terça-feira, 27 de março de 2012

Do desprezo de si e do ódio à vida (II)


No texto anterior, um comentário a Jo 12,25, acabou-se por contrastar duas traduções do mesmo versículo. A questão que ressaltava era se o caminho para a eternidade seria a do desprezo de si, o desprezo de uma identidade tida como ilusória, ou se o ódio à vida, uma vida da qual não somos autores. A identidade empírica, à qual damos tanta importância na vida quotidiana, pode ser não levada em consideração, pois considerá-la seria solidificar aquilo que é um mero construto, um artefacto ou um dispositivo de produção de uma subjectividade. Como todos os dispositivos, artefactos ou construtos, a subjectividade - a identidade do ego - é perecível. Ela só pode existir no espaço e no tempo, e neles deve perecer. Entrar na vida eterna - nesse além do espaço e do tempo - exige assim que o si (self) se dispa de si (ego), enquanto este si for a máscara construída de uma subjectividade mundana.

A outra tradução, a qual dissemos ser complementar da primeira, é de exegese mais difícil. O caminho para a eternidade passa não pelo desprezo de si mas pelo ódio à sua vida.  Devemos odiar a vida que nos foi dada, a vida biológica, a qual inclui a vida social, para entrarmos na eternidade. O problema centra-se na interpretação do termo ódio. Este deve ser interpretado no seio do par amor - ódio. Se se considerar este par como constituído por dois contrários, então o ódio não pode ser uma via de acesso à eternidade. Se, porém, for interpretado no âmbito da filosofia cristã, o ódio não passa de um amor diminuído, de um amor no grau mais baixo da escala amorosa. Odiar a sua vida não significa o contrário do amor, mas de um não considerá-la, não tê-la em atenção, um não ocupar-se dela, para se ocupar com aquilo que da eternidade chama por nós, que apela ao caminho do viandante, à peregrinação do peregrino.


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