segunda-feira, 23 de março de 2015

Uma viagem para si

André Louis Derain - Bacchic dance (1906)

A dança báquica é, na antiga tradição dos gregos, mais do que o símbolo da viagem, mas a realização da própria viagem. Mais do que o furor orgiástico, que tanto seduz a infantilidade moderna, é a realização do caminho que vai do corpo que se tem ao ser que se é. Pela dança, pela entrega plena ao frenesim dionisíaco, rompe-se o dique que separa a bacante da sua própria natureza, permitindo-lhe então a experiência plena de si mesma.

domingo, 22 de março de 2015

Estar à janela

Frances Hodgkins - At the window (1912)

Estar à janela é a condição mais equívoca do homem. Naquele que se senta à janela, cruza-se a nostalgia de estar do lado de lá, jogado no desconforto da viagem e na rudeza do desconhecido, com o temor que o prende ao conforto do que é familiar. Estar à janela é estar na fronteira, nessa linha imaginária que separa dois mundos. Na verdade, estar à janela é não estar em lado nenhum.

sábado, 21 de março de 2015

Poemas do Viandante (501)

León Kossoff - Outside Kilburn Underground, Spring (1976)

501. as águas negras do inverno

as águas negras do inverno
partiram cansadas

deixaram sobre o céu
um rasto de nuvens

e um astro desbotado
sem névoa nem fogo

sem uma chama que ateie
luz na primavera

sexta-feira, 20 de março de 2015

A solidão que cura

José Iranzo Almonacid - Isolamento (1978)

O isolamento pode ser o resultado de uma vida mecânica que segrega, numa sociedade de massas, a solidão. Nessa mecanicidade, o solitário sente-se vazio e este vazio é preenchido pela depressão. A solidão é, então, uma patologia perigosa. Há contudo outra solidão, a daquele que se isola para que um vazio se abra em si e, assim, seja preenchido pela plenitude daquilo que é. Este é o isolamento que cura e dá vida. Na verdade, só a solidão cura a solidão.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Haikai do Viandante (226)

Elmer Bischoff - Dragon (1948)

um dragão dorme
à porta do paraíso
velho frio disforme

terça-feira, 17 de março de 2015

O caminho oblíquo

Albert Gleizes - O caminho, Meudon (1911)

Por mais que deseje um caminho claro e distinto, o viandante acabará por descobrir que o seu desejo será sempre frustrado. Não há caminho espiritual que seja a execução de um conjunto de imperativos racionais, que o farão viajar por um espaço geométrico determinado pela limpidez da razão. A cada momento, o caminho varia, apresenta obstáculos, impõe retornos, logo seguidos de avanços, perde a luz que o ilumina, para que o viandante logo a descubra quando as trevas se tornarem mais intensas. Será sempre oblíquo o caminho do homem em direcção à voz que o chama.

domingo, 15 de março de 2015

A agonia em Getsemani

Paul Gauguin - Agony in the Garden (1889)

Na simbólica do cristianismo, a agonia em Getsemani preludia o sofrimento de Cristo pela prisão e morte que se aproximam. Uma leitura superficial fará da agonia o sinal de um destino necessário, inevitável. O que o cristianismo traz de novo é a subversão desse destino pela introdução da ressurreição, pelo desligar dos laços da estrita necessidade natural e a afirmação de uma liberdade que supera o destino. A agonia em Getsemani é o sofrimento que engendra a liberdade e nos torna livres.

sábado, 14 de março de 2015

Poemas do Viandante (500)

Marc Chagall - The dream (1976)

500. esse sonho mineral

esse sonho mineral
sangra na noite

uma rosa de silêncio
ferida no peito

uma estrela cadente
de pedra e sal

sexta-feira, 13 de março de 2015

Da acrobacia espiritual

Marino Marini - Acrobats (1960)

Muitos deixam-se seduzir pelas acrobacias do espírito, seja pela capacidade de cálculo e de argumentação da razão, seja por hipotéticos poderes espirituais. A vida espiritual não é, todavia, uma exibição do esplendor circense do ego. A única acrobacia verdadeiramente difícil, e útil, é o ater-se à realidade tal como ela é. Melhor, tal como ela brota a cada instante.

quinta-feira, 12 de março de 2015

Haikai do Viandante (225)

Karl Schmidt-Rottluff - Casa em ruínas (1930)


tempo de ruína
na velha casa caiu
pedra cinza frio