quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Abrir brechas

Lucio Fontana - Concetto Spaziale (1960)

Pensa-se muitas vezes que a vida espiritual é o cumprimento de regras, como se o essencial da existência humana fosse a normalidade moral, essa redução da vitalidade ao preconceito social, à ideia feita, ao hábito comunitário. A vida do espírito, contudo, está muito para além disso vive noutros espaços que a moralidade não consegue frequentar. A sua natureza não é a da regra, mas de abertura de brechas por onde a luz possa passar e iluminar o caminho do viandante.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Natividade mística

Sandro Botticelli - The Mystical Nativity (1500-01)

E se as narrativas sobre o nascimento do Filho de Deus em Belém não tiverem qualquer correspondência factual, se pertencerem apenas ao domínio do mito e não da história, serão elas falsas? Depende do regime de veridicção adoptado. Se for um regime em que a verdade depende da correspondência do discurso aos factos, então, no caso de serem não históricas, serão falsas. Mas se o regime de veridicção for outro, se a verdade não for uma mera correspondência entre factualidade e discurso mas uma realização de uma possibilidade inscrita no real, então as narrativas da natividade são a mais pura das verdades, aquela a que todos os homens são chamados a realizar na sua vida. A natividade do filho de Deus não é um mero facto, mas a possibilidade que, segundo o Cristianismo, os filhos de Deus trazem em si mesmos. Uma natividade mística.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (490)

Jim Dine - A Woodcut in the Snow (1983)

490. os sedimentos deixados

os sedimentos deixados
pela vida

são como o sangue que corre
no coração

chegam e partem ao ritmo
da pulsação

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O espaço do silêncio

Fernando Roscubas y Vicente Roscubas - Espaços de silêncio (1994)

Os lugares de silêncio, nos dias de hoje, são pequenas bolhas na superfície da terra. O ruído, nas suas múltiplas formas, tomou conta do mundo e impõe aos homens - a alguns deles, pelo menos - uma terrível provação, a de criarem, através de uma dura ascese, um espaço de silêncio dentro do ruído geral. Nele, esperam ouvir a voz silenciosa que por eles chama.

domingo, 21 de dezembro de 2014

Haikai do Viandante (215)

JCM - Heimat (2014)

deslizam as águas
esquecidas da fria fonte
luz no horizonte

sábado, 20 de dezembro de 2014

Uma casa em ruínas

JCM - Ruínas (2014)

Que mais precisa o viandante para abrigo do que uma casa em ruínas? Ele sabe que todos os abrigos são passageiros e que o efémero que se manifesta numa ruína opera também naquilo que é novo. Cada abrigo é importante não porque se permanece nele, mas porque há que deixá-lo para trás. 

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Um caminho de vida

Salvador Dali - Cavaleiros do Apocalipse (1970)

Há múltiplas formas de pensar a simbologia dos quatro cavaleiros e respectivos cavalos que surgem no Apocalipse de João. Os símbolos são verdadeiros depósitos de sentido, permitindo encontrar neles significações contraditórias. A lógica que os rege, se de lógica podemos falar, não se coaduna com a interdição da contradição e com o terceiro excluído. No símbolo, identidade e contradição coabitam e o terceiro está incluído. Podemos ver nesses símbolos do texto de João a profecia de terríveis desgraças, mas não será desapropriado de compreender neles uma indicação do caminho espiritual, marcos na viagem do viandante que procura aquilo que por ele chama, aquilo que, numa outra linguagem, se poderá dizer o caminho da vida feliz. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (489)

Adolphe-William Bouguereau - Evening mood (1882)

489. canto a distância de onde

canto a distância de onde
te vejo

deixo-a crescer no fundo
de mim

para que de ti se me acorde
o desejo

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Tarefas ociosas

Filippo de Pisis - O arqueólogo (1928)

Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos (Mateus 8:22)

A viagem não é um assunto de arqueólogos, esse entretenimento do mundo moderno onde os mortos se entregam à tarefa de desenterrar os mortos. Se já era vã e ociosa a tarefa dos mortos a sepultar os seus mortos, o que se poderá dizer desta inclinação mórbida pelo que está morto? Seguir o caminho do espírito é procurar o que está vivo, é seguir a via que conduz à verdade e à vida.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O caminho principal

Paul Klee - Caminhos principais e caminhos laterais (1929)

Só a ilusão pode levar o viandante a distinguir entre caminhos principais e caminhos laterais. Seduzidos pelas aparências, os homens traçam estranhos mapas e entregam-se a taxionomias insensatas. Quando a aparência mais densa começa a dissolver-se, o viandante descobre que todos os caminhos são o caminho principal, desde que ele, naquela hora, o esteja a percorrer.