segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Contrastes simultâneos

Sonia Terk Delaunay - Contrastes simultâneos (1913)

Aquilo que para a razão é um escândalo - ser e não ser simultaneamente - é para a experiência do espírito um caminho e uma orientação. Uma orientação que surge como um convite: abandona a razão como guia da experiência. Um caminho que se abre à experiência: experimentar os contrastes simultâneos que, apesar de horrorizarem a razão, nos chamam a vivê-los num para além do discurso e do pensamento.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (260)

Giovanni Fattori - Bosque à beira-mar (1967-72)

azul sobre azul
um bosque entre mar e céu
a terra acordou

sábado, 5 de dezembro de 2015

O devaneio do voo

Ivonne Sánchez Barea - Voo (2007)

O homem pertence ao elemento sólido. É esta a sua natureza. Ao nadar, pode sobreviver na água. Por muito que se esforce, o homem não pode voar. Para tal precisa de se hibridar e adquirir as próteses que lhe permitam contrariar a gravidade. O voo protésico, porém, não é a realização do devaneio do voo que acomete muitos seres humanos. No sonho do voo, o homem pressente uma outra realidade, uma outra natureza liberta das condições físicas que o prendem ao corpo e, através deste, à matéria. Voar não significa então deslocar-se nos ares, mas antes elevar-se à condição de ser espiritual, para que, como acontece com o vento, possa soprar onde quiser.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Uma descoberta

Eduardo Úrculo Fernández - El descubrimiento (1992)

Hesitou longamente. Esperou que o tempo se suspendesse, que alguma coisa o viesse salvar de uma decisão. A vida pesava-lhe nos ombros e agora que partia, era ainda essa vida que levava consigo, uma vida esquartejada no interior de muitas malas, para que nada lhe faltasse na viagem e no destino que o esperava. Olhava o horizonte, abanava a cabeça e dava alguns passos nervosos para a frente e para trás. Um remoinho descia da cabeça, fazia o sangue fervilhar e, no ventre, abria-se num enorme buraco vazio. O corpo tremia. Largou a bagagem e olhou em frente, deu um passo e outro e outro. As malas começaram a ficar para trás. O corpo tornara-se leve. Pela primeira vez sentiu em si o sopro da inocência em si. Deu um novo passo e continuou. Descobrira, não teria o destino da mulher de Lot.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Uma nova palavra


Emile Chambon - L'Eveil (1975)

A ideia de despertar tornou-se, na vida do espírito, um lugar comum. O século XX e mesmo o XXI tornaram-se o lugar da mais feroz banalização de tudo, e a ideia de despertar, de abrir-se para uma outra realidade que não a do senso comum e da vida quotidiana, não deixou de ser arrastada pela onda de banalização que a tudo submerge. O viandante precisa não só de descobrir a realidade a que esse termo outrora designou como de encontrar uma outra palavra não contaminada pela rasura do tempo, palavra que retire o despertar da morte a que o abuso o parece ter condenado.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Amanhecer e anoitecer

Albert Dubois-Pillet - O Marne ao amanhecer (1888)

O estranho encontro entre a aurora e o fluxo das águas de um rio constitui-se num símbolo do próprio devir espiritual. Olhamos e pressentimos que a luz nascente vem arrastada pelas águas, que a tornarão a levar para que a noite chegue. É assim também que o rio do tempo arrasta a luz do espírito: amanhecer e anoitecer são os trabalhos e os dias da vida espiritual.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Da melancolia

Eduardo Úrculo Fernández - Melancolia (1982)

A melancolia é o sentimento que parece fundar, no âmbito do poético, a elegia. Todos os sentimentos que se deixam trabalhar pela arte - nomeadamente, pela poesia - remetem para experiências que estão para além daquilo que é meramente subjectivo. São uma janela para uma experiência que transcende a mera individualidade e que a abre para o mistério da existência. Quando a melancolia toma uma forma elegíaca é o espírito cindido de si mesmo que fala do abandono em que se encontra e do desgosto que esse abandono provoca.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A queda originária

Mère Geneviève Gallois - Adão e Eva expulsos do paraíso (1926)

A racionalização histórica de um dos mitos fundadores da nossa cultura - o mito de Adão e Eva - acabou por ocultar aquilo que nele era efectivamente operante. Não se tratava tanto de constituir uma narrativa explicadora da nossa condição mortal e sofredora, mas antes de uma chamada de atenção para a nossa realidade actual, aquela que se vive a cada instante. A cada instante o homem é arrastado pela queda originária. Por queda originária não se deve entender uma queda situada num ponto determinado do tempo, no início dos tempos. A queda é originária porque está sempre na origem de uma existência degradada e impotente para realizar aquilo a que é chamada.

domingo, 29 de novembro de 2015

Signo sinal 9. Ler os sinais

Winslow Homer - O sinal de perigo (1890)

A vida do espírito é um percurso entre sinais. Não há erro maior que o desprezo pelos sinais que, a cada instante, nos são enviados. Onde? Através de quê ou de quem? Em qualquer sítio e em não importa que situação. Ler os sinais é um exercício minucioso que nunca está completamente aprendido. Os sinais são, por vezes, tão dolorosos que não queremos olhar para eles. Eles, porém, não deixaram de se manifestar e de se oferecer à leitura.

sábado, 28 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (259)

Emil Hansen - Entardecer de Outono (1924)

a noite que cai
é um pássaro ferido
o silêncio canta