sexta-feira, 19 de março de 2021

Haikai do Viandante (407)

Walter Leistikow, Lake Grunewald, 1898

O que permanece
no lago de Grunewald,
velado se tece.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Meditação Breve (152) Frivolidade

Janine Niepce, Buffet au champagne, Paris, 1963

Um exercício de frivolidade, não porque seja fútil beber champagne ou leviana a vida social, mas porque se representa que se bebe champanhe e se está num acontecimento social. Toda a frivolidade nasce de um movimento em que o self recua temeroso e se duplica através do uso do corpo como uma máscara protectora.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Arqueologias do espírito 22

Kerekes Gábor, Apple, 1991
Dádiva espontânea da natureza, os frutos ter-se-ão inscrito tão fundo no espírito dos homens, que estes não hesitaram em fazer de um deles o símbolo da sua expulsão do paraíso e da queda na vida mundana. De certa maneira, a maçã arrastou os homens na sua viagem para terra. Retirou-os dessa existência fora do espaço e do tempo e fê-los aterrar num corpo sujeito à duração. Da contemplação da viagem da maçã desde os ramos incessíveis até à terra dura, o espírito descobriu um modo para explicar porque se encontro presa na cela do corpo e na caverna do mundo.

terça-feira, 16 de março de 2021

A Sarça Ardente - 73

Aristide Maillol, Dans l'esprit d'une fresque, 1930
O vinho fremente da tua boca
brilha na escuridão
do firmamento.

Bebo-o no copo escuro do corpo,
e fulguro na ferida
a arder no incêndio da fonte.

Março de 2021 

segunda-feira, 15 de março de 2021

Impressões 76. No claustro

Charles Clifford, Cloisters of the Church of Saint John of the Kings, Toledo, Spain, 1858
Sentado no claustro, um homem contempla a estatuária presa nas paredes, mas não são as figuras de pedra aquilo que vê, nem o domínio artístico dos autores, nem a passagem do tempo, que também lá se encontra. Procura ali a desmedida que há entre o seu olhar e o infinito que se esconde nessa prisão que todo o claustro é.

domingo, 14 de março de 2021

Pintura e haikus (24)

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1955
 Falésias de mármore
debruçam-se sobre o mar.
A luz do calcário.

sábado, 13 de março de 2021

Diálogos morais 59. Ateísmo

Josef Breitenbach, Dr. Riegler and J. Greno, Munich, 1933
- Meu Deus, como está desejável.
- Não estará a invocar o santo nome de Deus em vão?
- O meu desejo, espero-o, não será em vão.
- Além disso não estou desejável, apenas estou despida.
- Isso confirma que o meu desejo não será vão.
- Já vi que é um crente no seu desejo.
- Sim, sou-lhe muito devoto.
- Eu, pelo contrário, sou profundamente ateia.

sexta-feira, 12 de março de 2021

O sal do silêncio (55)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

Esse silêncio que nasce do despojamento da paisagem desaba perante o olhar. O coração suspende-se e espera que a luz se desfaça das sombras, para que tudo reverbere nas sílabas mudas de cada palavra que a boca se esquiva a proferir.
 

quinta-feira, 11 de março de 2021

A Sarça Ardente - 72

Gerhard Richter, Abstraktes Bild, 1995
O jardim no incêndio
da tarde
abre-se em aromas
de vento e água,
deixa fugir
as primeiras notas.

Uma melodia levita
na sombra
de um céu azul
sobre o sal
das dunas e o canto
agreste das gaivotas.

Março de 2021

quarta-feira, 10 de março de 2021

Arqueologias do espírito 21

Ferdinand Hodler, Los Alpes de Vaud vistos desde los Rochers-de-Naye, 1917

Nunca saberemos o estremecimento que percorreu o corpo do primeiro homem que viu as montanhas nascidas da terra elevarem-se e fundirem-se nos céus. Essa ignorância, porém, é compensada pelas reverberações sem fim desse acontecimento. Como uma pedra que cai nas águas imóveis de um lago e provoca uma ondulação que parece não acabar, também esse primeiro avistamento não deixou de criar ondas que se vão alargando, envolvendo cada novo tempo e fazendo com que os homens continuem a estremecer ao verem as mais sagradas núpcias, as que unem Céu e Terra.

terça-feira, 9 de março de 2021

Micronarrativa (51) A mulher bifronte

Gjon Mili, Double exposure of models wearing hat with heavy face veil, 1946
Como Janus, o deus bifronte, também ela tem dupla face. Uma virada para trás e outra para a frente. Olha compungida para o passado, mas não se atreve a descerrar os olhos que lhe diriam o futuro. A vergonha do que foi é menor do que o terror de chegar ao que será sem a inocência da novidade.
 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Impressões 75. Na floresta

Brett Weston, Beech Forest, Holland, 1971

Entra-se na floresta e escuta-se o canto das folhas secas ao ranger sob o peso do corpo. Depois, ao parar, ouve-se o silêncio chegar. Ele vem lentamente, arrastado por um vento suave, e poisa sobre os ramos das faias. É um silêncio leve. Por vezes, pássaros cantam, mas o silêncio permanece. O corpo desliza e encontra nas folhas amontoadas a melhor das camas. Adormece sob o som do silêncio.

domingo, 7 de março de 2021

O sal do silêncio (54)

Sarah Moon, Yohji Yamamoto pour Elle, 1996
O silêncio é um exercício delicado, um equilíbrio entre o negro lutuoso e o esplendor de luz que nele se oculta. Basta que um grão de areia desequilibre os pratos da balança e um ruído sem fim desaba sobre o silêncio ritual onde o mundo se protege do ogre arcaico do caos. 

sábado, 6 de março de 2021

A Sarça Ardente - 71

Jan Vermeer de Delft, La mujer del collar de perlas, 1664
Conto as pérolas no colar
feito de frio e fogo,
deixo ecoar
na sombra do coração
o incenso do Inverno.

Uma cintilação toca-te
os dedos e a luz
vinda das estrelas
reverbera no rumor
das pérolas do teu nome.

Fevereiro de 2021

 

sexta-feira, 5 de março de 2021

Meditação Breve (151) Realidade desfocada

Frederick Sommer, Untitled (Nude out of focus), 1962
Quando a realidade surge desfocada, há a tendência para ver nesse acontecimento um problema óptico, um desconcerto da visão ou dos aparelhos técnicos que a prolongam. Nunca se pensa na natureza penumbrosa dessa mesma realidade que, por vezes, se mostra na sua verdade mais pura. Indefinição sem fim, esboço nublado, caminho perdido entre o ser e o nada.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Metamorfose

Herb Ritts, Versace Veiled Dress, El Mirage, 1990
Seria ingénuo pensar que era um anjo o que de súbito aterrou naquele terreno que mais parecia um deserto. Também especulações sobre seres vindos de outros sistemas solares não passam de fantasias de mentes débeis e delirantes. Quem lá estava, e eu estava, viu muito bem o que se passou. Uma enorme ave poisou em silêncio. Ergueu as asas, como se se espreguiçasse, e, de súbito, vimos que elas se transformavam num véu negro, que, apesar da transparência, ocultava já não um pássaro, mas uma mulher. Belíssima. Era terrível o seu olhar. Desfez-se do véu e caminhou, sem hesitação, para nós. Sentimos um calafrio e começámos a recuar, até que fugimos em desespero. Nunca soube quem ela era ou o que queria. Ainda hoje tremo ao pensar no que vi. 

quarta-feira, 3 de março de 2021

Micronarrativa (50) Uma história amarela

Francis Picabia, L'arbre jaune, 1909

Uma árvore amarela cresce de um chão amarelo para um céu a amarelecer. Por ela passam viajantes perdidos na cor da sua viagem. Sentam-se sob a copa da árvore e meditam longamente sobre as cores deste mundo. Enquanto se concentram no objecto da sua meditação, o amarelo vai-se definindo como a cor com que hão-de viajar. Chamam um táxi. Ele chega preso à cor amarela. Para a grande cidade amarela, dizem, se o taxista lhes pergunta pelo destino.

terça-feira, 2 de março de 2021

Arqueologias do espírito 20

Lee Miller, The veiled Eiffel Tower, Winter 1944-45
Neblina, névoa, nevoeiro, nebuloso, nuvem. A sequência de aliterações permite descer ao fundo da gruta. Ali a consciência guarda os arquétipos com que abre o espaço para que o significado assombroso das coisas se manifeste. Muito mais funda do que a consciência clara está a zona da penumbra. Se visitada em sonhos ou numa vigília absorta, descobre-se o caminho para o mistério. Então, os passos afundam-se na neve fria e o viajante vai afastando as mil cortinas que estão no fundo de si. A neblina, a névoa, o nevoeiro, o nebuloso, a nuvem e descobre-se na clareira aberta do enigma.

segunda-feira, 1 de março de 2021

A Sarça Ardente - 70

Ruy Leitão, sem título
Dessa poeira que sou
guardo um resto
em saco de sisal.

Vigio-a como se vigia
um tesouro
ou a costa ameaçada

por inimigo irascível.
Nos dias luminosos
oculto-a esquecido

da ondulação dos céus
onde Deus sorri
na sombra do silêncio.

Fevereiro de 2021

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Diálogos morais 58. Engano

Carl Mydans, Vladimir Nabokov (in mirror) dictating while wife Vera types, 1958
- Parágrafo.
- Parágrafo, tens a certeza? Não faz sentido.
- Quem é o escritor?
- Parece-me que a resposta é clara.
- Então, faz parágrafo.
- Não tem sentido.
- O escritor sou eu.
- Enganas-te.
- Engano-me?
- Tu ditas, és um ditador. Quem escreve sou eu.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

O sal do silêncio (53)

Alexey Titarenko, Saint Petersburg
Uma cidade encerra-se na casa do silêncio. Sobre ela desce uma névoa e tudo o que era visível entra no grande palácio onde morrem todas as ondas sonoras. Ouvem-se passos, vozes, o ronco dos carros, mas a água do rio, a pedra dos passeios, as paredes e telhados das moradias, troncos e ramos do arvoredo, tudo isso se entregou na pura mudez da invisibilidade.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Pintura e haikus (23)

José de Almada Negreiros, As Banhistas, 1925

Mulheres repousam
à beira da solidão.
Murmúrios de água.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (49) A mulher que dança

Arnold Genthe, Margaret Severn dancing at the water’s edge, 1923
Presa ao feitiço da névoa, ela dança sobre a areia húmida. A água vai e vem e a mulher baloiça ao ritmo do murmurar do oceano. Por vezes, é um pássaro. Outras, uma sereia. Por momentos, lembra um anjo preparando-se para se elevar aos céus. Por fim, enquanto o corpo se desdobra em cada passo, a mulher que dança descobre o seu ser no pálido esboço da sombra que sob os seus pés dança a dança que ela inventa.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A Sarça Ardente - 69

Emil Nolde, Prophet, 1912
Olho para Oriente,
a luz da manhã
rumoreja, toca
a copa das árvores,
a casa do coração.

A voz de um profeta
macerada no musgo
fere o futuro
como se lacerasse
o ventre da mãe.

Fevereiro de 2021
 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Impressões 74. A vida plena

Alfred Eisenstaedt, Row of trulli homes, Alberobello, Italy, 1947
Que secretas palavras se trocam nas ruas e ajudam o tempo a passar? Da brancura das casas, eleva-se um telhado em forma de cúpula, como se um desejo arcaico de se elevar aos céus ali ganhasse sentido e esperança. A vida passa devagar, iluminada por sol persistente. Em certas horas, as pedras das ruas escaldam, a realidade é fruste, mas nunca lhe falta um indício de verdade e os sintomas de uma vida plena.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O sal do silêncio (52)

Herbrt List, The Acropolis, Athens, 1937
A noite do mundo veio encoberta e, num murmúrio de seda, caiu sobre a pedra. O sal abriu as fissuras e o templo perdeu as suas divindades, para se tornar num esboço precário de uma memória presa às mandíbulas do silêncio.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Diálogos morais 57. Na floresta

Deborah Turbeville, Women in The Woods, VOGUE Italia, 1977
- Quem és tu?
- Não sei.
- De onde vieste?
- Não faço ideia.
- Como chegaste aqui?
- Ignoro.
- O que queres deste lugar?
- Não me ocorre nenhum querer.
- Pareces quase transparente.
- Não estás em melhor condição.
- Afinal, tens opiniões.
- E tu, além de opiniões, o que tens? 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Histórias sem nexo 24. A galazia da Galateia

Salvador Dali, Galatea de las esferas, 1952

A galáctica Galateia gamou o gato do Gabriel. Gabou-se a gabarola. Ao Gamão gadanhou o Galileu. De gancho na gaforina, a ganapa gafou o Gamaliel, gaseou o Garcia. Gaseificou ao ser galada, na garagem, pelo galã do Galvão, um garibaldino ganancioso. Gaita, gaguejou gaveada.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A Sarça Ardente - 68

Paul Klee, Early Morning in Ro, 1925
Descalços, os pés
rasgam a areia.
Semeiam sulcos
para que os sigas
e no frágil fulgor
da aurora
inundes de luz
o sal destas mãos.

Fevereiro de 2021

 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Micronarrativa (48) A rapariga do arco

Frantisek Dtrikol, Broken Arc, 1927

Ela segura o arco como se este a pudesse libertar do desamparo em que se deixou cair. De joelhos, ergue o rosto para semear a dúvida em quem a observa. O corpo, nu e preso à roda frágil da vida, disfarça-se surpreso na sombra que projecta, como um fantasma ancestral, na planície da parede.