sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Geometrias de fogo (36)

Hugo Canoilas, Formas de vida simples que regressam ao mar, 2020-2023 (Gulbenkian)

Um fogo terrestre, selvagem como uma estrela do mar, transborda da dureza da rocha e inclina-se para o oceano. É um fogo incansável, desejoso de metamorfose, lava feita animal. Um grito fulgurante da Terra; um trovão ecoa na esfera celeste. 

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

O Espírito da Terra (36)

Léonard Misonne, Coucher de Soleil, 1905

Quando o Sol se põe, nesses instantes de cintilante indecisão, o espírito da Terra manifesta-se numa imagem de súbita nostalgia: as sombras alongam-se em busca do infinito, a paisagem funde-se num anseio de eternidade.

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Câmara discreta (24)

Dorothea Lange, Woman’s foot, Vietnam, 1958

O pé flectido contra a dureza do chão, os dedos abertos ao ar do dia, o calcanhar escondido sob uma veste comprida. Discreta, a câmara oculta-nos o rosto, a dor inscrita nas rugas da face, o desespero a cintilar nos olhos, a raiva a dançar nos lábios cerrados. Tudo isso, porém, é-nos devolvido nas metáforas instituídas por aquele pé desnudado, como se cada parte de um corpo reflectisse não apenas a sua totalidade, mas também aquilo que habita no segredo da alma e no vendaval do espírito.

sábado, 23 de novembro de 2024

Ofício de Outono (9)

Jackson Pollock, Autumn Rhythm: Number 30, 1950

sob o gérmen da candura

vozes bastardas

murmuram no silêncio

 

os astros deslizam no céu

núncios minerais

na vertigem dos espaços

 

uma ave silvestre canta

a fímbria da noite

abre-se no abismo sideral

 

Novembro de 2024

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Haikai do Viandante (440)

Alson Skinner Clark, Autumn Blaze

Folhas amarelas

são cintilações de Outono.

Solidão nos campos.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Impressões 123. O caminho da floresta

Flor Campino, sem título, 1961 (Gulbenkian)

Ouve-se o canto dos pássaros e os olhos detêm-se no verde da floresta. Um desejo insensato apodera-se do corpo, e o viajante ocasional sente-se atraído por aquele território inóspito, onde o segredo da vida se combina com o mistério da luz. Intrépido avança e diante dele vê a floresta abrir-se num caminho que só o coração sabe a onde levará.

domingo, 17 de novembro de 2024

Meditação breve (200) Floresta humana

Ana Hatherly, sem título, 1972 (Gulbenkian)

Olhamos e não sabemos o que vemos. Uma floresta? Uma multidão? O afastamento das coisas torna a sua imagem imprecisa e as nossas representações desadequadas. Talvez, vista do espaço sideral, seja uma floresta de homens, uma multidão petrificada, presa aos seus corpos vegetais, que começam a florir e haverão de frutificar quando chegar a hora.

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Ofício de Outono (8)

Paul Klee, The Messenger os Autumn, 1922

de súbito vieram dias frios

o vento cortante

sobre a palidez das faces

 

anuncia-se nos crepúsculos

de novembro

o eco futuro do advento

 

as tardes feitas de cinza

abrem-se

ao silêncio de quem espera

 

Novembro de 2024


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Micronarrativa (70) Corrida

Amadeo de Souza-Cardoso, Avant la corrida, 1912 (Gulbenkian)

O espectador olhava os cavalos, mas não via a corrida. Pensava, meditava, perdido na multidão, sobre a natureza das corridas. Umas não têm fim, outras não têm princípio, e havia outras que não tinham meio, pois o princípio e o fim coincidiam tanto no espaço como no tempo. E, quando o mais veloz dos cavalos se aprestava a ganhar o grande-prémio, sentiu uma iluminação: a única corrida autêntica é aquela que não tem princípio nem fim, pois é um eterno correr sem correr. Enquanto a multidão ovacionava o triunfador, ele saiu do hipódromo, pois a sua corrida não pertencia àquele mundo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Pintura e haikus (42)

António Sena, Lèvres errentes sur la mer, 1983 (Gulbenkian)

De súbito as ondas

saltam da boca do mar.

Fome e tempestade.

sábado, 9 de novembro de 2024

Signo sinal 23. Abandono

Amadeo de Souza-Cardoso, sem título, 1915 (Gulbenkian)

O rosto que se distorce é o signo da derrelicção do homem, desse abandono a que cada um se entrega, deixando-se enredar numa teia de sinais contraditórios, aqueles que, esquivos ou imperativos, vêm das suas pulsões e os outros que nascem fora de si, mas que tomam conta do castelo interior deixado ao acaso dos dias e à impaciência dos desejos.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Ofício de Outono (7)

Wassily Kandinsky, Autumn in Bavaria, 1908

mais cedo chegou o verão

de são martinho

sorri o sol a quem passa

 

memória de luz estival

na dança das estações

a caminho da noite invernosa

 

na terra poisam folhas mortas

o vinho novo cai

da taça cintilante do céu

 

Novembro de 2024


terça-feira, 5 de novembro de 2024

O sal do silêncio (119)

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)

As enormes mãos do silêncio abrem-se por dentro do tumulto da matéria ressequida. Procuram, na secura da poeira, a água perdida; esperam, no vácuo das horas, a seiva azul das plantas e o sal da terra.

domingo, 3 de novembro de 2024

A memória do ar (35)

António Areal, Opus n.º 59, 1963 (Gulbenkian)

O ar é como a pele de uma onça enlouquecida ou branco como um lençol estendido ao sol depois de lavado. Na cintilação dos opostos, o ar esconde o seu mistério, um enigma combinado com a resina das memórias e a seda cintilante que cobre os picos nevados das montanhas.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Ofício de Outono (6)

Eloisa Sanz, Camino de Tilos, 1999

mais pequenos os dias

flutuam

na lezíria enlameada

 

a luz indecisa enche

de sombras

a alameda das tílias

 

as palavras ecoam

vozes perdidas

no dédalo do passado

 

Novembro de 2024