quarta-feira, 26 de julho de 2017

Vida espiritual (2)

Erik Petersen, Copenhagen, 1940-1945

É surpreendente o que a fotografia tem para nos ensinar sobre a vida espiritual. Como no post de ontem, também aqui é acentuada de forma deliberada uma certa qualidade inerente a qualquer fotografia. O que nos é dado a ver, pela escolha de um ângulo inabitual, é que toda a fotografia é perspectivística. Ora não é apenas o olhar que é perspectivístico. Qualquer actividade espiritual do homem implica sempre esse perspectivismo, essa negação de uma apreensão absoluta e de uma posição absoluta. A vida espiritual começa com a compreensão de que o caminho é singular, deliberadamente singular, e um processo de construção de uma singularidade. Aquela que somos.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Vida espiritual

Rodney Smith - Skyline, New York, 1992

O que nos ensina esta fotografia sobre a vida do espírito? Para o percebermos é necessário compreender o que ela faz. Toda a fotografia é um corte no tempo, um momento que foi subtraído ao fluxo da duração. Ao olhar a fotografia, percebe-se de imediato que os figurantes estão a encenar esse momento excluído do decurso da temporalidade. Aquilo que qualquer fotografia faz espontaneamente esta fá-lo deliberadamente, como se retornasse sobre si mesma e transformasse a inocência original e espontânea numa virtude adquirida por um longo exercício de ascese. A vida espiritual é essa ascese para tornar deliberado aquilo que um dia foi espontâneo.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Haikai do Viandante (328)

Kees Scherer, Cannes, 1954-1959

o mar de agosto
envolto em areia e espuma
sol e solidão

domingo, 23 de julho de 2017

As Cárites

Sarah Moon - Invite, front (1977)

Sei, claro, o nome delas, mas isso servir-lhe-ia de alguma coisa? Contemple-as, apenas. Houve um tempo em que as viam nuas e entregues à dança. Pode ser que tenham vivido assim, mas também pode ser que isso fosse apenas o desejo de quem julgou vê-las. Hoje, porém, são circunspectas. Uma, inquiridora, olha o mundo como se quisesse interrogá-lo para descobrir algum crime. As outras olham para dentro de si mesmas. O que procuram? Diz-se que elas traziam a alegria, a claridade e o florescimento ao mundo. Talvez procurem esse mundo que se perdeu ou queiram apenas que as esqueçamos no esquecimento que os nossos dias sobre elas fizeram cair.

sábado, 22 de julho de 2017

Poemas do Viandante (639)

Eugène Leroy - Le Petit Arbre (1971)

639. a árvore irrompe da terra

a árvore irrompe da terra
lança os ramos
sobre o ruído
da floresta
e aguarda
a queda dos frutos
no sobressalto
das folhas
escritas
pela mão do abandono

(12/12/2016)

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Modelos

Deborah Turbeville - From the Valentino Collection, 1977

A moda é impensável sem os modelos e os desfiles que estes protagonizam. Tudo isto está intimamente ligado à transitoriedade. Dura uma estação e torna-se de imediato passado, pois qualquer coisa de novo está a irromper e a abrir a clareira da próxima colecção. Os fogos de artifício que rodeiam o fenómeno ocultam, contudo, a presença da eternidade no transitório de uma roupa. Mais do que manequins, suportes de vestuário ou calçado, os modelos são arquétipos espirituais, uma espécie de ideias platónicas, eternas e imutáveis, de cuja natureza os mortais pretendem participar. Vestidos ou sapatos não são objectos utilitários, mas o elemento metafísico que estabelece essa participação. 

quinta-feira, 20 de julho de 2017

O anjo da juventude

Chris Killip - Youth on Wall, Jarrow, Tyneside, 1976

Ao ver o murete, sentou-se e encostou o dorso à parede. Então flectiu as pernas e apoiou nelas as mãos, e nestas descansou o rosto. Vinha de longe, foi o que pensei. Tal era o ar exausto e a angústia que tentava ocultar. Por vezes, erguia a cabeça e perscrutava a rua, mas logo perdia o interesse e voltava-se para a dor que o animava. O que lhe aconteceu? É isso que quer saber? O que me disseram eu não o vi. Não o posso assegurar, apesar da fonte ser credível. Levantou-se e nas costas abriram-se duas asas. Voou para longe. Era um anjo, asseveraram-me sem se rirem, o anjo caído da juventude.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Haikai urbano (17)

Berenice Abbott - Nightview, New York, 1932

montanhas de luz
na invernia da noite
cidade sem sono

terça-feira, 18 de julho de 2017

Meditação breve (36) - Ruínas

Edward Weston - Meraux Plantation House, Louisiana, 1941

A tentação, ao olhar uma ruína, é ver ali a acção do tempo. Isso, porém, não passa de uma compensação e de um gesto de auto-indulgência da espécie humana. A ruína é a manifestação da incúria com que os homens lidam com aquilo que os envolve. Onde emerge uma ruína há um dedo acusatório apontado na nossa direcção.

domingo, 16 de julho de 2017

Poemas do Viandante (638)

Kuno Küster - Metamorfosis o, los cuatro administradores de la felicidad... (1993-94)

638. um violino desliza

um violino desliza
no breu do céu
sangra
na ferida
                supurada
glissandi
                de dor
                               e
arpeggios
                d’ira

(11/12/2016)

Meditação breve (35) - Sombras

Rodney Smith - Gary Descending Stairs, 1995

O sentimento de realidade e de solidez que ostentamos talvez seja apenas uma ilusão do nosso desejo. No lugar de vermos a sombra que somos, projectamo-nos como objectos reais dotados de existência. Até ao dia em que a ilusão se dissipa como a sombra se dissipa na ausência de luz.

sábado, 15 de julho de 2017

Uma bela mulher

Sergio Larraín - London (1959)

Pode dizer que ela era uma delas. Vinha ali algumas vezes por semana. Eu via-a da minha janela. Chegava e as aves envolviam-na, pousavam-lhe nos ombros, esvoaçavam sem inquietação em torno dela. Uma bela mulher. Não se pode dizer que falasse com os pássaros. Cantava e isso era tudo. A sua voz de contralto apaziguava-os. Quando se calava, as aves voavam para longe e ela ia-se embora. Ontem veio como das outras vezes, cantou a mesma ária de sempre, só que as aves em vez de a rodearem, mantiveram-se em bando bem acima dela. Então, ela começou a esbracejar e, pode crer, ergueu-se da terra e foi ao seu encontro. Desapareceram no horizonte.

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Haikai do Viandante (327)

Hiroshi Sugitomo - Ligurian Sea, near Saviore, 1993

do céu o silêncio
cai sobre o mover das águas
névoas de verão

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Desdobrar-se

Carel Blazer - Double print, portrait, 1932 

O desejo de se desdobrar é uma revolta contra os limites da condição humana. O corpo impõe-nos a unidade, mas o espírito é múltiplo e incansável na processo de diferenciação. Jamais está apaziguado com a unidade que a materialidade do corpo lhe impõe. Por isso, inventa continuamente novas e novas formas de se tornar outro, de se tornar múltiplo, de ser muitos apesar de possuir apenas um só corpo. Se o corpo lhe impõe que se dobre, ele, o espírito, responde desdobrando-se.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Poemas do Viandante (637)

Kuno Küster - Deserto do silêncio

637. no deserto do silêncio

no deserto do silêncio
desejo a
sílica do olhar
e oiço
o sulco suave
das mãos
soltas
na névoa negra
das noites de novembro

(11/12/2016)

terça-feira, 11 de julho de 2017

O acrobata

Marino Marini - Acrobats (1960)

Pensamos as acrobacias como exercícios de equilíbrio fundados na destreza, agilidade, força e risco. Vale, porém, a pena fazer a arqueologia da palavra. Descobrimos a sua origem no vocábulo grego akróbatos, aquele que anda em bicos dos pés. Há uma certa continuidade de ideia. Andar em bicos dos pés implica equilíbrio. A destreza física do equilibrar-se acaba, todavia, por nos esconder o desejo que se esconde nessa estranha forma de andar. Tem duas características. Por um lado, é uma diminuição da base de apoio do homem, diminuindo o contacto do corpo com a terra. Por outro, é um elevar-se em direcção ao céu. Na essência da acrobacia há, deste modo, um desejo de elevação e de superação da condição terrestre do homem.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Eclipse

Mario Sironi - L'eclisse (1942)

Oiço-a gritar, chamar por mim, dizer coisas que nunca julguei ouvir, mas não a vejo. De um momento para outro deixei de a ver. Se eu a conhecia? Não sei. O facto de ter casado com ela há 20 anos não prova nada. Nós julgamos que conhecemos alguém, mas isso não passa de uma presunção. O surpreendente é que quando a via, quando o seu corpo estava perante os meus olhos, nunca a ouvi gritar ou dizer o que quer que fosse de desagradável. Até que um dia alguma coisa se interpôs entre nós. Tem toda a razão. Um eclipse, um verdadeiro eclipse. Deixei de a ver. Quanto menos visível, mais audível se torna a sua voz. Enlouqueço.

domingo, 9 de julho de 2017

Haikai urbano (16)

Fred Stein - Cobblestones, Paris (1936)

a calçada cresce
sobre o mistério da terra
rua sem raízes

sábado, 8 de julho de 2017

Meditação breve (34) - A espera

Otto Ehrhardt - Waiting (1929)

Toda a espera nasce de uma desadequação perante o presente. Este tornou-se tão insuportável que se é levado a tomar a espera como o momento que antecede a redenção que o futuro trará.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Poemas do Viandante (636)

Modest Cuixart - Boscatge de Varignon (1994)

636. incendeia-se a floresta

incendeia-se a floresta
de vidro
presa na variz
do vento
suada pelo murmúrio
do fogo
adormecida no grito
de um pássaro
de asas de sangue
e folhas como penas a arder

(11/12/2016)

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Noites de Verão

Winslow Homer - Summer Night (1890)

Ao pensar-se em noites de Verão, o pensamento, de imediato, é conduzido à ideia de sonho. Certamente, a peça de Shakespeare - Sonhos de uma Noite de Verão - terá, nessa associação, um papel. No entanto, sempre se pode especular que o nome da peça seja já o resultado de uma experiência primordial da humanidade, muito anterior ao dramaturgo inglês, experiência que liga as noites de Verão ao sonho. Essa ligação é feita através do desejo. A combinação da temperatura cálida e da noite torna-se um poderoso estimulante do desejo. O sonho nasce então desse desejo que perdeu as amarras que a luz e o frio sobre ele faziam cair.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

A sombra

Toni Schneiders - Shadow (1956)

Também eu pensava assim. Temos dificuldade em libertarmo-nos do que aprendemos. Sabida uma coisa, ela torna-se um hábito e este é uma segunda natureza. Durante muitos anos sempre pensei a sombra como um espaço privado de luz devido à interposição de um obstáculo opaco. A tradição ensinava-o e a experiência confirmava-o. Uma dia, porém, vi a minha própria sombra a pairar entre mim e a fonte de luz. Não era possível, mas ela ali estava contra todas as probabilidades. Olhei-a durante muito tempo, até que percebi que ela era apenas a projecção dos meus pensamentos. Nessa altura dissolveu-se, mas volta todos os anos no dia do meu aniversário. 

terça-feira, 4 de julho de 2017

Construtores de pontes

William H. Fox Talbot - Suspension Bridge, Rouen (1846)

Na vida espiritual do homem - seja em que área for - a construção de pontes tem um lugar central. É certo que as diversas artes, no século XX, tentaram eximir-se a esse papel, encerrando-se muitas vezes em si mesmas, erguendo muros que as preservassem do contacto com o outro. Esse encerramento, porém, leva-as ao estiolamento. O espírito - onde se inclui o que anima as artes - é mediação, experiência da alteridade, ruptura com o idêntico e com a clausura. É por isso que todo o homem de espírito é um pontífice, um construtor de pontes.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

A outra viagem

Gustave le Gray - Le Havre, Bateaux quittant le port (1856)

Deixar o porto, fazer-se ao mar para, depois e após múltiplas escalas, voltar a esse mesmo porto. Assim, como um partir e um retornar mediados pelo viajar, podemos resumir a viagem física dos homens. Será diferente a viagem do espírito? Não será, por exemplo, a peregrinação uma viagem espiritual em tudo idêntica àquela que foi descrita? Sim, mas nem toda a peregrinação ou nem toda a viagem espiritual implica sair de onde se está fisicamente. O essencial da viagem não está em deslocar-se no espaço mas em transformar-se continuamente. A viagem espiritual - essa outra e mais decisiva viagem - é uma metamorfose, onde aquele que se transforma é ao mesmo tempo o porto de onde sai, o caminho que faz e o porto aonde regressa como sendo, ao mesmo tempo, o mesmo e já definitivamente outro.

domingo, 2 de julho de 2017

Haikai do Viandante (326)

Caspar David Friedrich - Summer Landscape with a Dead Oak Tree (1805)

um velho carvalho
morre ao sol de verão
sopra o silêncio

sábado, 1 de julho de 2017

Poemas do Viandante (635)

George Blacklock - Blue Pieta (1998)

635. ó blue pietà tão pura

ó blue pietà tão pura
e tão dorida
quanto do teu azul
são lágrimas
de portugal
para te bebermos
quanta água
correu na
                matermatriz
das mil noivas
                tão virgens
tão noivas 
                tão por casar

(11/12/2016)

quinta-feira, 29 de junho de 2017

A espera

Fred Stein - Three Chairs, Paris (1937)

Ainda hoje não creio no que me contaram quando vi, pela primeira vez, as cadeiras vazias. Não seriam eternas, entenda-se, mas durariam tanto quanto a própria humanidade. É difícil de aceitar. Também eu nunca vi ali ninguém sentado. Disseram-me, sem me abalarem o cepticismo, que nelas repousaram Tália, Eufrosina e Aglaia, as três Graças dos antigos gregos. Mais tarde foram o lugar da Fé, da Esperança e da Caridade. Sei pouco de teologia e de mitologia para lhe responder se as Graças e as Virtudes Teologais não seriam a mesma coisa olhadas com outros olhos. Talvez. O que sei é o que vejo e o que vejo é que as cadeiras estão vazias. Esperam.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Meditação breve (33) - O céu estrelado

H. Hirsch - Girl, gazing to the stars (1880)

Olhar as estrelas é a grande experiência humana do confronto com o incomensurável, com o infinto. Este confronto com o desmesurado não nos indica apenas a nossa finitude. Dá-nos a dimensão do desejo que nos habita.

terça-feira, 27 de junho de 2017

A visão pura

Jing Huang - Pure Sight

O olhar sempre me fascinou. Não porque ele permitia discernir uma quantidade sem fim de coisas e de pormenores. Não, pelo contrário. O seu fascínio resultava da frustração, pode crer. Era impossível que, ao olhar fosse o que fosse, não se intrometesse uma espécie de ruído. Claro que treinem longamente os olhos, mas nunca conseguia evitar surpresas. A visão pura foi o graal da minha vida. Encontrei-o? É isso que deseja saber? Foi por acaso. Um dia, estando a olhar o horizonte em busca desse ver puro, fechei os olhos. Talvez estivesse cansado, e persisti nesse fechamento. De súbito, compreendi, tinha encontrado o graal, a visão pura. O que vi de olhos fechados? Nada. Descobri que não havia nada para ver.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

Poemas do Viandante (634)

Lee Krasner - Between Two Appearances (1981)

634. de aparência em aparência

de aparência em aparência
visto o avental
de loucura
e componho a gravata
em torno da perfídia
do pescoço
se a voz vozeia
aperto o nó
e espero sentado
o grande veleiro do silêncio

(11/12/2016)