domingo, 6 de novembro de 2022

O Ritmo do Outono 9

George Inness, Early Autumn, Montclair, 1888

A luz desmaiada da tarde

semeia sombras pelas ruas.

 

Nos corações, a nostalgia

derrui muralhas e memórias,

ciprestes na luz de Novembro.

 

Um pássaro poisa na tília

e sonha o silêncio da noite.

 

Novembro de 2022

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

Meditação Breve (186) Milagre

Artur Pastor, Série “Outras Geometrias”. Monsaraz, décadas de 40-60 (ver aqui)
Da alvura das paredes, da cintilação da cal, do peso dos anos, de tudo isso, como de um fruto longamente amadurecido, brota um murmúrio, logo transformado em canção, para se erguer ao céu como um hino de louvor àqueles lugares onde o tempo se dobra para, fruto de um milagre nascido da vontade de um Deus abscôndito, correr mais lento e apaziguado.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A sombra da água (1)

Henry G. Peabody, Wing and Wing, 1889

A água dança na sua sombra, eleva-se como se sonhasse, desce em busca de um leito onde se possa entregar nas mãos da solidão. Quando sente a vibração de um deus ou de um anjo, torna-se a elevar e rodopia sobre si, para se rever no espelho onde o céu se descobre.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

O sal do silêncio (92)

Frederick Boissonnas, Dans la Montagne, 1905

Naquele lugar ermo, um punhado de casas perdidas faz lembrar uma aldeia tomada pelo salitre dos dias. Envolvidas pelos cumes das montanhas, à espera da névoa, são ainda um sinal da presença. Não do homem, mas desse silêncio de onde nasce tudo aquilo que é decisivo.

sábado, 29 de outubro de 2022

O Ritmo do Outono 8

Paul Klee, The Messenger of Autumn, 1922

A vida extingue-se na luz

crepuscular sobre as tílias.

 

Nas ruas, morrem os revérberos,

uma procissão de esplendores,

o fulgor cansado da tarde.

 

Ouvem-se palavras ao longe,

um anjo canta a luz do Outono.

 

Outubro de 2022

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

O Espírito da Terra (23)

Frederick Britton Hodges, November skies, c. 1915

Sob os céus de Novembro, a terra recebe os pesados encargos que o homem lhe trouxe. Serva submissa e fiel, entrega a sua pele para o livre devaneio ou a imperativa necessidade dos homens. As nuvens sorriem-lhe, e as árvores despem-se para que as suas folhas, ao morrer, a cubram e lhe levem o alimento que a tornará uma e outra vez criança mergulhada no rubor da inocência.

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Impressões 107. O homem do saco

Francesc Català-Roca, El hombre del saco, 1950
O homem do saco, esse terror da imaginação infantil, afinal é apenas uma sombra que se projecta no chão daquelas ruas esconsas, onde só o silêncio tem voz. Não rouba crianças, nem sonhos, nem solidões. Vagabundeia por onde a luz viva do Sol faz incidir os seus raios, para criar ilusões a quem, de longe, o vê aproximar. Caída a noite, não há quem o veja, pois também ele, então, treme diante do artifício da sua sombra nocturna.

domingo, 23 de outubro de 2022

Haikai do Viandante (429)

Carlos Botelho, sem título, 1931

 Irrompem ciprestes
na aridez da paisagem.
Sombra e solidão.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

O Ritmo do Outono 7

Charles le Roux, Borde del bosque; Cerezos en otoño, 1855

Chegou o tempo aprazado,

da vida a rosa se despede.

 

Um cântico feito silêncio

cobre a terra com a voragem

do lume inflamado dos dias.

 

As folhas mortas nos passeios

cantam, aves de âmbar ao vento.

 

Outubro de 2022

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Biografias 32. O guarda do parque

Paul Almasy, Paris, 1960s
Não lhe compete a ordem pública, apenas a certificação de que as regras privadas sejam cumpridas. Cuida para que estranhos invasores não destruam os carros à sua guarda ou que motoristas desavisados danifiquem as viaturas que ali dormem o sono reparador, que lhes devolverá a energia mal os proprietários as façam trabalhar. Fundamentalmente, ordena a relação entre a passagem das horas e o custo, para que a cada fracção de tempo corresponda o preço estipulado. Sem o saber, o guarda do parque, mais que ao parque e aos automóveis, guarda com zelo essa estranha equivalência entre tempo e dinheiro, e fá-lo de tal modo que se é levado a crer que se pode comprar o tempo como se fosse mercadoria à disposição de quem acumulou generosas quantias para, pagando o tempo, se livrar da morte. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

O Espírito da Terra (22)

Gertrude Käsebier, Blossom Day, 1904-05
Os dias em que a Terra se elava pela metamorfose de um botão em flor são marcos miliários no caminho da glória. O sólido e árido crucificam-se para que a seiva corra como um rio em busca da foz. Então, chega a hora em que a beleza se manifesta e tudo o que pertence à Terra se transforme em puro espírito.

sábado, 15 de outubro de 2022

Diálogos morais 64. Visão

Paul Strand, Conversation, 1916
- Como?

- É o que te digo.

- Não posso crer.

- É a mais pura verdade.

- Custa a compreender.

- Também a mim custou.

- Como foi possível?

- Foi o que me perguntei na altura.

- Não admira, também me teria feito a mesma pergunta.

- É inacreditável.

- Agora que me disseste, ainda me custa a crer.

- Se não tivesse visto, não acreditava.

- Ah... viste.

- Com os meus próprios olhos.

- E ainda crês naquilo que os teus olhos vêem?

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

O Ritmo do Outono 6

Jean-Baptiste Armand Guillaumin, Paisaje de Otoño, 1876

Brama a folhagem no arvoredo,

sob a inclemência do astro.

 

Amarelos, rudes castanhos,

vermelho quase avinhado,

dobam o destino do verde

 

que já das folhas se desprende,

pássaro do Sol tão cansado.

 

Outubro de 2022

 

terça-feira, 11 de outubro de 2022

Câmara discreta (18)

Constantine Manos, Moscow Airport, Russia, USSR, 1965

Tudo o que se vê na gélida assepsia das instalações fala de abandono. Não de uma mera partida para chegar a casa ou para ir longe e voltar, mas do desamparo de uma deserção daquele exército que se esconde na geometria do espaço, na rude frugalidade com que a vida, naquele lugar, se deixa ver. O que a circunspecção da câmara não mostra é o caudal da solidão que corre por dentro do corpo, é o borbulhar da dor no silêncio da espera.

domingo, 9 de outubro de 2022

Pintura e haikus (26)

Ana Hatherly, Palma de Maiorca, 1958

Umbrosas as cores

tumultuam sobre os campos.

Transe e agonia.

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Impressões 106. Cuidar do silêncio

Aaron Siskind, Acolman 5, 1955

Há lugares em que o único ofício possível é o de cuidar do silêncio, obstar a que o ruído se precipite sobre aquilo que existe, e assim evitar que, tresloucadas, as ondas sonoras rasguem a pedra e a entreguem nas mãos do tempo, que, com os seus dedos de aço, haverá de a pulverizar, até que tudo se transforme em nuvem de poeira levada pelo vento.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

O Ritmo do Outono 5

Tomás Yepes, Bodegón de higos en un paisaje

Foram-se os dias de tempestade,

partiram as nuvens mais negras.

 

O Verão acaba em tormenta,

com águas de fúria e raiva,

um rasto de dor nas roseiras.

 

Os figos cintilam nas cestas,

dádivas roubadas aos campos.

 

Setembro de 2022

 

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Câmara discreta (17)

Hans Baumgartner, Primarschule im Hinterthurgau, 1947

Não é nos livros que se encontram os sonhos, pensa a aluna distraída perante a cena que, diante dela, alguém representa, para que o saber entre, talvez pelo coração, naquelas mentes demasiado ágeis. Um outro mundo mais vivo e mais real cintila dentro dos olhos, iluminando-os nessa fuga dos imperativos trazidos pela condição de estudante. Não é uma fuga para a ignorância, mas uma luta entre duas formas de sabedoria.

sábado, 1 de outubro de 2022

O Espírito da Terra (21)

Benvenuto Benvenuti, Avanti il tramonto, 1908

Ao pôr-do-sol, a terra liberta-se do cansaço do dia e, por instantes, deixa reverberar todas as cores que a habitam. Depois, deixa que as aves se calem e  os animais se escondam para dormir. Então, chama a noite e, embalada pelo vento, adormece até que a aurora chegue com a promessa de um novo dia

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O sal do silêncio (91)

William Henry Fox Talbot, A Scene in a Library, 1844

Onde os livros dormem à espera de leitores vorazes que deles não se cansem, reina um silêncio adormecido pelo passar das horas. Um mundo sombrio feito de poeira e esquecimento, pensará quem dos livros não se aproxima, mas aqueles cujos olhos não se cansam das palavras pensarão que ali encontraram a cintilação da luz e o sal da vida.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

O Ritmo do Outono 4

Tomás de Mello, Paisagem, 1955

O vermelho das nuvens brilha

em céu maculado de fogo.

 

Os dias deslizam devagar,

levam para longe os pássaros,

a voz da lira de Orfeu.

 

Os ventos sopram outonais,

são sombra e silêncio dos deuses.

 

Setembro de 2022 

domingo, 25 de setembro de 2022

Micronarrativa (63) Jogadores

Otto Scharf, Kartenspieler, 1905

Apesar das moedas na mesa, os jogadores de cartas não jogam para obter ganhos. Seria, pensam, ignóbil fazer do lucro uma motivação para passar aquelas horas. Um duplo objectivo os move. Esconder o seu pensamento e desocultar o dos parceiros. Quando a sessão acaba, sentem-se felizes. São como as crianças que acabam de jogar às escondidas. Quando se vão embora, sabem que retornarão no próximo dia.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Câmara discreta (16)

Ernst Haas, Santa Fe, New Mexico, 1952

Discreta, a câmara oculta as pessoas perdidas naquela vida, não lhes mostra a face, o corpo, o modo de ser que sempre se surpreende no olhar ou num trejeito dos lábios. Exibe, porém, os artefactos com que a vida se tece, os objectos dos pobres prazeres ou os que superintendem na fadiga. Cobre com a sua sombra de luz, a nudez de existências que se imaginam, mas não se vêem.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

O Espírito da Terra (20)

Artur Pastor, Santa Luzia, Algarve, da Série Outras Geometrias, anos 40-50 (ver aqui)
A brancura que se exalta de luz na luz de um olhar, a cantaria gasta pelo arrastar dos anos e o sopro dos ventos vindos do mar, as redes que trarão o que comer, se marés estiverem de feição. Também onde o oceano impera se faz ouvir no bramir das águas a voz da terra.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

O Ritmo do Outono 3

Edgar Degas, Autumn Landscape (L'Estérel), 1890

Espero as manhãs trazidas

pelo frio fulgor do Outono.

 

Debruço-me então na varanda

e vejo-me passar na rua,

sombra tisnada de silêncio.

 

Digo: nada disto me agrada

e calo-me. Ninguém me espera.


Setembro de 2022


sábado, 17 de setembro de 2022

Pintura e haikus (25)

António Areal, sem título, 1962

Mundos de calcário,
terras de sal e carvão.
Sombras na viagem.

quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Impressões 105. Geografias de luz

Léonard Misonne, Coucher du Soleil, 1905

O mesmo lugar ocupa diversas geografias, conforme a hora do dia. Um lugar não é o mesmo ao amanhecer e ao pôr-do-sol, nem durante o dia e durante a noite, pois a luz, a sombra e as trevas trazem consigo outras tantas configurações que se apoderam do território e transformam a paisagem que ingenuamente se pensa ser única em múltiplas. Cada uma com o seu clima e com os seus pontos cardeais. O Norte ao amanhecer não é o Norte do anoitecer. Cada um deles tem a sua natureza, os seus segredos e os seus imperativos.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

O sal do silêncio (90)

Ferreira da Cunha, Praça do Príncipe Real, 1945 (AML)

O momento em que as praças são mais belas é aquele que combina o sal da ausência com o silêncio apenas maculado pelo vento e pelo cair outonal das folhas. Então, a beleza explode envolta num véu de melancolia e abre-se para que o olhar se deixe tomar pela cintilação da vida.

domingo, 11 de setembro de 2022

O Ritmo do Outono 2

Celestino Alves, Casa
Cansada, uma folha cai,

anuncia a vinda do Outono.

 

Os olhos detêm-se na queda,

subjugados à gravidade,

à perfeita ordem do mundo.

 

Um cão abriga-se na sombra,

da árvore outra folha cai.

 

Setembro de 2022
 

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

O Espírito da Terra (19)

Artur Pastor, da exposição Montalegre, Pequeno Grande Mundo (2022), anos 50 do sec. XX (visitar o site dedicado a Artur Pastor)

A vida rude abre-se ao olhar, banhada pela intensa luz do abandono e do esquecimento. Nesta pobreza feita de contenção, de gestos medidos pela força dos dias e das noite, ouve-se a canção da Terra. Esta ergue a sua voz de vento e silêncio e deixa que o seu espírito, tomado pela quietude da inquietação, sopre onde quiser, ora como vendaval, ora como zéfiro benfazejo.