sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Das redes de comunicação

Ernst Haas - Communication, Nevada (1962)

Vivemos na era das redes e da comunicação. O fascínio de comunicar com o longínquo raramente deixar perceber a dimensão global do processo. E o outro lado do processo é o evitar que o longínquo se torne o próximo. As redes comunicacionais, ao mesmo tempo que estabelecem conexões, estruturam distâncias e aniquilam formas de comunhão. As redes, ao intensificarem a comunicação, aniquilam o espírito que só a comunhão pode fazer nascer.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Nuvens

Edward Weston - Clouds (1936)

As nuvens possuem a particularidade de unir nelas um conjunto de contrários. Umas sugerem um ambiente pesado; outras, a leveza. Umas tornam o horizonte escuro; outras trazem com elas a claridade. Umas são sentidas como ameaçadoras; outras, benfazejas. O que nunca pensamos é que elas são a imagem, a nossa imagem, que o céu nos devolve. Ao olharmos as nuvens, através das metáforas usadas no jogo pueril da sua classificação, é a nós mesmos que encontramos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (270)

Henri Edmond Cross - Arbres au bord de la mer (1906-7)

água azul e céu
guardam as velhas árvores
silêncio no mar

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Um problema de compreensão

Paul Ackerman - Dis-mois, compreds-tu quelque chose

A preocupação com a compreensão do mundo, com aquilo que se passa fora de nós, funda-se na crença ingénua de que o objecto da compreensão é transparente e acessível em si mesmo. A compreensão do mundo, porém, assenta na compreensão de nós mesmos. Aquilo que compreendemos no mundo exterior não é apenas mediado pela nossa auto-compreensão. É uma projecção dessa mesma auto-compreensão. Aquilo que eu vejo no mundo diz mais sobre mim do que sobre o mundo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O cair da noite

Giovanni Segantini - Landscape with Horses and Peasant Boy

O rapaz fez entrar os cavalos num pequeno lago para que matassem a sede. Olhou as águas e viu o reflexo dos animais. O sol ainda iluminava o campo, embora uma sombra avançasse rapidamente, galgando a floresta em perseguição do astro que, debilitado, se retirava para além do horizonte, como se um medo antigo o movesse. O rapaz estremeceu. Este jogo entre a luz e a sombra levou-o a procurar, nas águas, o seu reflexo. Via a imagem dos cavalos. Da sua não havia rasto. Perplexo, olhou o horizonte em busca do Sol. Do seu corpo começou a soltar-se um véu pesado e negro, um manto que caiu sobre a terra. Os cavalos diluíram-se, o campo desaparecera, a água secara no pequeno lago. Onde ele chegava, a noite caía.

domingo, 31 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (523)

Giacomo Balla - Abstract Speed - The Car has Passed (1913)

523. Veloz, um carro

Veloz, um carro
passou.
E ao passar,
o céu da manhã
ergueu-se
em ondas de azul
sobre o verde
da floresta.

sábado, 30 de janeiro de 2016

Uma brecha

Hermen Anglada-Camarasa - Interior de Teatro (1898)

O teatro funciona como um espelho da vida social. Como esta, o teatro é uma representação. A vida do espírito, porém, é a insurgência contra a representação. Tudo nela está direccionado para romper com o representar, para que aquilo que é efectivo e real se torne presente. No lugar da representação, a vida do espírito abre uma brecha para a presença.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (269)

Caspar David Friedrich - Cape Arkona at Sunrise (1803)

esta luz dourada
anuncia o amanhecer
fogo no horizonte

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Olhar de cima

Eric Vali - Himalaias

Para que serve uma vida se ela não for a superação de si? Erguer-se acima da pura animalidade. Não se trata de subir na escala social, pois o social é ainda e apenas essa animalidade confortada pela presença especular dos outros animais. Trata-se de subir a montanha, a mais difícil das montanhas, aquela que permite olhar de cima para as ilusões que nos prendem ao animal timorato e vaidoso que somos. A cada um o seu Himalaia.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Do espírito da guerra

Umberto Boccioni - Carga de Lanceiros (1914-15)

Nunca se pensa suficientemente a guerra. Recusamo-nos a ver nela uma manifestação do espírito. Na verdade, porém, a guerra é uma poderosa eclosão do espírito, aquela onde a ligação com a morte se manifesta na sua crueza. Toda a vida espiritual é, na sua essência, um exercício de aprender a morrer e a estar morto, como dizia Platão acerca da filosofia. Isto não legitima a guerra e a morte que ela traz consigo. A guerra manifesta poderosamente a vida espiritual, é certo, mas numa perspectiva patológica. Quando a massa dos homens se recusa aprender a morrer que a vida do espírito traz consigo, essa necessidade reprimida é transferida massivamente para o conflito bélico e incendeia o mundo.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Poemas do Viandante (522)

Benvenuto Benvenuti - Alba in padule (1926)

522. A noite abre-se para

A noite abre-se para
o dia irromper
sobre as águas
do pântano
que paradas
acolhem 
as primeira sombras
trazidas pela ave
que canta
na madrugada.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Aprender a anoitecer

Vincent Van Gogh - Anoitecer (1889)

Aprender a anoitecer. O viandante traz em si demasiada luz e a viagem não é mais que um aprender a fazer noite em si mesmo. Aquele que aprendeu a anoitecer esqueceu-se de si e, abandonando-se ao vento que sopra onde quer, extinguiu a sua luz, para que uma outra Luz possa brilhar nas trevas.

domingo, 24 de janeiro de 2016

Sete da manhã

Edward Hopper - Sete da manhã (1948)

São sete da manhã. Vejo-o no relógio esquecido na montra. Está ainda tudo fechado. As lojas, as casas, mesmo o dia ainda continua coberto pelo véu da noite. São sete da manhã e ainda não descobri onde estou ou para onde vou. Oiço os meus passos no silêncio. Ao longe passam carros, gente que tem um destino, um lugar que os espera. Volto à montra e olho o relógio. Como há pouco, como há duas ou há três horas, continuam a ser sete da manhã. No vidro, vejo o meu reflexo. A barba por fazer, o cabelo em desalinho, a camisa aberta, as calças rasgadas. Afasto-me horrorizado. Dou uns passos para o lado, para fugir ao reflexo do vidro e olho de viés. Lá está a minha imagem. Presa no vidro, presa nas sete da manhã.

sábado, 23 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (268)

Salvador Dali - Cala Nans adornada de cipreses (1921)

os velhos ciprestes
sombreiam as águas do mar
neptuno adormece

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 15

Josep Cusachs i Cusachs - Desnudo femenino

15. Deixo os meus dedos

Deixo os meus dedos
correr em teu corpo.
Deixo os meus olhos
morrer em tua pele.
E tudo o que quero
arde nesse ventre,
arde na tua boca
onde sopra o vento.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ídolos e idolatrias

Concetto Pozatti - ...e il popolo fa un vitel d'oro di getto e lo adora (1963)

Um dos traços característicos dos nossos dias é a enorme propensão para a idolatria, para a transformação de qualquer coisa num bezerro de ouro, ao qual se presta, com sofreguidão e histeria, tributo e adoração. Esta propensão é acentuada por um renascimento do politeísmo. A multidão não se contenta com um ídolo. Ela precisa, na sua angústia e desespero, de uma manada de bezerros de ouro. A vida espiritual, contudo, é a diluição dos ídolos e o abandono de qualquer idolatria, a começar pela idolatria de si mesmo, o mais venerado dos bezerros de ouro. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Rituais de Fevereiro

Joaquín Vancells i Vieta - Fevereiro, paisagem (1891)

Espero, espero que Fevereiro chegue. Ainda haverá frio. Sim, frio e chuva, as árvores despidas. Poderei fazer uma cama de folhas húmidas e deitar-me. O frio que fará! A humidade entrará na minha carne, nos meus ossos, e eu serei fria e húmida como o Inverno. Espero. Sim, quando chegar Fevereiro, entrarei na floresta. Despir-me-ei e nua esperarei a vinda, a vinda... Fará frio e os animais olhar-me-ão com medo. Uma folha cairá sobre mim, quando a luz da tarde começar a declinar. Estremeço, se penso na noite que há-de vir. Estremeço e sinto já a lua a descer sobre o meu corpo indefeso e penetrar-me célula a célula. Estremeço, na luz fria e húmida em que me tornarei. Fevereiro chegará.

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Perder a figura

Albert Gleizes - Transfiguração (1943)

Se se pensar a vida espiritual como transfiguração, não basta pensar esta como uma mudança de figura, como a aquisição de novas configurações. É preciso pensá-la na sua radicalidade semântica, como um ir para além de qualquer figura, como um perder a figura. A vida do espírito é um caminho para além de toda e qualquer figuração.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Como uma orquestra

Paul Ackerman - A Orquestra

Da ideia moderna de orquestra pode-se retirar uma poderosa analogia da vida espiritual. Na verdade, olhada desta perspectiva, a vida pode ser encarada como um contínuo ensaio de orquestra, onde um maestro desconhecido tenta conjugar os vários naipes de instrumentos, os poderes do corpo, os anseios da alma e as faculdades do espírito, para que o indivíduo, na sua singularidade, se descubra como pura harmonia.

domingo, 17 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (267)

Camille Pissarro - Morning, Sunshine Effect Winter (1895)

manhãs de inverno
chegam numa luz difusa
neve frio brancura

sábado, 16 de janeiro de 2016

Esperam por nós

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Esperam por nós, disse ela e calou-se. Ele olhou-a. Havia naquele olhar perplexidade e perturbação. Hesitou, mas deixou escapar: quem espera por nós? Ela emudeceu e os olhos prenderem-se na areia molhada. Com um dedo, desenhou grandes veleiros e sob eles um mar violento e sombrio. O vento soprou em rajada vinda do norte. Tiveram ambos frios, mas evitaram aquecer-se nos olhos um do outro. Quem espera por nós? Ela desenhou um sol sobre a agitação marítima e uma bandeira no mastro de cada barco. Uma onda de calor desceu sobre eles. Em sussurro, ela exclamou: eles, eles esperam por nós. Se não vieres, perdes-me. Ele deitou-se na areia. Então, ela entrou no mar que desenhara. Um barco esperava-a perto da rebentação.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Sobre as ondas

Edvard Munch - A onda (1921)

Submergir-me completamente na onda, deixar-me ir e vir ao sabor da força das águas, ser não eu mas a água empurrada pelo vento, abandonar-me ao acontecimento no pleno esquecimento de mim. Eram estes pensamentos que o tomavam de assalto quando, sentado na areia, olhava o mar batido pelo sol da tarde. Por vezes, sobressaltava-se. O grasnar de um pássaro, o rumor de um papel arrastado pelo vento. Perante o mar, tudo se tornava tão claro. Estava na fronteira, fascinado, preso a uma voz antiga. Uma gaivota poisou ao seu lado. Olhou-a. Olharam-se. Lentamente, sentiu que ela entrava nos seus olhos. Respirou ofegante. As ondas, o mar, o vento do crepúsculo, tudo se tornara mais nítido. Sentiu um tremor nos braços, uma ondulação no corpo, e olhou. Voava sobre o mar. Ao longe, o sol esperava por ele. Estava salvo.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fogos de artifício

A vida quotidiana é um exercício contínuo de fogos de artifício. Ansioso por provar a sua própria existência, o ego é incapaz de se conter e, sempre que tem um público, entrega-se à produção do mais vivo espectáculo de fogo de artifício. A vida do espírito, contudo, começa no momento em que se decide pôr de lado o fogo de artifício e se inicia a procura do fogo que arde sem se ver.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Poemas para Afrodite (segunda série) 14

Pablo Picasso - A bela holandesa (1905)

14. Assim tão despida

Assim tão despida,
tão exposta ao vento,
esperas a mão
que te abra o corpo
ao furor secreto
de um sentimento.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

O infinito da vida

Frantisek Kupka - O princípio da vida

Sim, todos sabemos que a vida - a vida biológica - tem um princípio, um começo. Se pensarmos, todavia, a vida tal como ela se revela no homem, facilmente somos seduzidos pela ideia de que ela, a vida, não tem princípio nem fim. E é esta sedução pelo infinito da vida que se torna símbolo e é deste símbolo que toda a vida espiritual, nas suas múltiplas dimensões, é exegese e realização.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Idas e vindas

Paul Gauguin - Idas e vindas (1887)

A viagem espiritual é composta de muitas idas e vindas. Seria uma ilusão pensar que a vinda marca um retorno ao mesmo. A vinda contém em si a ida e aquilo que o viandante, ao voltar, encontra - em si mesmo e no lugar a que retorna -  não é o mesmo que tinha à partida. É sempre um outro que retorna e o lugar também é já outro. Por vezes, diz-se que um dado escritor escreve sempre o mesmo livro, mas isso é um equívoco. Cada vez é um escritor novo que o escreve. Foi e voltou, mas já não era o mesmo que o escreveu, mesmo que o livro fosse palavra a palavra, letra a letra, semelhante ao anterior. E mesmo uma obra nestas condições seria já uma outra obra. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

A promessa da repetição

Oskar Laske - River Landscape (1944)

Heraclito constata que não nos podemos banhar duas vezes nas águas do mesmo rio, pois estas estão em constante renovação. Esta constatação de uma impossibilidade esconde, porém, uma pergunta mais decisiva: se pudéssemos, deveríamos querer mergulhar duas vezes nas mesmas águas? Será que a vontade quer a repetição ou o inédito? A viagem do espírito - seja qual for o caminho escolhido, a arte, a religião, o pensamento - é sempre marcada por esta questão. Ela é a luta contra o fascínio que a promessa da repetição, apesar de impossível de cumprir, traz consigo.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Haikai do Viandante (266)

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

as ervas cresceram
nas terras abandonadas
vento e solidão

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Do valor do caminho

Juan Miró - Ciurana, The Path (1917)

Pensa-se sempre o caminho como aquilo que liga dois pontos, o de partida e o de chegada. Se eliminarmos tanto a partida como a chegada, o caminho, que tinha um mero valor instrumental, toma um valor intrínseco. O caminho vale por si mesmo, pelo facto de ser feito ao caminhar. Independentemente do ponto de onde se partiu e do ponto a que se chegou, se é que se partiu de algum lado e se chegou a outro.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Da ausência e da presença

Hermen Anglada-Camarasa - O palco (1901-02)

O palco é um poderoso símbolo da natureza da vida pública. No palco, os actores representam para uma plateia. Em analogia, também as pessoas, na esfera pública, representam para uma plateia, mais ou menos indefinida. O sentido último deste estar perante os outros é o de transformar aquilo que é uma presença numa representação. Representar significa que o representado não está presente, que se torna ausente. Assim, a vida pública - seja em que grau for - é o processo pelo qual aquele que está presente se torna ausenta. A vida espiritual é o processo contrário: é a viagem que parte da representação e da ausência, que lhe é inerente, para procurar alcançar a pura presença.