segunda-feira, 22 de junho de 2015

Poemas do Viandante (512)

Francesco Clemente - Memória (1996)

512. dias de grande dispersão

dias de grande dispersão
vêm com o estio

desenham sombras na casa
rasgam as janelas

e lembram os dias passados
no mar da infância

o grande e bravio oceano
preso na memória

domingo, 21 de junho de 2015

Condição lunar

Georges Rouault - ... ao chegar a noite, saiu a lua (1930)

O homem é a lua sobre a terra. Como ela, ele pode reflectir uma luz cuja intensidade o ultrapassa e cuja origem está fora e muito acima dele. Esta sua condição lunar acentua-se quando a luz que o ilumina é interceptada e ele fica na escuridão. Também nessa hora ele é como a lua, é lua nova e às trevas ele tem o condão de acrescentar outras trevas.

sábado, 20 de junho de 2015

Haikai do Viandante (237)

Henri Edmond Delacroix Cross - Arbres au bord de la mer (1906-07)

presas ao estio
as árvores adormecem
entre céu e mar

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Símbolos e multiplicidades

Agustín Ubeda - ...Y se rompen los sueños (1990)

As múltiplas esferas do ser. Como poderemos entender isso? Tomemos, por exemplo, o caso do sonho, do sonho erótico, por exemplo. A um primeiro nível, estes sonhos simbolizam o desejo que perpassa nos seres humanos e que os constitui. Mas o desejo não é uma realidade última, mas apenas mais uma camada simbólica. No desejo erótico, simboliza-se um desejo de completude, e neste uma aspiração a ultrapassar a condição humana, numa cadeia de desejos e simbolizações que poderemos pressentir como infinita. Este pressentimento pode, por analogia, ser transferido para a esfera do ser, dando-nos a perceber a sua multiplicidade e, ainda, a possibilidade de cada uma delas simbolizar outra ou outras, num encadeamento sem fim.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Aprender a ler

Francisco Bores - La lectura (1934)

Ler. Que melhor coisa poderia haver na vida que deixar correr letras e palavras diante dos olhos? A decifração das combinações do alfabeto ocupara-lhe grande parte da existência. Ao pegar num livro a vida, sempre tão enigmática e destituída de significação, ganhava sentido no sentido que ele encontrava nas frases e nos textos. Um dia, ao ler, mais uma vez, o Quixote, adormeceu. Foi um sono pesado e atravessado por um estranho pesadelo. Via-se a ler e, de súbito, a realidade envolvente dissolvia-se, depois era o seu próprio corpo que perdia consistência. Apenas o livro permanecia mas, estranhamente, fechado e a crescer como se dentro dele houvesse vida. Durante semanas meditou o sonho e procurou o seu sentido. Seria a leitura inimiga da realidade? Seria o livro a única realidade e o resto, ele próprio, uma ilusão? Um sábado, depois de almoço, saiu de casa e mal chegou à rua pessoas, coisas, paisagens desenharam, perante os seus olhos, excêntricas combinações, caracteres vivos. Ao olhá-las, descobria-lhe o enigmático sentido. Lia. De tão espantado, gritou: aprendi a ler. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Poemas do Viandante (511)

Salvador Dali - El comité Marcha del Tiempo - Mariposa (1940)

511. Qual a matéria do tempo

Qual a matéria do tempo?
Uma rosa, uma luz?

Não. Nem o vento nem a água
nem os campos no outono.

Não. Nem o amor nem a vida
nem a lua no firmamento.

Uma sombra na alvorada
fia passado e futuro.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Enfrentar a fantasia

Rafael Durancamps - La del alba sería cuando salió Don Quijote 

Será o viandante como o Quixote? Tomará ele por gigante o que não passa de moinho. D. Quixote parte para encontrar a ilusão, o viandante sabe já que está na ilusão e se se faz ao caminho é para enfrentar as suas próprias fantasias. É para descobrir que um moinho é um moinho e um gigante é um gigante. Descobrir isso não é fácil, pois os seres humanos vivem sempre mais confortáveis se a ilusão desce sobre eles e os protege da realidade.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Além do prazer e da dor

Pierre Bonnard - Le Plaisir (1906)

O prazer foi, durante muito tempo, um campo de conflito feroz. Os prazeres bons e os maus, os prazeres do corpo e os do espírito, a hierarquia de prazeres, a relação do prazer com a dor, tudo isso foi objecto de dissecação e de dissensão. A viagem que cabe a cada homem, o seu confronto com a finitude e a aspiração ao absoluto, não exigirão uma outra posição? A querela sobre o prazer não será ainda uma forma de desatenção ao essencial? A viagem a que os homens são chamados exige que vão para lá do prazer e da dor, isto é, que vão para lá daquilo que os fecha sobre si. Não se trata de negar o prazer ou esquecer a dor, trata-se de os olhar nos seus limites e seguir viagem, seguir para além deles.

domingo, 14 de junho de 2015

A ocultação de si

José e Togores - Figura escondiéndose (1925)

Há duas formas como os seres humanos se entregam à ocultação de si. Uma, aquela que é mais compreensível, em que tentam afastar-se, de forma mais ou menos ostensivo, da claridade que é o espaço público. Não querem ou não suportam, por diferenciados motivos, que os holofotes incidam sobre a sua pessoa. Esta ocultação não é a fundamental e, na verdade, não é diferente do comportamento antagónico, o daqueles que ostensivamente se mostram na clareira pública e exigem que os holofotes incidam sobre eles. A segunda ocultação é aquela em que a própria pessoa oculta aquilo que há de essencial em si, aquilo que está para além da máscara que a pessoa é. Geralmente, esta ocultação é tão forte que os seres humanos se sentem reduzidos à sua máscara, e de si não sabem mais do que os revérberos desta máscara no espelho social.

sábado, 13 de junho de 2015

O grande escultor

JCM - Time on space. Baleal (2007)

O trabalho do tempo sobre a pedra esculpe estranhos arquipélagos. Neles, o viandante perscruta o pulsar da vida, as águas que escorrem, a flora que insiste em abrir-se para a luz. Ouve o murmúrio das ondas e espera. Deixa que o tempo se suspenda e, nessa suspensão, venha até ele o eco longínquo da aurora. Nesse momento, tudo estará coberto pelas águas e um barco virá para o levar. O imenso império oceânico chama-o para que, noutros lugares, ele contemple o grande escultor a trabalhar a pedra, a abrir canais, a desenhar territórios, a preparar o trabalho dos geógrafos do futuro.