domingo, 17 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (267)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter (1895)

manhãs de inverno
chegam numa luz difusa
neve frio brancura

sábado, 16 de janeiro de 2016

Esperam por nós

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Esperam por nós, disse ela e calou-se. Ele olhou-a. Havia naquele olhar perplexidade e perturbação. Hesitou, mas deixou escapar: quem espera por nós? Ela emudeceu e os olhos prenderem-se na areia molhada. Com um dedo, desenhou grandes veleiros e sob eles um mar violento e sombrio. O vento soprou em rajada vinda do norte. Tiveram ambos frios, mas evitaram aquecer-se nos olhos um do outro. Quem espera por nós? Ela desenhou um sol sobre a agitação marítima e uma bandeira no mastro de cada barco. Uma onda de calor desceu sobre eles. Em sussurro, ela exclamou: eles, eles esperam por nós. Se não vieres, perdes-me. Ele deitou-se na areia. Então, ela entrou no mar que desenhara. Um barco esperava-a perto da rebentação.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sobre as ondas

Edvard Munch - A onda (1921)

Submergir-me completamente na onda, deixar-me ir e vir ao sabor da força das águas, ser não eu mas a água empurrada pelo vento, abandonar-me ao acontecimento no pleno esquecimento de mim. Eram estes pensamentos que o tomavam de assalto quando, sentado na areia, olhava o mar batido pelo sol da tarde. Por vezes, sobressaltava-se. O grasnar de um pássaro, o rumor de um papel arrastado pelo vento. Perante o mar, tudo se tornava tão claro. Estava na fronteira, fascinado, preso a uma voz antiga. Uma gaivota poisou ao seu lado. Olhou-a. Olharam-se. Lentamente, sentiu que ela entrava nos seus olhos. Respirou ofegante. As ondas, o mar, o vento do crepúsculo, tudo se tornara mais nítido. Sentiu um tremor nos braços, uma ondulação no corpo, e olhou. Voava sobre o mar. Ao longe, o sol esperava por ele. Estava salvo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fogos de artifício

A vida quotidiana é um exercício contínuo de fogos de artifício. Ansioso por provar a sua própria existência, o ego é incapaz de se conter e, sempre que tem um público, entrega-se à produção do mais vivo espectáculo de fogo de artifício. A vida do espírito, contudo, começa no momento em que se decide pôr de lado o fogo de artifício e se inicia a procura do fogo que arde sem se ver.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 14

Pablo Picasso - A bela holandesa (1905)

14. Assim tão despida

Assim tão despida,
tão exposta ao vento,
esperas a mão
que te abra o corpo
ao furor secreto
de um sentimento.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O infinito da vida

Frantisek Kupka - O princípio da vida

Sim, todos sabemos que a vida - a vida biológica - tem um princípio, um começo. Se pensarmos, todavia, a vida tal como ela se revela no homem, facilmente somos seduzidos pela ideia de que ela, a vida, não tem princípio nem fim. E é esta sedução pelo infinito da vida que se torna símbolo e é deste símbolo que toda a vida espiritual, nas suas múltiplas dimensões, é exegese e realização.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Idas e vindas

Paul Gauguin - Idas e vindas (1887)

A viagem espiritual é composta de muitas idas e vindas. Seria uma ilusão pensar que a vinda marca um retorno ao mesmo. A vinda contém em si a ida e aquilo que o viandante, ao voltar, encontra - em si mesmo e no lugar a que retorna -  não é o mesmo que tinha à partida. É sempre um outro que retorna e o lugar também é já outro. Por vezes, diz-se que um dado escritor escreve sempre o mesmo livro, mas isso é um equívoco. Cada vez é um escritor novo que o escreve. Foi e voltou, mas já não era o mesmo que o escreveu, mesmo que o livro fosse palavra a palavra, letra a letra, semelhante ao anterior. E mesmo uma obra nestas condições seria já uma outra obra. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

A promessa da repetição

Oskar Laske - River Landscape (1944)

Heraclito constata que não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio, pois estas estão em constante renovação. Esta constatação de uma impossibilidade esconde, porém, uma pergunta mais decisiva: se pudéssemos, deveríamos querer mergulhar duas vezes nas mesmas águas? Será que a vontade quer a repetição ou o inédito? A viagem do espírito - seja qual for o caminho escolhido, a arte, a religião, o pensamento - é sempre marcada por esta questão. Ela é a luta contra o fascínio que a promessa da repetição, apesar de impossível de cumprir, traz consigo.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (266)

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

as ervas cresceram
nas terras abandonadas
vento e solidão

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Do valor do caminho

Juan Miró - Ciurana, The Path (1917)

Pensa-se sempre o caminho como aquilo que liga dois pontos, o de partida e o de chegada. Se eliminarmos tanto a partida como a chegada, o caminho, que tinha um mero valor instrumental, toma um valor intrínseco. O caminho vale por si mesmo, pelo facto de ser feito ao caminhar. Independentemente do ponto de onde se partiu e do ponto a que se chegou, se é que se partiu de algum lado e se chegou a outro.