Salvador Dali, El ángel de Port Lligat, 1952 |
Sobre
a pródiga perfeição dos habitantes de Tiatira,
reina
um anjo de cabelos azuis, quebrado pelo fogo
do
turíbulo, por veios de mármore, linhas de luz.
Ave
na escuridão da cidade, sereia nas águas lustrais
nascidas
em côncava fonte, no cárcere do olvido.
Sob
a sua protecção crescem salgueiros, choupos,
os
rios contaminados pelo voo das borboletas,
pássaros
tomadas pela ânsia luminosa do Sul,
o
deserto onde se ouve o grito dos mortos,
o
silêncio sem fim na mudez de orvalho dos vivos.
Escrevo
as palavras acesas nas chamas de bronze,
na
obscuridade derramada no pó da terra,
o
trabalho sobre a areia perdida dos oceanos,
o
vento escaldante ao arder no centro do coração.
Um
sopro ressoa na paciente inspiração da carne,
na
nudez do amor, no silêncio dos dias de Novembro.
A
humidade das lágrimas escorre pelo vazio,
onde
a boca sorve o sangue e a seiva das giestas.
Olho
a campânula suspensa sobre a cabeça e na luz
abre-se
na fresta da manhã o cálice do dia que passou.
Corrompe-se
no esquecimento a palavra trémula.
Seca
na boca o lastro da língua, o fogo do logos,
as
palavras adulteradas pela traição da gramática.
Da
sonolência da sombra brotarão sem sentido
os
filhos das marés mortas, das vinhas incendiadas
pelo
pólen do crepúsculo, pela estrela da aurora
submetida
ao cansaço dos corvos da crueldade.
O
que mantiver a palavra e a cerzir no farol da paixão
ouvirá
o canto das esferas celestes na boca do anjo,
no
resplendor de um corpo feito de éter e incenso.
Passeará
pela sombra da tarde nas avenidas de musgo,
nas
ruas de Tiatira tomadas ao exército da loucura.
1993