segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Impressões 86. Outono

Benet Sarsanedas, Otoño

O Outono nasce de dentro da cor, é fruto da explosão cromática que tinge as paisagens e fere de espanto os olhos incautos. É assim que uma estação que abre o caminho aos rigores do Inverno cativa os corações e os faz desejar a vida como um eterno Outono.

sábado, 23 de outubro de 2021

O sal do silêncio (67)

Horst P. Horst, Lisa with Harp, 1939
Se o fogo deixa de arder, o corpo cresce por dentro do silêncio, protege-se das rajadas de vento, das ondas do mar, das poeiras vindas do deserto. Espera preso à cornucópia da solidão, até que a música desça sobre ele e o ateie para cintilar na nuvem da noite. 

domingo, 26 de setembro de 2021

A Sarça Ardente - 90

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908
Sobre as sombras reina
um império de luz,
o revérbero da madrugada,
a corola de oiro
do teu nome.

As folhas caem para dentro
do Outono,
incendiadas pelo bronze
da penumbra,
perdidas na cintilação da luz.

Setembro de 2021

domingo, 12 de setembro de 2021

Biografias 24. A mulher modelo

Mark Shaw, Gitta Schilling, Dior Glamour, 1960
A luz ofusca-me e na perturbação deixo de saber quem sou, uma contradição rói-me as entranhas, o que só a muito custo consigo disfarçar no sorriso. Digo-me, com não pouca vaidade e presunção, ser o molde prototípico onde as outras mulheres encontrarão a sua aparência, mas uma voz metálica e fria logo se apossa de mim. Não há nada mais funesto que a ilusão, murmura-me. Um ersatz não é um arquétipo. Pelo contrário.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Micronarrativa (55) O simulacro

Eugene Robert Richee, Carole Lombard, ca. 1937
A voz veio de dentro do espelho. Nunca me habituo ao simulacro da minha imagem. Como é possível que eu, tão cristalina e imortal, possa emanar um ser de carne que pretende emular-me a glória, mas que nunca terá a minha eternidade?

sábado, 28 de agosto de 2021

Haikai do Viandante (415)

Hiroshi Sugitomo: Aegean Sea, Pillon, 1990

 Sombras de silêncio
na névoa do horizonte.
O céu desce ao mar.

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Biografias 23. A velha mulher

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999
Toda a minha vida está neste papel. Não, não é verdade. Toda a minha vida está nestas rugas, no cansaço que não me deixa erguer, no frio que me tolhe os gestos, nos fantasmas que, com o passar dos anos, substituíram as pessoas que encontrava. Vejo sombras, oiço murmúrios, sinto um frio que nasce no coração.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

A Sarça Ardente - 89

Gustav Klimt, Schubert at the Piano, 1899
Ouve-se o desfilar das notas
trazidas pela leveza
com que os dedos
acariciam as teclas.

Um raio de sol trespassa
o vidro, fende
a penumbra
e abre o dia ao silvo da luz.

Uma música cintilante cresce
por dentro do silêncio
e floresce
nas pétalas de uma rosa.

Agosto de 2021

sábado, 21 de agosto de 2021

Micronarrativa (54) A espera

Júlio Pomar, Mulheres na Praia, 1950

Sentaram-se as três na areia da praia. Quem as visse pensaria que eram mulheres à espera dos maridos ocupados na faina do mar. Os traços rudes das faces, as roupas vindas de uma vida escassa, as costas viradas para o mar, como se dali pudesse vir não o bem, mas o pior dos males, tudo isso confirmaria a impressão do espectador. Como poderia qualquer mortal, sempre preso às aparências, descobrir a verdade? Quem as viu ao crepúsculo entrar nas águas não tem dúvidas. Eram sereias que esperavam a hora de regressar ao lar. Nunca mais foram vistas.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Diálogos morais 62. Perfumes

Horst P. Horst, London, 1936
- Está a ver, ali ao fundo...
- Não, mas adoro o seu perfume.
- Adora?
- Imenso, fui eu quem lhe o ofereci.
- Está enganado.
- Como?
- Equivocado. Não me ofereceu o meu perfume.
- Não está a falar a sério. Não se atreveria a...
- Dispenso-lhe a insegurança. O que me ofereceu foi um perfume...
- Sim, isso mesmo, e adoro o seu aroma.
Adora o perfume que comprou, mas esse não é meu. O meu perfume recebi-o de outros.
- De quem?
- Não tem grande queda para distinguir os odores.  A química não é o seu forte.
- Diga-me quem lhe deu o seu perfume.
- É uma herança. Recebi-o nos genes, mas esse não o empolgou. 

terça-feira, 17 de agosto de 2021

O sal do silêncio (66)

Harry Callahan, Chicago, 1949

As janelas fechadas encerram a casa aos ruídos da rua, os dos carros que passam, das mulheres que conversam, dos cães que ladram, das máquinas que troam, dos homens que discutem. Assim fechada, a casa torna-se o lugar onde o silêncio salga a vida e a abre para o inesperado que aguarda a sua hora.

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Biografias 22. O saltador de obstáculos

Rodney Smith, Don Jumping Over Hay Roll, Monkton, Maryland, 1999
Habituara-se a saltar obstáculos. Procurava-os onde eles pudessem existir. Ao encontrar algum, preparava o salto, corria e transpunha-o inexoravelmente. Havia, porém, um que ele evitava a todo custo, o maior dos obstáculo, ele próprio. Não sabe, o saltador, se a procura de obstáculos é uma etapa para enfrentar o obstáculo definitivo, se a fuga contínua de si mesmo.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

A Sarça Ardente - 88

Fernando de Azevedo, sem título, 1961
Entrar por dentro do silêncio
dele fazer casa, abrigo,
o fogo que arde
na manhã,
a luz na fímbria do corpo.

São silenciosas as palavras
dos deuses, vêm e vão,
procuram a morada
onde alguém
se possa acolher.

Agosto de 2021

sábado, 7 de agosto de 2021

Impressões 85. Rios

Dórdio Gomes, O rio Douro, 1935
Rios são espelhos onde os céus e terra se olham. Neles tudo se reflecte, a alegre exuberância da luz solar, a tristeza da neblina, a utilidade do casario, a sombra das árvores, o mistério da lua, a ameaça da tempestade. Um rio é um sinal onde a vida se mostra para melhor se ocultar.

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Meditação Breve (164) Adoradores da História

Max Dupain, High Tide. Newport,1975
Há quem tenha por objectivo ficar na História, nem que seja a pequena história da terra onde nasceu. Soubessem esses o quão precário tudo é e quão culpados todos somos, em vez de desejarem ser alguma coisa e, assim, terem um nome, desejariam que nunca a História, essa deusa traiçoeira, se lembrasse deles e que o seu nome fosse esquecido. Quanto mais depressa, melhor.

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Impressões 84. Rasto sombrio

António Areal, Opus n.º 59, 1963

Um torvelinho de ervas secas vistas ao longe. Talvez uma imagem do aparelho neuronal com os seus jogos sinápticos. Uma tempestade no mar captada por uma velha máquina fotográfica. O turbilhão indiferenciado e caótico que liga o nada ao ser. Como tudo na realidade se confunde e, na mais diferenciada diferença, se encontra o idêntico, esse rasto sombrio da unidade primordial.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

O sal do silêncio (65)

Brett Weston, Forest, Netherlands, 1971
O silêncio canta por dentro da floresta. O silêncio canta a floresta. O silêncio é a floresta. No princípio era o canto silencioso, depois o canto deixou que o ritmo transbordasse. Ao transbordar, o ritmo encarnou, tomou corpo, de pequena semente transformou-se em árvore. Ao reproduzir-se, a árvore quebrou a sua solidão e tornou-se floresta. Se o vento lhe toca, ouvimo-la cantar por dentro do silêncio. 

domingo, 25 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 87

Egon Schiele, Arboles otoñales, 1911
Os dias invisíveis em que o sol
iluminava o silêncio
ou do céu caía
uma chuva para sossegar
a inquietação do olhar.

Esperava-te, ó voz inaudível,
para que no teu eco
escutasse o restolho
da verdade
ou a promessa da redenção.

Julho de 2021


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Meditação Breve (163) Um caminho único

Roberto Domingo, Camino de la Muerte, Encierro en San Fernando, 1913

Ao ouvir a designação caminho da morte, de imediato, a consciência, talvez em busca de uma tranquila serenidade, pensa, como oposto, o caminho da vida. A presunção serena é, porém, abalada pela incerteza. Uma voz vinda do fundo de si mesmo sopra que não existem opostos os caminhos da morte e da vida, mas que são sempre um e o mesmo caminho. Ao caminhante foi dado o caminho, mas a ele cabe escolher se faz dele a senda que conduz à morte ou a via que leva à vida.

terça-feira, 20 de julho de 2021

Haikai do Viandante (414)

James Whistler, Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights, 1872

 A luz sobre as águas
traz a memória da noite.
O mundo adormece.

sábado, 17 de julho de 2021

O sal do silêncio (64)

Frederick Sommer, Rock, Utah, 1940
O trabalho silencioso da natureza esculpe os mais inesperados objectos, retira-os da matéria-prima indiferenciada e configura-os para que, chegada a hora, se abram para os olhos espantados dos homens. Essa escultora secreta nunca pára o seu trabalho, como se fosse animada pela esperança vã de que sempre haverá olhos humanos para contemplar os seus artefactos.

quarta-feira, 14 de julho de 2021

Impressões 83. Reflexos da eternidade

Edward Weston, Near Neshanic, New Jersey, 1941

Há lugares onde o tempo parece ter suspendido o seu caminho. Neles reflecte-se a eternidade. São paisagens sóbrias que se escondem dos olhares ímpios, incapazes de perceber a sacralidade que ali se manifesta, o que por detrás da natureza e da humanidade espreita através delas. 
 

domingo, 11 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 86

Vincent van Gogh, Road with Cypress and Star, 1890
A casa onde o lume se guarda
abriu-se
e o espírito soltou-se
sobre o silêncio
que leva da infância à sabedoria.

A grande viagem pelo oceano
ilumina-se
nesse fogo de Pentecostes.
No navio, olhamos
o céu e descobrimos a Estrela Polar.

Julho de 2021

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Meditação Breve (162) Viver na terra

August Sander, Peasant woman, 1914
A terra oferece a quem lhe dedica a vida um humor compassivo e uma funda sabedoria. Não aquela que nasce dos livros, mas uma outra que permite compreender o que neles está. Quando as mãos repousam, o olhar ri não sem uma leve ironia e o coração abre-se à serenidade da existência.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Haikai do Viandante (413)

Fernand Khnopff, At Fosset Under the Fir Trees, 1894
Ouve-se o silêncio
entre as sombras da floresta.
Os deuses esperam.

segunda-feira, 5 de julho de 2021

O sal do silêncio (63)

Francesca Woodman, Untitled, 1975-80
A ruína da casa, a queda no abismo, o olhar espantado num corpo em perigo. No silêncio nascido da expectativa habita a esperança e o terror, o desejo se suspender o tempo e, por encanto, voltar ao lugar de onde tinha saído.
 

sábado, 3 de julho de 2021

Biografias 21. O homem do marisco

 Francis Wu, Shellfish Catching at Dawn, undated
Não tinha nome, pelo menos ninguém o conhecia por outra designação que não a do homem do marisco. Ele própria duvidava se alguma vez lhe fora dado um nome. Toda a sua vida se circunscrevia à função que tinha. Levantar-se cedo, apanhar o marisco, distribuí-lo, descansar, para no outro dia tudo recomeçar. Os grandes momentos da sua existência eram aqueles em que olhava as águas e se via nelas reflectido. Tinha a esperança que a sua imagem ganhasse vida e viesse desse mundo líquido para o ajudar. Nesse momento, dar-lhe-ia um nome e os dois passariam a ter um nome.

quinta-feira, 1 de julho de 2021

A Sarça Ardente - 85

Caspar David Friedrich, Summer, 1826
Chegou o tempo do lume,
do sol incandescente
sobre as paixões do corpo,
dos fogos matinais
a arder na floresta
branca da memória.
Chegou o tempo de a sarça
arder na claridade
do dia, na sombra da noite.

Julho de 2021

terça-feira, 29 de junho de 2021

Impressões 82. A paisagem agreste

Albert Gleizes, Paisaje, 1914

De súbito a paisagem fende-se, o olhar geometriza-se e aquilo que o hábito dava a ver como a realidade torna-se agora numa impressão. Não numa mera impressão difusa, de contornos esbatidos como se fosse um esboço, mas uma impressão viva de arestas cortantes, agrestes, prontas para fazer sangrar o incauto que entre sem permissão pela paisagem dentro.

domingo, 27 de junho de 2021

Arqueologias do espírito 25

Alfons Mucha, El Abismo, 1897-1899
Antes de a queda se ter constituído como um topos, topos negativo e ameaçador, da vida do espírito, ter-se-á insinuado um outro e poderoso arquétipo, o do abismo. A experiência dos precipícios, dos buracos de onde não se regressa, dos despenhadeiros e das profundidades insondáveis, tudo isso se concentrou na figura do abismo. Do abismo físico transbordou para o abismo da alma e do espírito e tornou-se, como todos os símbolos, ambivalente. Repele o homem com o medo da queda e atrai ao esconder o insondável. Toda a queda no abismo é marcada pelo temor e pelo desejo de ali cair.