sexta-feira, 30 de junho de 2023

Sulcos de Verão 2

Eusebio Sempere, Verano, 1965

O ardor do fogo cintila,

mácula na pele rasgada

pelo dardejar dos incêndios.

 

Os corpos rastejam na sombra,

pedem a clemência da água,

o vento frio vindo do Norte.

 

Junho passa inflamado e rude

pelas ruas vazias de vida,

pelas almas ébrias de sonhos.

 

Junho de 2023

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Sulcos de Verão 1

Edvard Munch, Día de verano, 1904-1908

Como uma velha assombração

chega a verruma do Estio

cingida na luz do silêncio.

 

Os dias abrem-se em sonhos,

promessas de glória nos mares,

o olhar perdido na névoa.

 

Sento-me na sombra da tília,

oiço no rumor da memória

o verde Verão da infância.

 

Junho de 2023
 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A memória do ar (15)

Imogen Cunningham, Dream Walking, 1968
Esqueça-se a solidez dos corpos, com a sua submissão aos imperativos da gravidade. Esqueça-se o desenho da sua figura, com o sublinhar espesso dos contornos. Deixemos que os sonhos se sonhem em corpos feitos de ar, para que a leveza do desejo se possa expandir do centro da terra para o universo sem fim. 

sábado, 17 de junho de 2023

Impressões 111. Na lagoa

Heinrich Kühn, Abend In Der Lagune, 1895

Ainda não é uma noite de bruma, nem a glória das águas se eleva para os céus onde, vigilantes e eternos, os astros observam as lentas metamorfoses da vida na terra. Dois veleiros cruzam a lagoa, procuram porto de abrigo, na esperança de encontrar um lugar onde o lume cintile e envolva os corações com o manto do calor. É como se um sonho se inscrevesse na paisagem para a preencher de impressões esquivas, toldadas pelo marulhar das águas, e segredos habitados por uma longa demora.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A sombra da água (15)

Charles Job, Evening Calm, 1905

As águas chegam a terra e abrem-se numa herança inesperada, tocam-na com os seus dedos feitos de um lume tão lento como os dias da infância, acariciam-na com mãos de seda, rasgando-lhe sulcos por onde desliza a sombra das horas de melancolia.

terça-feira, 13 de junho de 2023

A Canção da Primavera 12

Mimi Fogt, Spring Time – Serra de Sintra, 1979 (aqui)

Voltemos ao centro do mundo,

ao jardim de flores eternas.

 

Voltemos aos dias luminosos,

às noites dos astros divinos.

 

Voltemos às frescas manhãs

onde canta a Primavera.

 

Junho de 2023

domingo, 11 de junho de 2023

No limiar (6)

António Areal, Sem título, 1961

Os primeiros traços de um mundo emergem do fogo originário. Estão ainda longe de serem um alfabeto que traga dentro de si a promessa de uma gramática, com as suas morfologias de aço, as sintaxes de cristal, fonéticas banhadas pelas águas de todos os oceanos. Ainda não são letras, nem algarismos, nem sinais secretos onde um código se erguerá para que olhos cintilantes o decifrem. São apenas as cinzas de um fogo que, de tão arcaico, nunca pára de arder, cinzas que lentamente se tornarão sólidas, tão sólidas que sobre elas, como se fossem alicerces inexpugnáveis, um mundo haverá de nascer.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

O sal do silêncio (100)

J. Dudley Johnston, Liverpool— an Impression, 1907
Quando se entra por dentro do passado, somos recebidos pelo grande cisne do silêncio. O que era sólido deixa-se ver como penumbra, o que era vivo toca-nos como uma canção, o que era belo cintila ainda no poço escuro da memória. Quando se entra por dentro do passado, a poeira sabe-nos ao sal da solidão.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Geometrias de fogo (15)

Giuseppe Arcimboldo, El Fuego, 1556
Se um coração mecânico bate num peito de ferro, os cabelos deflagram. Um corpo máquina tem uma cabeça de fogo. Os pensamentos são labaredas para incendiar o mundo, as memórias, uma colecção de cinzas onde descansam os restos dos mundos incendiados. 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A Canção da Primavera 11

Léon Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

Uma Primavera soturna

desce do céu de cinza e chumbo.

 

As flores do jardim clamam água

cansadas do fardo de Junho.

 

Espreito o dia pela janela

e oiço murmurar o mundo.

 

Junho de 2023

sábado, 3 de junho de 2023

A memória do ar (14)

Rudy Burckhardt, Flatiron in Summer, 1948

Essas avenidas largas retêm entre prédios as memórias vertiginosas do ar. O vôo dos pássaros, o desejo dos homens, o silêncio dos anjos, a sombra da aurora, os sonhos da matéria. Tudo ali circula, preso à lentidão, pois a memória é um exercício que exige tempo e cuidado. A pressa traz consigo a ruína por onde se escapa tudo aquilo que o coração quer conservar.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Histórias sem nexo 30. Calúnias

Joan Hernández Pijoan, Horizontal, 1984

Uma cândida e casta cabaça cabriolava no canteiro. Um cântico de cachaça. A caduca candeia carpia, se uma cabra cavava no caderno do capelão. Caramba, estes camelos cantam cada canção. Cabaças, cabras e camelos, eis os capatazes da capital ou os cátaros da capela, que, cantando, cabeceiam na carroça. Calúnias de camafeus.