quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

O sal do silêncio (111)

João Dixo, Quem pinta, pinta-se, 1978 (Gulbenkian)

A reflexividade dos nossos actos é um pacto com o silêncio. Entre o que fazemos e o que somos, nesse interstício que vai de nós a nós, há um silêncio de fundo, tão radical que raramente damos por ele. É nele, porém, que unimos a poeira do que fazemos ao sal que somos.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

A memória do ar (26)

Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian)

Voar, eis o vício do vento. Deslocar-se sobre os segredos dos homens, para os envolver no tremendo da ventania, no terrível do vendaval. Por vezes, o ar toma o nome de ciclone, corre apressado numa fúria desmedida, desloca-se em turbilhão, como se fosse habitado por uma raiva despida de razões, como se tivesse cansado de segredos e de homens.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (9)

Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912

A paisagem assombrada da tarde,

vendaval vindo no voo do vento,

as mulheres de cabelos revoltos,

os cavalos delicados da noite.

 

Vou, de Inverno em Inverno, sombrio,

faço luz na escuridão da caverna,

onde oiço o ecoar da memória

afogada no silêncio do tempo.

 

Cavaleiro sem cavalo na noite.

É a hora de rasgar o caminho

na paisagem fria e negra de névoa.

 

Sou o eco que rasura a memória.

Sou a luz branca da escura caverna.

Sou o tempo e a sombra de Inverno.

 

Fevereiro de 2024 

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Geometrias de fogo (26)

Anton Zwengauer, Landscape with Deer at Sunset, 1847

Era um lago habitado por um fogo plácido, um incêndio de pétalas reconciliado com a água e a terra, desejoso de serenidade, amante dos dias de sol e das noites estreladas. Um fogo feito de frutos resplandecentes e de esperanças sensatas, um fogo inclinado para o crepúsculo, um fogo que se move lentamente entre ás águas paradas e o sangue desatinado do coração.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A sombra da água (26)

Piotr Mondrian, Farm with Trees and Water, 1906

É uma água sem o sal da viagem, sem a sombra das noites. Irrompe pura na Terra ou cai solícita dos céus. Nela, não há navios, nem os pescadores procuram a harmonia dos peixes. De noite, murmura canções tecidas com o fio do silêncio; de dia, deixa que da sua boca se evapore um hálito de rosas.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Haikai do Viandante (435)

José Dominguez Alvarez, Paisagem de Montanha (Gulbenkian)

 Sombras nos caminhos

são símbolos na montanha.

Sangue de Outono.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (8)

Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922

A camisa desgastada de Invernos

é um trapo enrolado nas mãos,

é o corpo pelo tempo rasgado,

uma mancha que declina sem luz.

 

Revestido de matéria efémera,

o espírito balança ao relento.

Vai e vem, preso ao fulgor do que passa,

tão perdido no delíquio dos dias.

 

Atormentam-me as sombras esquivas

declinadas pela luz deste Inverno,

a camisa corrompida do corpo.

 

Se o sol resplandece nas montanhas,

o espírito encontra o caminho

para a casa que ao longe o espera.

 

Fevereiro de 2024 

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

No limiar (15)

Carlos Carneiro, sem título, 1970 (Gulbenkian)

A realidade não é um presença constante, dela está ausente a placidez das coisas eternas. É uma aproximação lenta, um vir de longe, atravessando as areias dos desertos, as águas escuras e inóspitas dos oceanos, as florestas cerradas no dorso das montanhas. Aproxima-se como uma sombra, porque é morosa a procissão que tem de percorrer a partir do nada, elaborando-se em esboços sem fim, ganhando consistência no lusco-fusco dos dias, até que atravessa o limiar do mundo e encontra a carne que lhe cobre o corpo e nos faz exclamar eis a realidade viva.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A memória do ar (25)

Sérvulo Esmeraldo, Vibrations, 1963 (Gulbenkian)

O ar divide-se em camadas. Se o vento o anima, então cada uma começa a vibrar e ondas sonoras propagam-se sobre a Terra, umas violentas, outras dóceis, outras ainda saturadas de harmonia e equilíbrio. Os homens pensam então escutar a música das esferas celestes, mas é apenas uma canção da Terra vinda da púrpura ébria da atmosfera.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O sal do silêncio (110)

Júlio Pomar, Campinos, 1963

Um ruído irrompe na eterna paz da lezíria. Cavalos e toiros são um traço na paisagem, a marca de um instante que se manifesta para logo desaparecer no sal da quietude ou no silêncio onde o tempo se devora a si mesmo, cansado da viagem.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Sonetos de Inverno (7)

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895

Abandono as coisas deste jardim,

folhas mortas dum Inverno sem luz.

Ergo ágil a candeia do silêncio

sobre a noite rasurada do mundo.

 

Oiço passos na morada do homem.

Oiço cânticos no escuro das ruas.

Um segredo no passar de quem parte.

Um enigma desenhado nas vozes.

 

A substância da viagem cintila

no jardim da noite húmida e cândida,

no altar onde o Inverno se entrega.

 

Ó as vozes de quem parte sem rumo.

Ó os passos de quem canta calado.

Nem segredos, nem enigmas. Silêncio.

 

Fevereiro de 2024

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Meditação breve (193) Paisagem

João Navarro Hogan, Paisagem, 1939 (Gulbenkian)

Quando se ouve a palavra paisagem, um obscuro instinto leva-nos a imaginar espaços abertos e luminosos, onde a vida se desenrola num exercício de equilíbrio a que chamamos harmonia. Nesse hábito, esconde-se o desejo de que a vida seja assim, luminosa e aberta como bela paisagem campestre, mesmo que a luz, por intensa, oculte a obscuridade que ali habita. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Geometrias de fogo (25)

Vincent Van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889

O sol envia dardos de fogo e a terra abre-se para que eles a penetrem com a sua ardência fulgurante. É um fogo cintilante que aquece os mundo subterrâneos, crepita no silêncio das noites, toca as raízes húmidas das oliveiras, sobe-lhes pelos troncos e ramos até que nos lagares os frutos se metamorfoseiam num incêndio líquido, belo como uma promessa há muito feita e agora realizada.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Haikai do Viandante (434)

Francis Picabia, Amanhecer na bruma, Montiguy, 1905

 O dia revela-se

nas árvores matinais.

Bramidos e brumas.