terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Impressões 67. Luzes do Norte

Sydney Mortimer Laurence, Northern Lights

A luz é um animal preso à metamorfose, muda de lugar para lugar, construindo mundos que nunca deixam de surpreender quem os observa. Aos amarelos do Sul, contrapõe os azuis do Norte. Ali os homens sonham, entre planícies gélidas tocadas de anil, pequenas cabanas, abrigos onde arde e ruge o laranja avermelhado do fogo que os salvará.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 13

Stanisław Witkiewicz, Spring fog, 1893
A dissimulação da realidade sob um manto de nevoeiro, a suspeita de que alguma coisa reside naquilo a que os olhos, não sem pena, descortinam como esboços, o temor de um perigo velado pela cortina da névoa ou a expectativa de algum bem dissimulado entre a neblina, tudo isso abriu o espírito para a dimensão do mistério, o que existe fora do homem e o que reside em si, sempre oculto na penumbra do pensamento ou no crepúsculo da imaginação. Adentrar-se pelo manto húmido da névoa e assim se abrir ao segredo do mundo, ao enigma de si. 

domingo, 13 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (42)

Peder Mørk Mønsted, Paisagem de Inverno, 1917

Quando o Inverno desce sobre a Terra, traz consigo a rude necessidade, e em todo o lado, campos ou cidades, a vida torna-se mais rústica, mais precária, mais autêntica, como se o frio fosse uma provação iniciática e, a quem a suportasse com êxito, abrisse a porta para um outro mundo, mais imponderável, mais luminoso, mais próximo da verdade que a todos espera no fim do caminho.

sábado, 12 de dezembro de 2020

A casa e o mundo

Enzo Sellerio, Vizzini, Italy, 1955
Se foi sempre louca? Ó não. Não apenas era a rapariga mais inteligente na escola como, ao crescer, se tornou a mais bela do bairro. O coração perdeu-a. Tinha pretendentes, claro. Apaixonou-se por um, o menos indicado segundo os padrões da família, e, como sabe, as famílias dos meios populares têm por aqui, ainda hoje, tantos anos passados, um poder excessivo sobre o futuro dos filhos, mais ainda sobre o das filhas. Os pais fecharam-na na mansarda e disseram-lhe, não sem ironia, que bem podia esperar pelo eleito. Morreram há muito, mas os irmãos não a libertaram. O pretendente desapareceu do bairro sem explicação. Ela? Cumpre as ordens dos pais. Continua à espera que ele venha. A janela da mansarda tornou-se a sua casa e o seu mundo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 54

Júlia Ventura, Geometrical reconstructions and figure with roses #5, 1987
Espero-te na casa da harmonia,
o areal coberto de limos,
o lume a fulgurar
na montanha da memória.

Os dias são aves apressadas,
esquecidas do ninho
onde deixaram os ovos
a incubar o fruto do futuro.

Senta-te no carrossel do tempo.
Ouve a música da terra
e leva aos lábios a taça
de onde escorre o vinho do vento.

Novembro de 2020

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Haikai do Viandante (405)

Emile Claus, La route après l'orage, 1869
 Estrada deserta
perdida na tempestade.
Rumor no caminho.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (5)

Arseny Ivanovich Meshchersky, Winter. Icebreaker, 1878

Também a terra se entrega nas mãos gélidas do Inverno. Tudo se torna mais agreste e uma beleza contida germina nas paisagens frias, como se a realidade se tornasse mais secreta, mais profunda, menos frívola, menos volúvel. Espera silenciosa por uns olhos que a vejam e se contaminem com a promessa que nela se esconde. 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Diálogos morais 52. Visões

Richard Avedon, Elise Daniels, Turban by Paulette, Pré-Catalan, Paris, 1948
- Estás a ver?
- Estou, estou...
- Como é possível?
- Neste mundo, é de esperar tudo.
- Estás mesmo a ver? Não sejas condescendente.
- Estou a ver, podes crer.
- E não te indignas com aqueles ali, logo eles?
- Eles quem?
- O que estás a ver? Diz-me.
- O teu pescoço, a tua mão...
- Não é isso.
- Ah o resto só posso imaginar. Por enquanto.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Medo

Nobuyoshi Araki, Colourscapes, 1991
Não foi a malevolência de uma bruxa má que lhe pôs aquelas amarras à volta do corpo. Também não foi algum amante dado a práticas de dominação ou excentricidades para incendiar o desejo. Não se lhe conhecem namorados, fixos ou ocasionais. A versão mais fidedigna, pelo menos é a mais verosímil, diz que é ela própria que se liga desse modo. A finalidade? A de todas as mulheres, encontrar o príncipe encantado. Ao que for capaz de a desamarrar, ela entregará o corpo e a vida. Se tem havido pretendentes? Como à mulher de Ulisses, também a ela não lhe faltam. Falham todos. Ela sorri apenas quando mais um desiste desconsolado. Se já tentei? Não, tenho medo de conseguir e de, nesse instante supremo, o meu amor por ela desaparecer sem deixar rasto.

domingo, 6 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 53

James Thomas Watts, A Misty Autumn Morning (near North Wales)
Despedimo-nos da embriaguez
de cores do Outono
e entramos na sonolência
de cinza do Inverno.

Os dias deslizam de solstício
em solstício.
A terra revolve-se para trazer
um rasto de sal e fogo ao coração.

Na língua, descobrimos palavras
com que dizemos
o fulgor do que passa
na cintilação suave do silêncio.

Novembro de 2020

sábado, 5 de dezembro de 2020

Impressões 66. De si para si

Francesca Woodman, Rome, 1978
Caído, o corpo desliza de metamorfose em metamorfose, aprendendo pela dor o caminho que leva de si para si. O silêncio zune e o espírito, a princípio confuso, encontra a porta por onde deve entrar para a casa que, por instantes, será a sua.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 12

Alexandre Calame, Waterval van de Handeck aan de Grimsel, between 1830 and 1848
Imerso em si, o homem olha o revoltear das águas e escuta a música que chega até ele vinda antes do tempo. No turbilhão, ressoa a operação gigantesca de trazer um universo à existência e o espírito, aquele que pairava sobre as águas, entrega-se à rememoração, pois uma linha sem espessura, mas indelével, o autêntico fio de Ariadne, liga-o ao ânimo daquele que observa em silêncio o fluir revoltoso das águas. E na contemplação do que é visível, encontra o contemplador um caminho para o invisível, instruindo-se nesse secreto exercício da memória. 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (41)

André Kertész, Distortion #40, 1933

Ébrio, o olhar vagueia em silêncio pelo corpo nu. As cordas do desejo, de tão tensas, estiram a realidade, e súbitas metamorfoses transtornam a visão que, exaurida pela beleza, distorce aquilo que se revela, no pudor da presença, diante de si. Uma pergunta, então, assombra o espectador, mas ele, de tão atónito, não consegue formulá-la, enquanto o corpo que se transforma dança dentro dos seus olhos. 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (4)

Albert Bierstadt, Atardecer en la pradera, 1870

Tocada pelo sol, a terra deixa lavrar na pele um grande incêndio. Não de fogo, mas de cores, com as quais conduz o espírito deslumbrado para o mistério que a habita. Ao arder assim, ela purifica-se e abre-se para a incerteza da noite, como se já o seu coração pulsasse na água rasa da aurora.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 52

Thomas Girtin, Sunrise on the Sea
A noite desfralda as velas
e zarpa para o porto
da manhã.

Navega sobre as vagas
da tentação
no rumorejo das trevas.

A lua ilumina o caminho,
o silvo cintilante
dos primeiros raios de sol.

Novembro de 2020

 

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 19. A coéfora coralista

Eugène Atget, Boulevard de Strasbourg, Corsets, Paris, 1912
A coéfora comprou um coelho e de corpete, como uma coralista, contou como cogitou o contrato do comodoro colaborante. Era um coro de corpetes concebido num corpo de cólera. Cobre? Cobalto? Coral, disse o cónego, compra-se no comércio do comodoro, no covão do colibri ou no covil do cotim.  

domingo, 29 de novembro de 2020

Micronarrativa (44) A incerteza

Frank Eugene, Gustel Königer, 1909

O que a esperava não sabia, apenas olhava o horizonte e aguardava o que dali haveria de chegar. Na tranquilidade do rosto, pontuava a expectativa e no coração desenhava-se uma estranha contabilidade. Seria o bem ou o mal que encontraria. Com o corpo preso na incerteza, deu os primeiros passos e, sob um sol intenso, fez-se ao caminho. Ao longe, alguma coisa a aguardava.

sábado, 28 de novembro de 2020

Haikai urbano (64)

João Hogan, Casario de Lisboa, 1952
Ocres de Lisboa
tecem teias de silêncio
no sol da memória.

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Diálogos morais 51. Não era a mesma coisa

Alejandro Mesonero, Conversación
- Sabes uma coisa?
- O quê?
- A filha da...
- Não me digas nada, soube ontem.
- Fiquei para não viver.
- Também não é motivo para tanto.
- A pobre da mãe.
- São coisas que acontecem.
- Agora, acontecem mais.
- É verdade.
- No nosso tempo, também havia quem.
- Pois havia, mas não era a mesma coisa.
- Não, claro que não. Hoje é tudo bem pior.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 51

Lev Lvovich Kamenev, Fog. Red pond in Moscow in autumn, 1871
Sentam-se na sombra
dos salgueiros.
Pensam no primeiro
amor, na água lustral
e nas promessas
idas no rigor da invernia.

Tocam o instante de luz
em que o coração
vibrou virginal
e ateou um fogo
na paisagem
silvestre do sentimento.

Meditam nas árvores
levadas pelo tempo,
no banco vazio
onde o amor cantava
a finitude
de tudo o que é eterno.

Novembro de 2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Meditação Breve (144) A solidão do singular

The New York Times Photo Archives. 43rd Street and Broadway. New York. 1937
Não há como as agruras do clima para revelar essa solidão inultrapassável que habita no coração do indivíduo. Pura singularidade, toda a comunhão se dissolve e a energia, sempre tão pouca, concentra-se em chegar ao abrigo, por mais tosco, pobre ou infame que seja.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

As águas do Letes

John Martin, Sadak in Search of the Waters of Oblivion, 1812
Conhecera-o há muito. Tal como eu, devia andar pelos trinta no virar do milénio. Desapareceu, pouco depois. Houve notícias desencontradas. Que estava na selva amazónica ou num ashram na Índia. Que teria morrido numa emboscada em África. Nada disto era verosímil. Reencontrei-o há dias. Não me conheceu. Falei com ele durante várias horas. Não havia vestígio do passado na sua memória, embora os gestos, o olhar, o tom da voz, a forma como se movia ou vestia, até alguma precipitação na fala eram os dele. Perguntei-lhe onde tinha estado antes de chegar aqui. Respondeu-me, perplexo, que em lado nenhum. Depois, pensou e disse que tinha vindo por um rio cuja água lhe saciara a sede. Que não lhe fizesse mais perguntas sem sentido. Não fiz. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

O Espírito da Terra (3)

Józef Rapacki, A daybreak (Landscape - Thaw), 1897

O dia irrompe e um sol ainda pálido ilumina a Terra. As neves do rigoroso Inverno começam a perder consistência e formam pequenos lagos, que mais tarde secarão, deixando o solo ávido do trabalho ancestral do arado.

domingo, 22 de novembro de 2020

Arqueologias do espírito 11

Olga Wisinger-Florian, Prater Avenue in Autumn, ca. 1900
A queda, esse acontecimento que molda as existências e as tinge com o cobre da finitude e da falibilidade. Sentados por terra, nesses Outonos arcaicos, entre o medo do predador e o desejo da presa, os olhos humanos contemplavam o estranho espectáculo que se lhes abria. As folhas ainda há pouco verdejantes amareleciam, acobreavam e caíam baloiçando no ar, se uma brisa as tocava. O chão juncava-se de folhas caídas e os homens, ainda mal despertos para o sentido da vida, descobriam-se também eles folhas secas que o Outono haveria de fazer cair. 

sábado, 21 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 50

Manuel Cargaleiro, sem título, 1961
O lume foi aceso, a mesa posta.
Os dias são longos anos
de mãos abertas
para a vereda azul do Natal.

O hálito do Outono arrefece.
Dos teus lábios saem
palavras colhidas no rosário
da memória lavrada pelo silêncio.

A noite inclina o corpo para o fogo.
O crepitar da madeira,
faúlhas como pássaros ébrios,
a porta fechada para o frio da rua.

Novembro de 2020

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Histórias sem nexo 18. Um acrobata na Acrópole

Fernand Léger, Los acróbatas del circo, 1918

Acrescia, acrescentava, como um acrata, quase um acrânio. Acriançado, acreditava na acrasia, na acrimónia, na acracia. Ó acrílico acrense. Ó acromata acrofóbico. Ó acre acrobata, acrólito na Acrópole.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Micronarrativa (43) O sonhador

José de Almada Negreiros, A sesta, 1939

Alguém, não se sabe onde, sonha-os exaustos pelos ritos nupciais, cansados da corveia devida ao deus do amor. Sonha-os dormindo, o sonhador e os sonhados, e estes não são mais que vestígios perdidos no campo tumultuoso daquele que, submetido ao império do sono, lavra o campo vazio da solidão.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

O Espírito da Terra (2)

Ribeiro Christino, A mata do Rôsso (Barqueiros – Douro), 1922
Entre a pedra rude, o viandante traça na terra a sua viagem. Com decidida demora, descobre a vida a brotar do recôndito mistério oculto sob o solo terroso. Deixa-se encadear pelos aromas selvagens e no reverberar da luz ouve a melodia dos seus passos ao caminharem para si mesmo. 

terça-feira, 17 de novembro de 2020

A viúva traída

Bruce Davidson, Widow of Montmartre. Paris, 1956
Há coisas que acontecem porque alguém se esqueceu de cumprir uma promessa ou honrar um pacto. Era assim que ela respondia quando a questionavam sobre a razão de se entregar ao álcool. Se lhe perguntavam quem a enganara, encolhia os ombros. Um dia prometeu-me a verdade, caso lhe levasse algumas garrafas de álcool. Levei. Então, lúcida, contou. Fora muito bela e casara com o homem mais belo que havia ao cimo da terra. Amava-o, perdidamente. A morte, porém, enciumada disputou-lho. Fez-lhe frente. A morte perguntou-lhe que condição punha para o deixar ir. Ela respondeu: Nenhuma, mas se o levas, não me deixes entre os vivos. De acordo, respondeu a morte. O meu marido morreu há trinta anos, disse, e a morte traiu o acordo que fizera comigo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

A Sarça Ardente - 49

Jesús María Cormán, 2.3 Richter Scale, 2001

A folha pálida da madrugada 
chega trazida 
pelo uivo virginal do vento. 

Pássaros sem nome desenham 
cornucópias invisíveis 
na névoa presa ao nascente. 

Alguém deixa cair um copo, 
e a praça ilumina-se 
no tilintar trepidante do vidro. 

Novembro de 2020