sábado, 2 de maio de 2015

Poemas do Viandante (506)

Emil Hansen - Light Sea-Mood (1901)

506. um poema de água e luz

um poema de água e luz
aberto no mar

desenha ligeiras ondas
na paz destes dias

onde palavras cifradas
trazem o silêncio

com que escondes o teu corpo
do vento e do frio

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Aprender a anoitecer

Max Klinger - Noite

A noite carrega consigo múltiplas e antagónicas simbolizações. É inútil esboçá-las sequer. Inerente, porém, ao fascínio da noite é também a expectativa da vinda do dia e da luz. João da Cruz tematiza a noite escura como esse sentimento de abandono que o crente sente na viagem espiritual. Mas como pode o homem perdido no mundo, guiado pela luz natural dos sentidos e da razão, entrar sequer nessa escura noite de que fala o místico castelhano? Talvez a resposta esteja ainda na noite. Terá de aprender a anoitecer, aprender a ver a luz dos sentidos e a da razão como pura obscuridade e obstáculo no caminho.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sem porta nem janelas

Juan Rulfo - Barda tirada en un campo verde

Muros, linhas divisórias, estremas, fronteiras, um exercício continuado de territorialidade, um jogo de exclusão e inclusão, uma campanha sem fim contra o medo. Mas não é na máxima segurança que está a autêntica insegurança? Não é ali, onde tudo está fechado, que o vento não corre? Enquanto o espírito viver murado e preso a fronteiras não escutará a voz que por ele chama. Surdo e errante julgará que a vida só será possível na oclusão e no fechamento de si.  Pobre mónade, sem porta nem janelas.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A condição humana

Susan Rothenberg - Beggar (1982)

Os homens, no jogo de comparações e invejas que entre si tecem, estão convencidos de que a riqueza, esse excesso de possibilidade de consumir, é o que há de mais desejável na existência. Vivem atormentados pelo espectro da indigência, de se tornarem, literalmente, mendigos. O que eles desconhecem é que a mendicância é a sua verdadeira e única condição. Não porque lhes faltem bens materiais, mas porque a carência é constitutiva do seu ser. A única condição verdadeiramente humana é a de ser mendigo. Uns iludem-se enchendo-se de bens, outros assumem a sua condição e aprendem a rogar o que lhes falta.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Os dias frios

Lucien Lévy-Dhurmer - Bruxelas, sob o efeito da neve (1900)

São os dias frios os mais propícios para o espírito se recolher dentro de si. A exuberância do calor é substituída pela austeridade que o frio traz e nos leva a centrar no mundo interior. Libertos da distracções que o tempo quente sempre exige, entregamo-nos à mais pura das asceses, aquela que nos leva ao silêncio e deixa falar em nós a voz que nos chama.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Haikai do Viandante (230)

Francis Picabia - Amanecer en la bruma, Montiguy (1905)

árvores azuis
esperam entre as brumas
o sol dos pauis

domingo, 26 de abril de 2015

Do servo e do amigo

Egon Schiele - The Friends (Round Table), Small (1918)

Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai. (João 15:15)

Educados por uma cultura assente há muito na dialéctica do senhor e do escravo proveniente da lição de Hegel, tornámo-nos incapazes de perceber uma outra forma de dissolução dessa relação. No versículo de João tanto a relação entre senhor e servo como a relação que transforma os homens em amigos está mediada pelo conhecimento, mas um conhecimento dado pela revelação. O servo é servo porque não sabe o que faz o seu senhor. A lei - neste caso a lei mosaica - é uma lei que, pela sua exterioridade e imposição pelo Senhor, faz dos homens servos. Mas a revelação que Cristo traz consigo faz daqueles que a ouviram amigos e não servos. E como já sabia Aristóteles só é possível amizade entre aqueles que são iguais.

sábado, 25 de abril de 2015

Inscrito no olhar

Georges Braque - O porto de Le Havre (1903)

O velho enigma de um barco a chegar ao porto. Sentado, o viandante vê-o chegar e sente nele o mundo que deixou para trás e que, ao ser abandonado, escondeu-se nos olhos da tripulação e, secreto e sonâmbulo, prepara-se para aportar numa nova pátria. É assim que o viandante, ao cruzar-se com outros viandantes, vê o mundo de onde vêm. Está-lhes inscrito no olhar, nesse olhar que é abismo e fundo do infinito do ser.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Estátua de sal

Raoul Dufy - Paisagem  de Munique (1909)

E a mulher de Lot olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal. (Génesis 19:26)

O passado tem um terrível poder de sedução. Quadros ou fotografias de um tempo que passou, com o mistério que todo o passado contém pelo simples facto de ter passado, retêm o espírito e dão-lhe a ilusão que a verdade que busca ou a casa que procura residem nesse tempo inacessível e belo na sua inacessibilidade. Esta nostalgia do passado não é, para a vida do espírito apenas uma ilusão. É um perigo. Como a mulher de Lot, também o espírito que olha para trás corre o risco de se solidificar e converter numa inútil estátua de sal.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Poemas do Viandante (505)

Francis Bacon - Man Turning on the Light (1973-74)

505. este vazio que se abre

este vazio que se abre
no centro do mundo

a luz que se desvanece
nas margens da terra

escondem o mar inóspito
onde me afundo

a amarga e sombria mão
que ali me encerra