segunda-feira, 31 de maio de 2021

O sal do silêncio (61)

Marc Chagall, The Flying Carriage, 1913

A fantasia nasce por dentro do silêncio. Quando o espírito detém o torvelinho dos reflexos da vida quotidiana e deixa a mente apaziguar-se, então as mil imagens recebidas ao acaso começam a estabelecer estranhas relações, até que novas realidades, nascidas do secreto prazer da hibridação e da metamorfose, se tornam o sal da vida.

sábado, 29 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 82

Albert Bloch, Mountain, 1916
Maio é um Verão indeciso,
a escarpa benévola
por onde subo
a montanha para perscrutar
a linha do horizonte.

Chegado ao cimo, olho
a flora selvagem,
caminho ao acaso e colho
os frutos silvestres
do silêncio e da solidão.

Maio de 2021

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Haikai do Viandante (412)

Rolando Sá Nogueira, Chuva, 1960
Como a fria névoa
a chuva desce dos céus.
Dádiva dos deuses.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Impressões 81. A presença encarnada

André Kertész, Soldier writing, Gorz, Austria (now Italy), 1915
Nesse acto de escrever uma carta, suspende-se a única realidade que assombra um soldado em tempo de guerra. Nesta, a morte não é uma abstracção que por vezes toma corpo em alguém conhecido. Ela é a presença encarnada de cada hora.

domingo, 23 de maio de 2021

Meditação Breve (160) O tempo em fuga

Paul Strand, Bombed Church, Hoste, Moselle, France, 1950
Sempre que pensam na imortalidade, os homens tentam, não sem desespero, matar o tempo, como se o maior inimigo dessa persistência que nunca acabaria fosse o saltitar inexorável dos ponteiros do relógio. Sucedem-se os ataques. Os atentados não têm fim. Os danos colaterais amontoam-se. O tempo, esse nunca pára, faz da fuga a arte da existência.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O sal do silêncio (60)

Maria Helena Vieira da Silva, Casas, 1957

Casas são segredos a crescer entre os murmúrios da rua, são enigmas onde se escondem os ardores da noite, são mistérios que se abrem na luz e na sombra. Casas são o aroma do sal perdido no fogo do silêncio.
 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 81

Paul Cézanne - As grandes banhistas (1900-1905)
De súbito, um som de água
fende o silêncio,
o coração estremece,
o vento dança nas folhas das tílias.

A Primavera abre-se ao fulgor,
os dias tocados pela aura
do sol
crescem por dentro da alma.

Oiço um violino e nele escuto
o vento, o sol
o cântico de alegria
das almas ébrias da madrugada. 

Maio de 2021

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Haikai do Viandante (411)

Max Baur, Im Nebel, 1930
 Névoa sobre névoa,
o mistério da manhã
nas águas do rio.

sábado, 15 de maio de 2021

A fronteira

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s
Da única coisa de que tenho a certeza é do seu nome. Encontrei-a sentada diante de um espelho. Entre ambos parecia haver uma estranha relação. Não aquela que, por preconceito e irreflexão, atribuímos às mulheres. Parecia antes uma barreira que ela tentava passar, como se quisesse entrar pelo vidro. Precisa de ajuda? Perguntei-lhe. Olhou-me e sorriu, mas não disse nada. Parecia deslocada. Não force o espelho com o corpo, ele pode partir-se. Disse-lhe. Deu-me uma resposta inusitada. As fronteiras servem para ser forçadas, quero ir para a casa. Posso levá-la. Como se chama? Não sabe o meu nome? Quando lhe ia responder, entrou por dentro do espelho e desapareceu. Claro que sabia o seu nome. Não me atrevi a segui-la.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Meditação Breve (159) Do arrependimento à inocência

Imogen Cunningham, Eve Repentant, 1910
O arrependimento insere-se, na cultura judaico-cristã que dá forma ao mundo ocidental, numa dialéctica de dissolução dos factos. Arrepender-se de algo que foi feito - isto é, tornado um facto -  é o primeiro passo para que uma outra figura espiritual - espiritual e não apenas moral - se manifeste, a figura do perdão. Do ponto de vista humano, o perdão é fazer como se o que foi feito não o tivesse sido. O perdão divino será muito mais radical. Será o dissolver o facto, fazer com o que foi feito não o tenha sido. O perdão humano inocenta, o divino devolve a inocência.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Impressões 80. Uma estranha realidade

Júlio Pomar, Campinos, 1963

O touro e o cavalo nunca deixam de exercer um estranho fascínio sobre o espírito dos homens. Talvez a leveza de um e força do outro sejam o segredo dessa atracção. Tudo isso se intensifica quando, numa largada, os campinos, presos às selas, conduzem uma manada de touros. Olha-se e não se vê nada mais que uma onda de poeira e de vultos, como se homens, terra e animais não fossem senão uma única realidade tomada pela vertigem do infinito e pelo desejo do absoluto.

domingo, 9 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 80

Jackson Pollock, White light, 1954
Deixo o silêncio cair sobre o dia,
ergo-o como uma vela
no altar.

Tudo se ilumina na tarde,
as ervas presas ao chão,
os pássaros perdidos nos céus.

Uma voz canta na planície,
entra na casa onde
o silêncio se cala feito luz e sombra.

Maio de 2021

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Haikai do Viandante (410)

Edward Weston, Dunes, Oceano, 1936

Desertos de areia
são sonhos nunca sonhados,
são mares de mágoa.
 

terça-feira, 4 de maio de 2021

Meditação Breve (158) As pequenas vinganças

André Kertész, Between Paris and Deauville, 1927

O cómico nasce muitas vezes do entrelaçamento dos tempos. Quando o que passou e se tornou obsoleto é a solução para aquilo que o veio substituir, não se pode deixar de sorrir. As pequenas vinganças nunca deixam de ter qualquer coisa de sarcástico.

domingo, 2 de maio de 2021

Biografias 18. A serva do senhor

Nobuyoshi Araki, untitled, not dated

O súbito desejo da servidão. O meu corpo ofereceu-se às cordas que o submetem. O desejo do senhor, porém, faz dele escravo da sua escrava, torna-o submisso ao fogo devorador que dorme nos meus olhos, na minha boca, no meu ventre. Presa, sou a imperatriz e no meu império está toda a minha liberdade.