quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Pontos de referência

Laurence Stephen Lowry - A Landmark (1936)

Primeiro o homem recebe um ponto de referência e guia a viagem por ele. A seguir, perde o norte e erra pelos caminhos sem querer saber de pontos de referência ou de marcos geodésicos. Depois, exausto da errância, procura um novo ponto de referência. Quando o encontra sente a tranquilidade de ter um guia que evita o perigo da perda, não suspeitando que corre agora o maior dos perigos, o de se crer numa viagem serena e segura. Alguns, porém, descobrem o ardil e abandonam toda a esperança de ter um ponto de referência que os guie. Nesse momento, deram o primeiro passo na viagem.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (262)

Piet Mondrian - De boerderij Weltevreden bij Duivendrecht (1905)

árvores de outono
erguidas sobre as águas
tempo de silêncio

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Da condição humana

Odilon Redon - O prisioneiro

Todos as pessoas nascem livres e iguais... Assim começa a declaração dos direitos do homem. Talvez fosse mais ajustado dizer Todas as pessoas nascem igualmente prisioneiras. O que se ganharia com isso? Trocar-se-ia uma liberdade dada como um facto, por um processo de libertação. A vida espiritual não é outra coisa senão o processo pelo qual o espírito quebra as cadeias que herdámos ao nascer. A liberdade não é um facto, mas um acto onde o homem, pela vida espiritual, se liberta da servidão - a dura necessidade imposta pelo corpo - que o nascer traz consigo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Poemas do Viandante (521)

Amadeo de Souza Cardoso - Composição Abstracta - Estudo B (1913)

521. Círculos, cores abstracções

Círculos, cores, abstracções.
Com eles componho um mundo, 
invento cidades e desertos,
traço mesmo um barco
a naufragar no mar sem fundo.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Música e literatura

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O que distingue a música da literatura? Na música, o espírito infinito e intemporal entra no tempo e derrama-se sobre os homens, iluminando-os através do som. Na literatura, o espírito finito e temporal narra a sua errância no espaço e no tempo. Por vezes, fala da nostalgia daquilo que está para além da finitude e da temporalidade, mas a literatura é sempre física, enquanto a música é uma metafísica em acto.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (261)

Vincent Van Gogh - Campo de trigo com ciprestes (1889)

o trigo ondula
sob a sombra dos ciprestes
silêncio nos céus

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Música e vento

James Abbott McNeill Whistler - At the piano (1858-59)

Os dedos, os dedos dela são tão leves, folhas que caem sobre a água. Levantarei, também eu, voo um dia? Vestida de negro, ela vem e poisa diante do piano Depois, o tempo pára e a música vem até mim, entra-me pelos olhos e enche-me o peito, enquanto vejo os dedos deslizarem nas teclas e o mundo começa a dissolver-se. Quero falar, mas ela fechou os olhos e tudo é som, uma armadilha onde me sinto cativa, quase louca, como se a minha voz não fosse mais do que a música que solta por aquelas mãos, como se a minha vida estivesse presa entre duas notas. Quero gritar, mas sinto-me emudecida. Ela não pára e tudo em mim é luz. Ergo-me e, imponderável, bato as asas pela primeira vez. Voo e meu corpo é música e vento que se desvanece na janela da noite.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De aparência em aparência

Teresa Muñiz - Aunque se mueva es pura apariencia (1998)

O que esconde uma aparência? Outra aparência. E esta uma outra, numa progressão infinita. Cada aparência é uma estação do calvário do espírito. A sua cruz é este ir de aparência em aparência, negando-as e negando-se a si, pois a viagem é infinita e, na verdade, não existe um lugar sólido onde possa repousar eternamente. Não se trata de negar as aparências para encontrar uma realidade. A única realidade é a viagem pelas aparências.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Danos colaterais

Nicanor Piñole - Escuchando la radio

O progresso dos meios de comunicação social representa, ao mesmo tempo, um retrocesso na capacidade do homem comunicar consigo mesmo. O momento decisivo terá sido a rádio. Ela exige um exercício de escuta já completamente alienado, uma escuta totalmente voltada para o exterior, para uma voz que vem de fora e que se sobrepõe à voz interior que habita os homens. Platão, na antiguidade clássica, via o pensamento como um diálogo consigo mesmo. É este diálogo que a comunicação social tem o poder de dinamitar, ao prender a atenção com o que vem de fora e que, pelo poder da técnica, se impõe a uma consciência fascinada. Ler a imprensa, escutar a rádio, ver televisão ou interagir através da internet são progressos civilizacionais, mas não deixam de ter importantes danos colaterais. Entre esses danos encontra-se esse exercício de meditação que consiste no diálogo consigo mesmo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 11

Charles Émile August Duran - Danaë (1900)

11. Desce sobre ti

Desce sobre ti
a luz do Inverno.
E se estas mãos
em fogo te tocam,
tudo se ilumina
como se aqui
nascesse o Verão.