alguém funcionar numa sociedade agindo de tal modo e o próprio poder político, enquanto monopólio da violência legítima, não pode ter a misericórdia como núcleo central da sua acção. O curioso de texto é que a natureza da justiça divina é estabelecida por analogia com a justiça de um rei.

A parábola é antecedida por um diálogo entre Pedro e Jesus, onde este explica que a misericórdia para com o outro deve ser infinita. Contudo, a parábola introduz uma limitação nesse infinito. O rei perdoa a primeira ofensa, a da dívida. Não perdoa, porém, uma segunda ofensa, agora feita a terceiros. A falta de misericórdia do devedor perdoado e o consequente castigo imposto pelo rei tornam evidentes os limites do uso da misericórdia na vida pública. Isto não significa, porém, que a misericórdia deva ser banida da cidade e das relações cívicas. Significa antes que ela deve ser um horizonte regulador da vida entre os homens e que as próprias instituições devem agir tendo por pano de fundo essa misericórdia.

Na aplicação da lei, na execução da pena, sob o véu da reposição da paz pública pelo exercício da violência legítima deve-se poder encontrar a misericórdia como ideia reguladora da acção. Isso não significa abolir as penas, mas usá-las de forma a que a qualidade de pessoa não seja negada ao culpado. E aqui manifesta-se já a misericórdia, pois o culpado é sempre culpado de ter, de alguma forma, negado a natureza de pessoa à vítima. É a humanização da lei civil aquilo que as sociedades ocidentais devem ao ethos da compaixão crística. Não é pouco.

segunda-feira, 4 de março de 2013

A expatriação da verdade

Giorgio de Chirico - O Profeta (1915)

Naquele tempo, Jesus veio a Nazaré e falou ao povo na sinagoga: «Em verdade vos digo: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. Posso assegurar-vos, também, que havia muitas viúvas em Israel no tempo de Elias, quando o céu se fechou durante três anos e seis meses e houve uma grande fome em toda a terra; contudo, Elias não foi enviado a nenhuma delas, mas sim a uma viúva que vivia em Sarepta de Sídon. Havia muitos leprosos em Israel, no tempo do profeta Eliseu, mas nenhum deles foi purificado senão o sírio Naaman.» Ao ouvirem estas palavras, todos, na sinagoga, se encheram de furor. E, erguendo-se, lançaram-no fora da cidade e levaram-no ao cimo do monte sobre o qual a cidade estava edificada, a fim de o precipitarem dali abaixo. Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho. (Lucas 4,24-30) [Comentário de João Crisóstomo aqui]

Dois temas ligam-se no texto de Lucas. O da verdade e o do acolhimento. O tema da verdade surge logo no início do discurso de Cristo ao povo na sinagoga de Nazaré: Em verdade vos digo. Esta fórmula sublinha o lugar de onde o discurso é proferido e este lugar é o da verdade. O tema da verdade é de imediato retomado quendo é dito: Nenhum profeta é bem recebido na sua pátria. O profeta é aquele que transporta uma verdade e a revela. É o portador e revelador da verdade que não é bem recebido na sua pátria, que não é reconhecido como tal. O problema do reconhecimento da verdade – um tema crucial nos dias de hoje e que a cultura actual, seja numa visão moderna ou numa visão pós-moderna, desvaloriza – conduz directamente ao tema do acolhimento.

Este acolhimento não é a mera recepção, mas contém em si a ideia de abrigo e de refúgio. A verdade mostra-se aqui na sua plena fragilidade e pobreza. E é esta sua natureza que faz com que nenhum profeta seja bem recebido na sua pátria. A verdade não pertence à esfera do poder, não traz com ela o conjunto de superstições ou de violências com que o poder compra a sua recepção em cada pátria. O poder da verdade é um não-poder, é exposição da sua fragilidade e humildade. É esta sua natureza que requer acolhimento que seja abrigo contra as intempéries e refúgio contra as perseguições.

Apesar da fragilidade da verdade perante as potências do mundo, apesar das perseguições de que é alvo, ela seguirá o seu caminho, de acolhimento em acolhimento, de refúgio em refúgio. O confronto entre a verdade e a utilidade, subjacente à recepção irada de Jesus pelos nazarenos, continua tão vivo hoje como  naqueles dias. A fácil promessa de uma felicidade geral, animada pelo princípio de utilidade, continua a exercer a sua função idolátrica, alimentando a alienação do homem pelas superstições do mundo. Acolher a verdade, abrigá-la e dar-lhe refúgio continua a ser um sinal que as pátrias, diversas que elas sejam, recusam a fazer. O destino da verdade é a sua expatriação contínua, a busca de um abrigo, a viagem a que foi condenada por aqueles que estão eles mesmo na mais pura e radical das errâncias.

domingo, 3 de março de 2013

Caminho e sentido

Max Klinger - Caminho

Naquele tempo, apareceram alguns a contar a Jesus, dos galileus, cujo sangue Pilatos tinha misturado com o dos sacrifícios que eles ofereciam. Respondeu-lhes: «Julgais que esses galileus eram mais pecadores que todos os outros galileus, por terem assim sofrido? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes, perecereis todos igualmente. E aqueles dezoito sobre os quais caiu a torre de Siloé, matando-os, eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não, Eu vo-lo digo; mas, se não vos converterdes, perecereis todos da mesma forma.» Disse-lhes, também, a seguinte parábola: «Um homem tinha uma figueira plantada na sua vinha e foi lá procurar frutos, mas não os encontrou. Disse ao encarregado da vinha: 'Há três anos que venho procurar fruto nesta figueira e não o encontro. Corta-a; para que está ela a ocupar a terra?' Mas ele respondeu: 'Senhor, deixa-a mais este ano, para que eu possa escavar a terra em volta e deitar-lhe estrume. Se der frutos na próxima estação, ficará; senão, poderás cortá-la.'» (Lucas 13,1-9) [Comentário de Astério de Amaseia aqui]

O texto do Evangelho seleccionado, pela Igreja Católica, para este terceiro domingo de Quaresma conjuga o que parece uma conversa informal, embora de âmbito doutrinal, e uma parábola com a sua natureza alegórica e simbólica. É da tensão entre o explícito e o não explícito que se poderá encontrar um sentido para o texto. O diálogo inicial termina com um apelo à conversão, a uma radical mudança de ponto de vista e de caminho existencial. Esta conversão, porém, parece conter uma promessa, uma promessa paradoxal perante o próprio destino do Promitente.

Os galileus executados sob Pilatos ou os dezoito que morreram sob a torre de Siloé são vítimas da injustiça e do acaso, segundo as regras políticas e o entendimento humano. Não são melhores nem piores do que todos os outros. A morte aconteceu-lhes segundo uma lógica que não dominamos e que não se inscreve numa contabilidade de méritos e deméritos. É esta natureza ilógica da morte que é confrontada pela promessa. A promessa parece prometer que a conversão nos salva de uma morte injusta ou casual. Mas é a própria morte de Cristo, marcada pela injustiça e pelo acaso da decisão da opinião pública, que surge como refutação desta ideia.

A morte dos homens não deixará de ser um acidente – seja provocado pela injustiça, pelo acaso, pela doença, pela desconcerto próprio, etc. – e um acidente que nenhum cuidado poderá evitar. A conversão, porém, poderá trazer-lhe aquilo que lhe falta, o sentido. E o sentido da morte não é dado por esta, mas pela própria vida. A conversão inscreve-se na vida como uma forma de transição da errância ao sentido, um sentido que une aquilo que a morte separa. Encontrar o seu próprio caminho é o sentido último da conversão e é ele que retira tanto a vida como a morte do reino da insignificância e do ilógico.

A parábola da árvore que não dá fruto enxerta-se, para usar ainda uma metáfora agrícola, neste caminho e na conversão que se lhe associa. Duas ideias são sugeridas. É preciso tempo e é preciso alimento para que esse encontro do caminho frutifique. É na história humana e na história individual que a conversão se coloca, e coloca-se como uma inscrição no real, como um sentido que se abre e que torna significante a vida humana, a desprende da irrelevância a que uma vida meramente animal e social a condena. Frutificar é encontrar a raiz profunda da sua humanidade.

Haikai do Viandante (128)

Jeanne Carbonetti - Aliento de Primavera (1988)

Súbito império
abre a noite da floresta
à luz do mistério.