sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Histórias sem nexo 2. O oboísta

Pablo Picasso, Cabeza de hombre, 1909

Sob a oliveira ordenada a ocidente, o oboísta orou. Olhou o horizonte, compôs os óculos e esperou que o obituário sem horror lhe anunciasse o óbito. Morreu ao som do oboé.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 9

Gerardo Rueda, Encuentro, 1967

Falemos do caos
ou das carpas
mortas
na margem do rio.

Falemos da noite
ou das nuvens
esquecidas
na planície do céu.

Falemos do vazio
ou do vento
fatigado
no silêncio do coração.

Janeiro de 2020

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Micronarrativa (30) Perda

Constantine Manos, The Boston Symphony Orchestra. Boston, Massachusetts, 1958
Subitamente, ela voltou-se e os meus olhos foram tomados por uma sombra que ainda hoje me atormenta. O seu corpo, o seu rosto, os seus olhos, tudo o que ela era dançou diante de mim e, num turbilhão, foi-se dissolvendo até nada restar. Perdi o grande amor da minha vida na hora em que o encontrei.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Haikai urbano (53)

Jeanloup Sieff, Queen, London, 1964

Ó sombria sombra
vinda no vento da noite.
O silêncio chama-te.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Impressões 47. Destroços

Edward Weston, Wrecked Car, Crescent Beach, British Columbia, 1939
Aquilo que um dia animou o olhar e encheu o peito de uma vã glória é agora um destroço, uma amálgama feita de restos de matéria lacerados pelo tempo e os fios tenazes do esquecimento. Olhamos e o que vemos é, vinda do futuro, a imagem dos nossos mais pueris.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Meditação Breve (120) Equilíbrio

Robert Capa, American actor Gary Cooper. Sun Valley, Idaho, 1941
Aquele que procura o equilíbrio sonha com a justa medida. Nem um passo a mais nem a menos. Nem um excesso de inclinação à direita nem à esquerda. Assim, o corpo aprenda a realizar o sonho que se sonha no fundo de si, pois ninguém é outra coisa senão o cumprimento dum sonho, esse mistério obscuro que rumoreja nos interstícios daquilo que é.

sábado, 25 de janeiro de 2020

A Sarça Ardente - 8

Paul Klee, Blue-Bird-Pumpkin, 1939
Um pássaro canta.
E o sino
ressoa
na voz velada
da ave
no bater
bárbaro do bronze.

Dezembro de 2019

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Histórias sem nexo 1. O grumete

Albert Gleizes, Cabeça masculina, 1912-12
O grunho do grumete gritou. Alisou a gravata, pegou nos grampos e na grade de cerveja. Chegado à porta saiu para a Praça Grande. Ao avistar outro grumete grunhiu: ó que desgraça, desgruda do gradil antes que a grua te caia em cima. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Impressões 46. Confidências

Ed van der Elsken, Cafe Culture in Bohemian Paris, 1954
Dever-se-ia evitar as confidências durante uma refeição. Distraem-nos, deixam-nos perplexos e não matam a fome. Quanto mais confidências consumimos, maior é o desejo de escutá-las. Não há quem não tenha alma de confessor.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Haikai urbano (52)

Vilhelm Hammershoi, Montague Street in London, or Side View of the British Museum, 1905-06
Os dias de silêncio
no limiar do crepúsculo.
A cidade dorme.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Meditação Breve (119) Beleza

Sam Lévin, Ava Gardner in The Naked Maja, 1958
Nunca poderemos prescindir da beleza, pois ela é a presença da eternidade no tempo. O que se vê num ser humano belo não é a sua humanidade, mas o reflexo supra-humano que o tocou, transformando-o num símbolo. Talvez as pessoas belas sejam as mais infelizes, pois o amor por elas é um amor por aquilo que nelas, como num espelho, se reflecte.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A Sarça Ardente - 7

Helen Frankenthaler, Bambú en Nueva York, 1957

Sou um mendigo
perdido
na poeira da porta.

Espero-te.
O vento
leva-me o nome.

O resto da tua mesa
aguardo
na toalha bordada do chão.

Dezembro de 2019

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Haikai urbano (51)

Alfred Eisenstaedt, Mother and child in Hiroshima, Japan, December 1945
Olhares perdidos
nas ruínas de Hiroshima.
A mãe sonha o filho.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Impressões 45. Imagens reflectidas

Walter Sanders, Volkswagen, 1951
Imagens reflectidas na água são portas que levam a outros universos. Ao entrar por elas, o viajante apaga o universo de onde veio. Inocente e de olhar purificado começa uma nova existência como se tudo tivesse sido acabado de criar.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Meditação Breve (118) Segredo

Nina Leen, Macy’s department store detectives,1948
Todo aquela que investiga não gosta de ser investigado. Todo aquele que espia não gosta de ser espiado. Todo aquele que procura um rosto na multidão não gosta que o seu rosto se exponha. Quem procura desvendar segredos transforma-se ele mesmo num segredo.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Diálogos morais 31. O convite

Helmut Newton, Fashion photography, 1975
- Esperam-me.
- Desculpe, deve estar equivocada.
- Recebi o convite.
- Não enviei qualquer convite.
- Não foi você, foi...
- Essa sou eu e não convidei ninguém.
- Você, nessas roupas?
- Se não lhe agradam, posso vestir outras, mas não a convidei.

domingo, 5 de janeiro de 2020

A Sarça Ardente - 6

Lucio Muñoz, 8-86, 1986

As palmeiras mortas
desenham
uma rota de ruínas.

Nelas poisam gaivotas
exaustas
do ondular do oceano.

Ao longe, dunas erguem
muros de areia,
sombra e solidão.

Dezembro de 2019

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O colar de pérolas

Frank Eugene, The Pearl Necklace, 1900s
Quando a vi retirar o colar de pérolas não imaginei o que viria a seguir. A confiança que temos na realização dos desejos cega-nos. Os sinais estiveram sempre lá, mas os olhos ou a razão, o que é a mesma coisa, foram incapazes de os ler. No gesto dela não havia qualquer pathos, nem estava diferente dos outros dias. Quando me viu, sorriu e cumprimentou-me como habitualmente. Estava esplêndida e era o centro do grupo. Sentou-se. Nos seus olhos havia um brilho que pensei ser de alegria. Olhou a sala. Observava-a arrebatado. Ela ergueu os braços, retirou o colar e olhou longamente para ele, como se o contemplasse. Por fim, levantou os olhos e disse sem tremor não haverá casamento.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Haikai do Viandante (385)

Pedro Cabrita Reis, A linha do mar, 2019 (foto da CM de Matosinhos)
A linha do mar,
onda de espuma e ferro.
Silêncios de Inverno.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Impressões 44. Em procissão

Père Daura, Multitud en processó
Movem-se rasgando o espaço, criam uma onda animada pela expectativa, desenham uma serpente que desliza pelas ruas. Aos ombros, levam andores onde depositaram os males e as esperanças. Na boca, um murmúrio confunde-se com o ressoar do vento no fundo de uma caverna.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Micronarrativa (29) O crime da rua esquecida

Josef Sudek, Forgotten street, 1930
Ali era o lugar onde o crime deveria acontecer. Rua de casas sombrias com janelas escuras, de onde se espera ver assomar gente taciturna, sobrolho carregado, indisposta com o mundo. Quando chegou a hora, assassino e vítima esqueceram-se do lugar que os esperava e a bala que deveria abater o condenado nunca chegou a sair do revólver do carrasco. 

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

A Sarça Ardente - 5

Claude Monet, Playa de Sainte-Adresse, 1867

O barco balança
no âmbar
das águas.

Ecoam gritos,
sereias
pela praia.

O sol declina
no latido
salgado da sombra.

Dezembro de 2019

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Diálogos morais 30. O lugar

Meister der Palastkapelle in Palermo, Mosaiken der Capella Palatina in Palermo, Szene - Christi Geburt, c. 1150
- Será possível que tenha sido assim?
- Assim, o quê?
- A encarnação de Deus, o Menino ter vindo ao mundo num estábulo.
- Em que outro lugar poderia ser?
- Não sei, mas logo num sítios desses, com um burro e uma vaca a assistir. Não é possível.
- Se não foi, é bom que daqui para o futuro seja sempre assim.

domingo, 22 de dezembro de 2019

Meditação Breve (117) Lugares

Brett Weston, Pines in Fog, Monterey, California, 1962
Também a natureza ama o segredo e o enigma e gosta de confundir o olhar de quem julga que tudo pode ver claramente visto. Sobre o labirinto da floresta lança mantos de névoa e os homens, ao aproximarem-se, sentem no coração que no mundo há lugares onde o mistério se abre aos sentidos e os chama sem lhes pronunciar o nome.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Haikai do Viandante (384)

George Wesley Bellows, Rain on the river, 1908
Despede-se o Outono
em rajadas de água gélida.
No chão folhas mortas.

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Micronarrativa (28) A mulher da sombra

Eugene Robert Richee, Marlene Dietrich, not dated
A sombra nascia-lhe dentro dos olhos e saía num fluir lento para o mundo. As luzes apagavam-se e não havia quem não quisesse ser iluminado pela noite que naquele olhar nascia. Quando ela cerrava as pálpebras, o dia acordava e a noite escondia-se no ermo do seu coração.

domingo, 15 de dezembro de 2019

A Sarça Ardente - 4

Kees Scherer, Paris

Um ruído rompe
a noite.

Perturbado
o coração
pulsa ao vento,
poisa no vazio.

Espera o sinal
soletrado
no silvo do silêncio.

Dezembro de 2019

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

O sal do silêncio (33)

Deborah Turbeville, Krakow - W Magazine, Cantor Theater, Poland, 1997
Chega de súbito esse momento, cujo nome nunca nos é revelado. A vida suspende-se, os gestos permanecem inacabados e o silêncio arrasta para a eternidade aquilo que fora feito para se extinguir  sem rasto na teia do tempo.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Impressões 43. Uma árvore

Bill Brandt, Deserted Street in Bloomsbury, 1942
Se houvesse uma árvore para vibrar sob os golpes do vento ou para nela um pássaro poisar, menos deserta seria a rua e o silêncio teria ramos e folhas verdes para o acolher quando, em sobressalto, sobre a noite caísse.

domingo, 8 de dezembro de 2019

A mulher perdida

Diane Arbus, Woman at a counter smoking, NYC, 1962
Sentava-se ao balcão, pedia uma bebida e ficava ali. Olhava em frente, para qualquer coisa que só ela via. Depois, levantava-se e saía. A princípio não estranhei. Com o passar do tempo, comecei a esperar por ela. Se se atrasava, ficava ansioso. Não, não estava apaixonado, mas aquela presença dava sentido à minha vida. Disseram-me que tinha perdido tudo. Registei a informação. Um dia, ganhei coragem, e abordei-a. Ouvi dizer que perdeu tudo, disse-lhe. Olhou-me e uma sombra velou-me o olhar. Sim, perdi tudo. Perdi-me de mim e não sei quem sou. Esqueça-me. Porquê? Para que lhe serviria uma mulher que não sabe quem é? E se soubesse quem era servir-me-ia para quê?