terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Da condição humana

Odilon Redon - O prisioneiro

Todos as pessoas nascem livres e iguais... Assim começa a declaração dos direitos do homem. Talvez fosse mais ajustado dizer Todas as pessoas nascem igualmente prisioneiras. O que se ganharia com isso? Trocar-se-ia uma liberdade dada como um facto, por um processo de libertação. A vida espiritual não é outra coisa senão o processo pelo qual o espírito quebra as cadeias que herdámos ao nascer. A liberdade não é um facto, mas um acto onde o homem, pela vida espiritual, se liberta da servidão - a dura necessidade imposta pelo corpo - que o nascer traz consigo.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Poemas do Viandante (521)

Amadeo de Souza Cardoso - Composição Abstracta - Estudo B (1913)

521. Círculos, cores abstracções

Círculos, cores, abstracções.
Com eles componho um mundo, 
invento cidades e desertos,
traço mesmo um barco
a naufragar no mar sem fundo.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Música e literatura

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O que distingue a música da literatura? Na música, o espírito infinito e intemporal entra no tempo e derrama-se sobre os homens, iluminando-os através do som. Na literatura, o espírito finito e temporal narra a sua errância no espaço e no tempo. Por vezes, fala da nostalgia daquilo que está para além da finitude e da temporalidade, mas a literatura é sempre física, enquanto a música é uma metafísica em acto.

sábado, 12 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (261)

Vincent Van Gogh - Campo de trigo com ciprestes (1889)

o trigo ondula
sob a sombra dos ciprestes
silêncio nos céus

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Música e vento

James Abbott McNeill Whistler - At the piano (1858-59)

Os dedos, os dedos dela são tão leves, folhas que caem sobre a água. Levantarei, também eu, voo um dia? Vestida de negro, ela vem e poisa diante do piano Depois, o tempo pára e a música vem até mim, entra-me pelos olhos e enche-me o peito, enquanto vejo os dedos deslizarem nas teclas e o mundo começa a dissolver-se. Quero falar, mas ela fechou os olhos e tudo é som, uma armadilha onde me sinto cativa, quase louca, como se a minha voz não fosse mais do que a música que solta por aquelas mãos, como se a minha vida estivesse presa entre duas notas. Quero gritar, mas sinto-me emudecida. Ela não pára e tudo em mim é luz. Ergo-me e, imponderável, bato as asas pela primeira vez. Voo e meu corpo é música e vento que se desvanece na janela da noite.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

De aparência em aparência

Teresa Muñiz - Aunque se mueva es pura apariencia (1998)

O que esconde uma aparência? Outra aparência. E esta uma outra, numa progressão infinita. Cada aparência é uma estação do calvário do espírito. A sua cruz é este ir de aparência em aparência, negando-as e negando-se a si, pois a viagem é infinita e, na verdade, não existe um lugar sólido onde possa repousar eternamente. Não se trata de negar as aparências para encontrar uma realidade. A única realidade é a viagem pelas aparências.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Danos colaterais

Nicanor Piñole - Escuchando la radio

O progresso dos meios de comunicação social representa, ao mesmo tempo, um retrocesso na capacidade do homem comunicar consigo mesmo. O momento decisivo terá sido a rádio. Ela exige um exercício de escuta já completamente alienado, uma escuta totalmente voltada para o exterior, para uma voz que vem de fora e que se sobrepõe à voz interior que habita os homens. Platão, na antiguidade clássica, via o pensamento como um diálogo consigo mesmo. É este diálogo que a comunicação social tem o poder de dinamitar, ao prender a atenção com o que vem de fora e que, pelo poder da técnica, se impõe a uma consciência fascinada. Ler a imprensa, escutar a rádio, ver televisão ou interagir através da internet são progressos civilizacionais, mas não deixam de ter importantes danos colaterais. Entre esses danos encontra-se esse exercício de meditação que consiste no diálogo consigo mesmo.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 11

Charles Émile August Duran - Danaë (1900)

11. Desce sobre ti

Desce sobre ti
a luz do Inverno.
E se estas mãos
em fogo te tocam,
tudo se ilumina
como se aqui
nascesse o Verão.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Contrastes simultâneos

Sonia Terk Delaunay - Contrastes simultâneos (1913)

Aquilo que para a razão é um escândalo - ser e não ser simultaneamente - é para a experiência do espírito um caminho e uma orientação. Uma orientação que surge como um convite: abandona a razão como guia da experiência. Um caminho que se abre à experiência: experimentar os contrastes simultâneos que, apesar de horrorizarem a razão, nos chamam a vivê-los num para além do discurso e do pensamento.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Haikai do Viandante (260)

Giovanni Fattori - Bosque à beira-mar (1967-72)

azul sobre azul
um bosque entre mar e céu
a terra acordou

sábado, 5 de dezembro de 2015

O devaneio do voo

Ivonne Sánchez Barea - Voo (2007)

O homem pertence ao elemento sólido. É esta a sua natureza. Ao nadar, pode sobreviver na água. Por muito que se esforce, o homem não pode voar. Para tal precisa de se hibridar e adquirir as próteses que lhe permitam contrariar a gravidade. O voo protésico, porém, não é a realização do devaneio do voo que acomete muitos seres humanos. No sonho do voo, o homem pressente uma outra realidade, uma outra natureza liberta das condições físicas que o prendem ao corpo e, através deste, à matéria. Voar não significa então deslocar-se nos ares, mas antes elevar-se à condição de ser espiritual, para que, como acontece com o vento, possa soprar onde quiser.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Uma descoberta

Eduardo Úrculo Fernández - El descubrimiento (1992)

Hesitou longamente. Esperou que o tempo se suspendesse, que alguma coisa o viesse salvar de uma decisão. A vida pesava-lhe nos ombros e agora que partia, era ainda essa vida que levava consigo, uma vida esquartejada no interior de muitas malas, para que nada lhe faltasse na viagem e no destino que o esperava. Olhava o horizonte, abanava a cabeça e dava alguns passos nervosos para a frente e para trás. Um remoinho descia da cabeça, fazia o sangue fervilhar e, no ventre, abria-se num enorme buraco vazio. O corpo tremia. Largou a bagagem e olhou em frente, deu um passo e outro e outro. As malas começaram a ficar para trás. O corpo tornara-se leve. Pela primeira vez sentiu em si o sopro da inocência em si. Deu um novo passo e continuou. Descobrira, não teria o destino da mulher de Lot.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Uma nova palavra


Emile Chambon - L'Eveil (1975)

A ideia de despertar tornou-se, na vida do espírito, um lugar comum. O século XX e mesmo o XXI tornaram-se o lugar da mais feroz banalização de tudo, e a ideia de despertar, de abrir-se para uma outra realidade que não a do senso comum e da vida quotidiana, não deixou de ser arrastada pela onda de banalização que a tudo submerge. O viandante precisa não só de descobrir a realidade a que esse termo outrora designou como de encontrar uma outra palavra não contaminada pela rasura do tempo, palavra que retire o despertar da morte a que o abuso o parece ter condenado.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Amanhecer e anoitecer

Albert Dubois-Pillet - O Marne ao amanhecer (1888)

O estranho encontro entre a aurora e o fluxo das águas de um rio constitui-se num símbolo do próprio devir espiritual. Olhamos e pressentimos que a luz nascente vem arrastada pelas águas, que a tornarão a levar para que a noite chegue. É assim também que o rio do tempo arrasta a luz do espírito: amanhecer e anoitecer são os trabalhos e os dias da vida espiritual.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Da melancolia

Eduardo Úrculo Fernández - Melancolia (1982)

A melancolia é o sentimento que parece fundar, no âmbito do poético, a elegia. Todos os sentimentos que se deixam trabalhar pela arte - nomeadamente, pela poesia - remetem para experiências que estão para além daquilo que é meramente subjectivo. São uma janela para uma experiência que transcende a mera individualidade e que a abre para o mistério da existência. Quando a melancolia toma uma forma elegíaca é o espírito cindido de si mesmo que fala do abandono em que se encontra e do desgosto que esse abandono provoca.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A queda originária

Mère Geneviève Gallois - Adão e Eva expulsos do paraíso (1926)

A racionalização histórica de um dos mitos fundadores da nossa cultura - o mito de Adão e Eva - acabou por ocultar aquilo que nele era efectivamente operante. Não se tratava tanto de constituir uma narrativa explicadora da nossa condição mortal e sofredora, mas antes de uma chamada de atenção para a nossa realidade actual, aquela que se vive a cada instante. A cada instante o homem é arrastado pela queda originária. Por queda originária não se deve entender uma queda situada num ponto determinado do tempo, no início dos tempos. A queda é originária porque está sempre na origem de uma existência degradada e impotente para realizar aquilo a que é chamada.

domingo, 29 de novembro de 2015

Signo sinal 9. Ler os sinais

Winslow Homer - O sinal de perigo (1890)

A vida do espírito é um percurso entre sinais. Não há erro maior que o desprezo pelos sinais que, a cada instante, nos são enviados. Onde? Através de quê ou de quem? Em qualquer sítio e em não importa que situação. Ler os sinais é um exercício minucioso que nunca está completamente aprendido. Os sinais são, por vezes, tão dolorosos que não queremos olhar para eles. Eles, porém, não deixaram de se manifestar e de se oferecer à leitura.

sábado, 28 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (259)

Emil Hansen - Entardecer de Outono (1924)

a noite que cai
é um pássaro ferido
o silêncio canta

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

O tema escatológico do fim do mundo nunca deixou de incendiar a imaginação dos homens, e isso continua a verificar-se nos dias de hoje. Essa grande acontecimento apocalíptico, porém, não deixa de ser uma interpretação fantasiosa da vida espiritual dos homens. A experiência espiritual de cada homem não é outra coisa senão uma sucessão de fins do mundo, pois a cada passo no caminho a visão do mundo converte-se e passa-se a vê-lo de outra maneira, liquidando assim o mundo anterior. Cada novo mundo que o viandante alcança significa a morte daquele que deixou para trás.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O sol da manhã

Edward Hopper - Morning Sun (1952)

Acabou a noite. Sento-me e espero. Esta estranheza do dia que começa, a música que se aproxima vinda de longe, as praças lá fora. Enquanto dormia, estas praças estariam lá? Esperariam pelo meu olhar ou pelo sol da manhã? Tenho de me levantar. Aguardam-me e eu tenho de pôr a cabeça em ordem. Tantos pensamentos, as mãos deslizam, e os sonhos. Sim, o pior são os sonhos. Apanham-me a dormir e apoderam-se do meu sono, para depois desaparecerem, deixando um vestígio difuso. Um corpo alado: um pássaro, um anjo? Não sei, e a luz matinal obscurece tudo, entra no quarto, ilumina-me o corpo e apaga a noite. Oiço um piano. As minhas mãos deslizam nas teclas, enquanto os meus olhos, cegos pelo sol da manhã, procuram em desespero a pauta.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O sonho

 Franz Marc - O sonho (1912)

O sonho, o que fazer com ele? Para além de visão profética do futuro a acontecer ou de forças pulsionais inconscientes que, motivadas por um passado traumático, se revelam, o sonho é uma pura presença que vale por si mesma e não tanto como uma manifestação de um passado realizado ou de um futuro a acontecer. Como um quadro, um poema ou uma sonata, o sonho dá-se a fruir como um objecto estético frágil e efémero, uma combinação momentânea do espírito, que, inquieto, logo sopra noutra direcção. Exige não uma terapia ou uma acção preventiva, mas a mais pura das contemplações.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ordem e desordem

Paula Rego - A ordem foi estabelecida (1960)

A ordem e a desordem. É sempre o espírito que, sobre o caos, estabelece a ordem, para, logo de seguida, transformar essa ordem em desordem, suprimindo as formas e deixando a matéria livre para que uma nova ordem se possa manifestar. Quem pensar que a vida espiritual é um lugar de uma ordem eterna equivoca-se. O espírito é a pura inquietação que se busca e, nessa busca, erige e destrói infinitos mundos. Como o vento, o espírito sopra onde quer.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (258)

Xavier Valls - Almendrosy montaña al atardecer (1982)

o céu azul desce
e desliza na montanha
árvores florescem

domingo, 22 de novembro de 2015

Em louvor do Inverno

Gabrielle Münter - Breakfast of the Birds (1934)

Os pássaros da manhã vêm até mim, poisam nos ramos despidos pelo frio do Inverno, e cantam as breves canções que trazem na sua alma obscura. E eu? Cantarei com eles? Ah, se a minha alma fosse assim obscura como a deles, cantaria longamente em louvor do frio e da neve, mas tudo em mim é transparente. Chega a manhã e sento-me, olho para além da janela e tomo o pequeno-almoço, como se toda a verdade da minha vida fosse esta ânsia por pão, leite, um rasto de café. Os pássaros olham-me. Não  pedem as migalhas da minha mesa. Olham e cantam. Oiço-os e a minha alma obscurece-se, torna-se leve, cada vez mais leve e secreta. O vento abre a janela, o meu corpo, cheio da leveza obscura da alma, ergue-se e da minha boca soltam-se os primeiros trinados em louvor do Inverno.

sábado, 21 de novembro de 2015

Improvisação e planeamento

Wassily Kandinsky - Improvisação (1909)

O bom senso tende a opor planeamento e improvisação. Naqueles indivíduos ou povos nos quais não floresce a virtude do planeamento, a improvisação surge como uma solução de recurso para disfarçar a ausência do trabalho de deliberação e de organização. A vida do espírito, contudo, mostra que a oposição entre uma coisa e outra é apenas aparente. O carácter espontâneo de toda a verdadeira improvisação só emerge após um longo trabalho planeado e organizado. E toda a improvisação acaba por exigir novos planos. Sim, o espírito é como o vento, sopra onde quer, mas no seu querer não há cisão entre o plano e o improviso, pois são um só.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 10

Jean François Millet - Nu reclinado

10. Assim reclinada

Assim reclinada,
esperas que o tempo
acenda o Verão.

Na voz magoada.
Na luz do momento.
Na fria servidão.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A viagem espiritual distingue-se da viagem territorial por não possuir um primeiro passo, um ponto de partida, a linha onde terá começado. Também não tem um destino. Numa viagem onde não há princípio nem fim, nenhum passo é o primeiro e, ao mesmo tempo, todo e qualquer passo é o primeiro e, como tal, inicial.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O dia seguinte

Edvard Munch - O dia seguinte (1894-95)

Sonho... o que faço aqui, que sono. Ah esta maldita luz. Meu Deus, como bebi. E tudo tão amargo, que cansaço, o corpo dele, o hálito. Não, este é o meu quarto, mas esta luz. Onde está a noite? Acorda, acorda. Ouvi gatos... miau. Gritaram. Agora, esta noite. Esqueci-me do nome e o rosto... tanta água, água fria. Levanto-me. Ele tinha a mão, um cão uivou. Tenho de me levantar, os pés no chão. Água, sim água. Tomar banho e vomitar, o corpo dele dentro do meu, tenho de vomitar. Bebi, bebi-me. Onde está o meu sangue. Sangue do meu sangue e o corpo, quem me ergue? Pesa-me o corpo, pesa-me a noite e um cão ladra. Levanto-me tenho de ladrar à janela. Sou uma cadela e ladro.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A luz e o fogo

Max Klinger - O roubo do fogo

Como a luz, segundo João, também o fogo foi dado aos homens. A luz resplandece nas trevas, mas os homens não conseguem compreendê-la e, por isso, essa dádiva pura não toca os homens, fechados para o dom. O fogo, que os homens usam, foi o produto de um roubo e esse roubo limita a dádiva de Prometeu. O fogo não ilumina os homens, não porque estes sejam incapazes de o compreender, mas porque ele, devido à sua origem obscura, não traz consigo a luz.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Construtor de pontes

Pierre Bonnard - A ponte (1896-7)

Ao viandante não é pedido apenas que atravesse a ponte, isto é, que se desloque para a outra margem para de lá ter uma outra perspectiva. É-lhe pedido que seja um pontífice (pontifex), um construtor de pontes, que na sua viagem, a cada momento, teça a ponte ente dois lugares que um abismo separa.